quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Evely Libanori (Um bem-te-vi no meu caminho)

Como é diferente criar um bem-te-vi. Nada a ver com gatos, nada a ver. De dia ele fica solto no escritório, mas de noite tenho medo de ele se meter em enrascadas; esses fios do computador.

Então, eu ponho ele na gaiola. O Edson riu de mim porque eu pus uma fralda no fundo da gaiola onde ele dorme. "Mas Edson, caso ele sinta frio, pra se abrigar". Vou espiar devagarinho para ver se o Benjamin está dormindo e ele me olha direto nos olhos, se mostra todo ligado. Tem que estar tudo quietinho e escurinho para ele dormir. Um passarinho notívago, como a mãe.

A mãe: eu, no caso. Ou meia-mãe, junto com a passarinha mãe dele. Vou fazer um carinho nele, na cabeça, e ele abre o bico. Eu penso: "Se toca, ele é um pássaro, não é um gato".

Ele entrou no meu coração com esse biquinho aberto para mim. Como eu gosto desse passarinho! Foi assim que ele entrou na minha vida: ele tentou voar e não conseguiu, ainda não estava pronto. Tentou e não deu, ele caiu. Caiu numa calçada movimentada no centro da cidade. Se ficasse lá, ia morrer. Ele estava com medo, acuado, e então eu peguei, imobilizei as asas para que ele não se debatesse e não se machucasse. Conversei com ele e encostei o coração dele no meu, o meu coração junto com o coração de um bem-te-vi, tamanhinho de um coração de passarinho... O coração dele batia rápido, com medo, mas depois foi se acalmando, acalmando...

Ele confiou em mim. E não se decepciona alguém que confiou em nós. Fiquei o fim de semana cavoucando a terra para caçar minhocas, uma das iguarias do meu bichinho de penas. Isso de desencavar minhocas foi muito ruim, pedi perdão. Elas felizes dentro da terra e eu, lá, a invasora. Foi ruim, Mas, ou eu alimentava o bem-te-vi, ou ele morria.

Às tardes eu fico com ele no escritório e mostro para ele Strauss, Vivaldi, Mozart. Eu disse: "Olhe, a gente também manda bem, temos isso". Eu quis que ele tivesse boa impressão de nós, sabem? E, acreditem ou não, ele canta enquanto ouve as composições. Ele canta! Eu passo as tardes em casa ouvindo Strauss e o bem-te-vi que eu crio. É assim a minha vida. Sou filha querida de Deus. Hoje fizemos exercícios de voo no quarto, o Benjamin e eu. O quarto já está ficando espaço pequeno para ele, ele voa mais.

Ele mudou tanto em duas semanas, Como cresceu! Pelo que vejo, em no máximo, mais uma semana ele vai voar. E vai voar para longe de mim. Ele vai para a chácara da minha amiga onde tem uma revoada de bem-te-vis, não tem moleques com estilingues, não tem asfalto, nem carro. Nunca mais nos veremos, mas eu não vou ficar triste. Será que ele vai pensar em mim antes de ganhar o céu?

O bem-te-vi tomou forma em meus pensamentos, em minha vida, e nunca mais sairá de mim. Então, eu estou e sou junto com o passarinho que minhas mãos criaram. O coração que bateu junto com o meu coração vai ganhar o céu. Ele vai para o ar, nunca mais vamos nos ver.

Foi assim: ele estava caidinho na calçada, eu ia passando, ele me olhou. E aí, daqui a poucos dias ele vai ganhar o céu, e eu mais um amor eterno dentro de mim.

Fonte:
Evely Libanori. Nós, animais. SP/RJ: Livro Expressão, 2013.
Livro enviado pela autora.

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