sábado, 25 de setembro de 2021

Fernando Sabino (O Preço da Admissão)

DE UM velho escritor, procurando incentivar outro ainda jovem:

— O escritor é um homem que passa a vida conversando consigo mesmo. Só há uma verdadeira vantagem em envelhecer: é que, com o correr do tempo, a conversa vai ficando cada vez mais interessante.

De um comentário do “Time” sobre Hemingway:

O segredo da autenticidade de tudo que escrevia estava em que sabia olhar a verdadeira face da vida, testemunhando o que acontecia ao seu redor como se fosse pela última vez, ou seja: como se fosse morrer no dia seguinte.”

E foi o que o matou: devia olhar o que acontecia ao seu redor como se fosse pela primeira vez, ou seja: como se tivesse acabado de nascer. Porque só devemos escrever sobre aquilo que (ainda) não sabemos.

Conselho do próprio Hemingway a um jovem escritor:

Procure lembrar-se dos ruídos e do que eles lhe diziam. Descubra aquilo que lhe causou emoção, a ação que o excitou. Então escreva tudo isso, da maneira mais clara possível, para que o leitor veja também e tenha o mesmo sentimento que você experimentou. E não se esqueça: prosa é arquitetura e não decoração interior. O barroco já passou.”

O barroco já passou, mas prosa não é nem arquitetura nem decoração interior. É prosa mesmo — e tudo mais é literatura.

De uma entrevista de William Faulkner, pouco antes de sua morte:

“O fracasso faz bem à gente. Se somos bem sucedidos durante muito tempo, alguma coisa morre, seca e sucumbimos sob nosso próprio peso, como aconteceu a tantos impérios e dinastias.”

E ainda:

Acho que o tema, a história, cria seu próprio estilo. Se a gente perde muito tempo se preocupando com o estilo, acaba não sobrando nada além do estilo.”

O que, em última análise, quer dizer que ter estilo é escrever sem estilo algum. Ou, segundo Jules Renard: “O estilo, este esquecimento de todos os estilos.”

Nem com isso o problema do escritor deixa de ser fundamentalmente um problema literário — e eis onde reside o sofisma de seu destino, do qual ele procura inutilmente escapar.

Quando se possui a ideia, a palavra jamais há de faltar.” De uma carta de Flaubert a George Sand. Desmentido por Jules Renard, cujo medo era de “acabar não passando de um Flaubert de salão, inofensivo”: “Percebo que serei atormentado pela frase. Dia chegará em que não serei capaz de escrever uma só palavra.

De Paulo Mendes Campos: “Quem tem facilidade de escrever, não é escritor: é orador.”

De Sinclair Lewis, sobre a dificuldade de colocar-se na postura psicológica (e física) de quem vai escrever:

Escrever é a arte de sentar o traseiro numa cadeira.

E por último, o conselho de Carlos Drummond de Andrade a um jovem escritor:

Só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode deixar.

Há muita vocação de escritor por aí, mas ainda maior é o número dos que pensam que para escrever basta aprender a ler. Por isso é que no Brasil há mais escritores que alfabetizados.

As cartas de leitores que recebo, na sua maioria, se não vêm logo acompanhadas de uma produção literária qualquer, revelam uma pretensão de escritor em perspectiva, tentando originalidade, ou querendo parecer natural. Os poucos que se salvam da mediocridade valem mais pelas qualidades humanas que por uma vocação para a literatura. A estes, eu diria que para se realizar integralmente como homem, ninguém precisa ser artista, e muito menos escritor.

Quem puder fugir, que fuja — se for possível não escrever, siga o conselho de Drummond, não escreva. A vocação certamente estará noutra atividade e pode ser espoliada para sempre.

Ainda agora recebo duas cartas de leitores que se viram estimulados a também escrever crônicas. A crônica parece o gênero mais fácil, e realmente é, para os que não ousam ou não merecem tentar uma experiência literária mais duradoura. (O verdadeiro escritor em geral busca nela apenas um meio de vida que se oferece, mas consciente muitas vezes de estar trocando em miúdos as exigências de sua vocação.) Um dos missivistas chegou mesmo a dizer que interrompeu o curso de medicina para “tentar as letras”. Pelo que escreveu, estou certo de que daria um excelente médico.

Não direi isto a ele, em verdade não lhe direi nada: se for mesmo um escritor, continuará escrevendo, a despeito do que eu lhe disser ou deixar de dizer. Se não for, não há de ser conselho meu que o salvará do equívoco.

E é uma pena, porque o Brasil anda precisando tanto de médicos.

Não é a primeira vez que me vêm às mãos originais desta espécie. Trata-se, agora, de uma senhora que “nasceu para fazer alguma coisa”, conforme teve ocasião de me declarar. Sabendo-a casada, ocorreu-me aconselhar que fizesse filhos — mas já os tinha, e neste caso melhor fora que deles cuidasse. Estou certo de que, se canalizasse para os afazeres do lar e a vida em família o esforço despendido com a sua veleidade literária, realizaria uma obra-prima. Não sei se me entendeu. Não chegou a dizer-me o que pretende, escrevendo um romance — se acaso me perguntasse o que pretendo escrevendo o meu, não saberia responder-lhe; seja como for, os problemas que certamente a afligem não se solucionam com a vaidade de escrever e publicar um livro, por mais sucesso que o mesmo faça. E este, não tenho a menor dúvida de que não fará.

É um trabalho que não penetra nem os mais longínquos subúrbios da literatura. Fosse uma tentativa de principiante na carreira literária, e os defeitos mais evidentes lhe serviriam de referência para o aprimoramento na arte de escrever. O que acontece, porém, é que ela, sem necessidade alguma de exprimir-se literariamente, busca afirmarse numa atividade artística que transcenda às limitações de sua vida cotidiana. E escolhe a literatura, como poderia ter escolhido o bordado ou a culinária.

A verdade é que ninguém se mete a projetar e executar um edifício sem ser arquiteto, como não se prestaria sequer a idealizar um monumento sem conhecimento algum no campo da escultura. É exatamente pelo fato de lidarmos na vida diária com o instrumento peculiar à literatura, a linguagem escrita, que tantos embarcam na ilusão de que escrever dispensa iniciação, aprendizado e disciplina de suas aptidões. Sem um mínimo de noção do que seja a literatura, e até mesmo do que seja sintaxe ou ortografia, o diletante sai a todo vapor para começar por onde os outros acabam. E o resultado é a eclosão, aqui e ali, das mais desastrosas improvisações.

Mas pode acontecer — e tem acontecido — que a tentativa frustrada não seja senão um passo em falso no caminho de decepções, renúncias e sacrifícios que levarão dolorosamente o autor à sua realização artística, pela exigência feroz de uma vocação.

Não creio que este seja o caso que tenho em mãos, como tantos outros. Se for, consola-me a certeza de que essa vocação se realizará, a despeito da opinião de quem quer que seja, contra tudo e contra todos.

Daí a sabedoria de Manuel Bandeira, respondendo a uma jovem que lhe perguntou qual o conselho que ele daria a quem quisesse iniciar-se na literatura:

Apenas este: não pedir conselho a ninguém.

Escrevo diariamente desde os quinze anos de idade. Bem ou mal, já gastei toneladas de papel e meus dedos até parecem mais curtos de tanto martelar as teclas da máquina. Posso dizer que passei a vida alinhando palavras, teimoso como um jumento, na tentativa de me exprimir literariamente. E se continuo insatisfeito, pelo menos me satisfaço com a impressão de que estou sempre começando e cada vez há mais a aprender.

Por isso me espanta que alguém busque se iniciar na literatura sem mais nem menos, pouco ou quase nada querendo dar de si. E omitindo o essencial a alguém que se inicia: a sua própria experiência oferecida em sacrifício.

Não estou me referindo ao que se profissionaliza na prática da atividade literária como meio de vida. Falo naquele que se dá um destino, cujo noviciado exige esta espécie de provação. É o primeiro passo — o espetáculo de si mesmo que o escritor tem a oferecer, expondo-se à curiosidade ou mesmo à execração pública — sem o qual os outros passos não virão. Talvez seja a isso que Machado de Assis queria se referir, quando disse que “alguma coisa temos de sacrificar”.

Numa carta de Scott Fitzgerald encontro alguns conselhos a um jovem escritor, que nos falam exatamente no sacrifício exigido:

Você tem de vender seu coração, suas reações mais poderosas, e não apenas as pequenas coisas que o tocaram ligeiramente, as pequenas experiências que você poderá contar ao jantar. Isso é especialmente verdadeiro quando você começa a escrever, quando não desenvolveu ainda os recursos com que prender os outros ao papel, quando nada tem da técnica que leva tempo para aprender. Quando, em suma, você tem apenas emoções para vender. O amador, vendo que o profissional, depois de aprender tudo que podia em matéria de escrever, consegue pegar um assunto trivial, como as reações mais superficiais de três moças comuns, por exemplo, e dar-lhe encanto e graça — o amador pensa que ele ou ela pode fazer o mesmo. Mas o amador só consegue realizar sua habilidade de transferir emoções a outra pessoa através do expediente desesperado e radical de arrancar do coração a trágica história de seu primeiro amor, e expô-la nas páginas para que os outros vejam. Este, de qualquer forma, é o preço da admissão.

Era o que Mário de Andrade procurava dizer-me, afirmando apenas que “Beethoven compôs primeiro a Heróica para depois compor a Pastoral”. Fitzgerald vai mais longe:

Alguém disse certa vez: um escritor que consegue olhar um pouco mais profundamente a sua própria alma e a alma dos outros, encontrando ali, graças a seu talento, coisas que ninguém jamais viu ou ousou dizer, aumenta com isso o âmbito da vida humana. Eis porque o escritor jovem, quando chega à encruzilhada do que dizer e do que não dizer, no que se refere a caráter e sentimento, é tentado a se deixar levar pelo já conhecido, admirado e aceito correntemente, pois escuta uma voz sussurrando dentro de si mesmo: ninguém se interessaria por este meu sentimento, este ato sem importância — portanto deve ser apenas peculiar a mim, não deve ser universal, nem interessante, nem mesmo certo. Mas se suas qualidades são poderosas — ou se ele tem sorte, como preferir — outra voz nessa encruzilhada o fará escrever tais coisas aparentemente insólitas e sem importância, e isso, nada mais, é o seu estilo, sua personalidade — eventualmente todo ele como artista. Aquilo que tentou jogar fora, ou que muito frequentemente jogou mesmo fora, vem a ser o toque de graça que o salvaria. Gertrude Stein tentou exprimir pensamento semelhante ao dizer — referindo-se mais à vida que às letras — que lutamos contra as nossas qualidades mais excepcionais até cerca dos quarenta anos, quando então descobrimos, tarde demais, que elas compunham o nosso verdadeiro ser. Eram a parte mais íntima de nós mesmos, que devíamos ter nutrido e acalentado.

E isso é tanto mais expressivo, se referido por alguém que, por dever de ofício, tem-se limitado tantas vezes a escrever sobre “as coisas que o tocaram ligeiramente, as pequenas experiências que poderia contar ao jantar

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

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