sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Lima Barreto (Contos Argelinos) A Solidariedade de Al-Bandeirah; O Reconhecimento

A SOLIDARIEDADE DE AL-BANDEIRAH


Dos principados vassalos que constituíam o reino de Al-Patak não foi só Al-Bandeirah que não quis reconhecer Abu-Al-Dhudut como sultão.

O canato de Hbaya também, por intermédio do seu príncipe reinante, sempre protestou contra a usurpação. Ao contrário do primeiro, esse principado era trabalhado por grandes dissensões internas. Havia mais de cinco ou seis pretendentes ao seu trono e não existia entre os seus habitantes nenhuma harmonia de vistas.

A população com o seu gênio vivaz, com a sua queda para a eloquência, com a sua ligeireza de espírito, muito concorria para essas divisões e ela é de gênio muito oposto à de Al-Bandeirah, cuja gente é tardia, taciturna e cheia de um ingênuo orgulho de que são os primeiros de Al-Patak. Explorado habilmente, pelos governantes, esse último sentimento da população daquela província, foi-lhes sempre fácil obter dela uma quase unanimidade. Faziam uma ponte, uma torre, um bueiro e logo mandavam proclamar que era o primeiro de Al-Patak. O povo do canato é ingênuo, como um alemão, acreditava na coisa, ficava muito contente e escolhia para as altas funções os membros de três ou quatro famílias que o exploravam.

Dessa forma, toda a resistência à usurpação de Abu-Al-Dhudut estava centralizada em Al-Bandeirah.

Acontece, porém, que, ao contrário do que era de esperar, Hbaya demonstrou mais firmeza e o seu governo chegou a resistir às tropas que o invadiram, com armas na mão.

A coisa foi dolorosa e triste, pois a capital de Hbaya foi bombardeada, as suas casas incendiadas, o príncipe reinante andou daqui para ali, fugindo à sanha dos soldados de Abu-Al-Dhudut.

Infelizmente, devido às facções que dividiam a gloriosa província, a resistência não pôde ser eficaz e foi quase nula em resultados.

Esse episódio comovedor do bombardeamento da capital de Hbaya se deu justamente no dia em que o príncipe irmão de Abu-Al-Dhudut recebia no tesouro de Al-Bandeirah trezentos e cinquenta mil piastras, que, como já é sabido, ficavam reduzidas a trezentos e quinze mil.
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O RECONHECIMENTO

A organização política do Al-Patak não é assim tão absoluta como se pode supor.

Em tese o sultão tem todos os poderes, mas, devido à tradição, à liberalidade de alguns soberanos, o reino possui tribunais e juízes independentes que decidem soberanamente sobre os assuntos que lhes são afetos.

Além disto, Al-Patak possui uma espécie de parlamento – o "divã" — que representa ao rei sobre as necessidades dos povos.

Cada província, conforme a população, dá um certo número de representantes que o são durante alguns anos, uns durante mais anos e outros menos.

Logo que Abu-Al-Dhudut usurpou o trono, tratou de reformar essa espécie de conselho de Estado.

Não há quem não queira fazer parte dele, não só pelos vencimentos que percebem os seus membros, como também pelos presentes que recebem, graças à influência que possuem, podendo obter dos soberanos tudo o que desejam.

O príncipe irmão de Abu-Al-Dhudut foi logo eleito membro do "divã" e feito chefe dele.

Sendo homem esperto e sagaz, conhecendo perfeitamente os desejos de todos os habitantes de Al-Patak de serem do famoso conselho, tratou de regular a entrada nele, ao jeito mais propicio aos seus interesses.

Com este, negociava isto; com aquele, barganhava aquilo. Ia fazendo o seu negócio, quando se tratou do reconhecimento de cide Pen Ben-Forte. Tinha sido, esse ulemá, juiz durante muito tempo, de forma que conhecia o irmão do sultão, quando advogava.

O seu direito à entrada no "divã" era inconcusso, mas o príncipe queria que ele lhe desse dez mil piastras para tornar efetivo o seu direito.

Pen Ben-Forte não esteve pelos autos e lembrou a sua Alteza o fato de ter ele obtido, revelando uma sentença dele, cide, dinheiro ao mercador — sentença mais tarde reformada.

Pen Ben-Forte tinha disso documentos e prometeu publicá-los, se não entrasse no “divã".

Não é preciso contar mais; basta dizer que o antigo juiz entrou e foi reconhecido membro do conselho.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.
Este livro pode ser baixado na íntegra, em pdf, no Domínio Público

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