sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Paraná em Trovas



Se todos somos irmãos,
ninguém vencerá ninguém.
– Vitória é dar-nos as mãos
pelo triunfo do bem!
A. A. de Assis

Fico em silêncio e ouço os passos
de quem não vai mais chegar...
Então abraço os meus braços
e não paro de chorar.
Amalia Max

Sou trovador, tenho senso
Da importância da poesia:
Encerra tudo o que penso,
Realidade e fantasia!
Apollo Taborda França

A trova é gota de pranto
que cai dos olhos de alguém
e por alguém chorou tanto
que nem mais lágrimas tem
Antonio Salomão

O céu se torna mais belo
para saudar nosso amor.
Faz-se o poente amarelo
para à paixão dar mais cor!
Arlene Lima
.
Se lágrima enchesse balde,
contendo tamanho fundo,
prá aparar água-debalde,
que balde teria o mundo.
Carlota Faria de Campos

Tão livre pelo meu rosto
sinto a lágrima rolar.
Quando, terei eu, o gosto
de também me libertar?
Cyroba B. O. Ritzmann

Passei a vida chorando,
chorei mais do que sorri.
Hoje eu sorrio zombando
da maneira que vivi.
Eleonora Brasil Pompeo

Meu caro poeta: o Universo
espera atendas meu rogo:
- Ou pões mais fogo no verso,
ou pões o verso no fogo!
Eno Teodoro Wanke

A lágrima mais sentida
que brota do coração,
é a que sentimos na vida
pela dor da ingratidão!
Fernandina Marques

A Pátria não é somente
o céu, o rio e o chão;
é mais: É a alma da gente
que vibra no coração.
Harley Clóvis Stocchero

Minha terra tem pinheiro
onde grasna a gralha azul,
que é de fama o sementeiro
dos pinhais aqui do sul.
Heitor Borges de Macedo

No livro lê-se o passado
o presente e o momento
é o nosso amigo calado
que enriquece o pensamento.
Jandyra Sounis Carvalho de Oliveira

Das máscaras que ocultamos
e que toda gente tem:
Sempre ao rosto afivelamos
aquela que nos convém!
Joaquim Carvalho

Sou poeta, Trovador
na solidão desta rua...
Minhas serestas de amor
só tenho cantado à Lua.
Lairton T. de Andrade

Lá de cima do pinheiro,
a gralha emite um lamento:
- Pinhões, bem logo, ó lenheiro,
não mais semearei ao vento!...
Leonilda Hilgenberg Justus

Nem mesmo o inverno mais triste,
dentro da noite enfadonha,
tira a distância que existe
entre a minha e a tua fronha.
Lourdes Strozzi

Gota de água numa teia
pelo orvalho pendurada,
é jóia que se incendeia
no colo da madrugada
Lygia T. Fumagalli Ambrogi

Há trovas que o vento leva;
outras, o fogo desfaz...
Mas, as minhas, sem reserva
são trovas que o vento traz.
Maria Nicolas

A poesia, inspiração,
Fulge na alegria e dor...
São toques do coração,
Que nos empolgam no amor.
Marita França

Você que vive tão triste!
Quisera saber por que?
E tanta beleza existe,
só quem não vê, é você.
Nair Cravo Westphalen

João de barro, um engenheiro,
Que jamais leu apostila.
Seu ninho é quase um mosteiro,
- poema feito de argila-
Nei Garcez

Se queres um mundo aberto,
compreensivo num segundo,
é preciso abrir primeiro
o teu coração ao mundo.
Nelson S. D'Oliveira

Quando é longa e dura a estrada,
nós sempre aprendemos tanto,
que as conquistas, na chegada,
têm sempre o dobro do encanto.
Olga Agulhon

Tudo que é bom, nesta vida,
Foge-nos celeremente,
Somente a dor mais sentida
Fica na vida da gente.
Orlando Woczikosky

A luz ilumina o mundo
dando-lhe vida e calor
e no seu mister profundo
aquece também o amor.
Oswaldo Portugal Lobato

A verdadeira vitória
não é ter glórias a esmo,
mas ter a suprema glória
de ter vencido a si mesmo!
Swami Vivekananda

Se falta a luz ou calor,
para isso tem saída...
Só a falta do teu amor
me apaga e congela a vida!
Vânia Ennes

Nunca feches a carranca
de modo a transparecer,
ninguém gosta de ver tranca
no rosto do bem-querer.
Vasco José Taborda

Aberto em asas de paz
na escola, no lar, na igreja,
por todo o bem que nos faz,
o livro bendito seja.
Vera Vargas

Saudade, novo pensar,
um pensar do que passou,
querendo até resgatar
a beleza que ficou!
Vidal Idony Stockler

A deficiência não deve
ser olhada com desdém...
Só o louco é que se atreve
a zombar de quem a tem.
Zélia Simeão Poplade
Fontes:
Boletim Trovamar. União Brasileira de Trovadores – Balneário Camboriú-SC - Ano 4– N. 46 – outubro / 2008 (enviado por e-mail)

Boletim Informativo Calêndula Literária - UBT Porto Alegre/RS - n.364 - outubro 2008

TABORDA, Vasco José e WOCZIKOSKY, Orlando (orgs.). Antologia de Trovadores do Paraná. Curitiba: O Formigueiro, 1984.

Concursos com Inscrições Abertas

IV CONCURSO LITERÁRIO “CIDADE DE MARINGÁ”
PRAZO: 31.10.08

Modalidades e temas:
1. TROVA (Lírica ou filosófica)
2. SONETO (Decassílabo)
3. POEMA LIVRE (Máximo 30 linhas)
4. CRÔNICA (Máximo 30 linhas) DRAMATURGIA

(Textos teatrais adultos ou infantis que possibilitem a execução de um espetáculo de no mínimo, 40 minutos de duração).

Tema para todas as modalidades: ROÇA
(Não há necessidade de uso da palavra).

Máximo de 03 trabalhos em cada modalidade, sendo o concurso de trovas pelo sistema de envelopes. Demais modalidades: Papel A-4 em quatro vias, corpo 12, usando pseudônimo. Anexo, um envelope de identificação, indicando a modalidade.

Endereço: Academia de Letras de Maringá – Caixa Postal 982 – Maringá – PR – Cep 87001-970.

CONCURSO DE TROVAS DA UBT DE CAMPOS DOS GOYTACAZES

PRAZO: 31.10.08

Tema: CONHAQUE (Dividido em duas categorias: Líricas/filosóficas e Humorísticas).

Máximo de 03 trovas em cada categoria.

Sistema de envelopes. Trovas inéditas e de autoria do remetente.

Remessa para: Rua Santa Tereza, 189 – cep 28051-055 – Campos dos Goytacazes – RJ.

XIII CONCURSO LITERÁRIO DA ACADEMIA CAXIENSE DE LETRAS

PRAZO: 15.10.08 – Tema livre

MODALIDADES: Conto, crônica, poesia e obra literária.

NÚMERO DE TRABALHOS: Poesia, conto e crônica: Três, em três vias, com pseudônimo, juntamente com um envelope de identificação.

Obra literária: Apenas um trabalho, em uma única cópia, sob pseudônimo, juntamente com envelope de identificação.

PREMIAÇÃO: Haverá classificação do 1º ao 3º lugar em cada categoria.

REMESSA: Academia Caxiense de Letras – a/ c de Odanir Antonio Tomazzo – Rua João Bettega,
1104 F – Bairro Salgado Filho – CEP 95098-600 – Caxias do Sul – RS.

Em tempo: Colocar como remetente o próprio destinatário.

Fonte:
Boletim Informativo Calêndula Literária - UBT Porto Alegre/RS - n.364 - outubro 2008

Balaios de Trovas II

Numa oração plena e calma,
peço a Deus que acenda a luz
do túnel que há em minha alma
para eu poder ver Jesus!
Ademar Macedo-RN

Quer saber o que é amar?
Não fique buscando a esmo;
amar é como tirar
boas férias de si mesmo!
Amilton Maciel Monteiro – SP

Semeia sonhos, resiste,
planta amor pelos caminhos,
que a travessia mais triste
é a que fazemos sozinhos.
Antonio Juraci Siqueira - PA

Vou remando de partida
num mar imenso de paz...
mas as ruínas da vida
vão nadando, logo atrás!...
Ari de Campos- SC

Eu quase posso notar,
nos momentos de descanso,
a saudade cochilar
na cadeira de balanço!...
Arlindo Tadeu Hagen – MG

Quero que cantes comigo
no jardim da primavera
teu coração como abrigo –
mil beijos de mim espera.
Armando Sousa-Canadá

Numa trova é pouco o espaço,
e os sons, a ordenar a mão.
Nos versos que eu sempre faço,
quem escreve é o coração.
Cáritas Souzza- CE

Imitando o meu lamento
por que não me preza mais,
ouço a voz triste do vento
na plataforma do cais...
Cláudio Derli Silveira - RS

Vou navegar estes mares,
de calmaria e procela
para ver se entre os olhares
encontro aquele olhar dela.
Clênio Borges - RS

Sei quando vais demorar...
Mesmo assim, tudo ofereço:
quem espera para amar
paga ao tempo qualquer preço!
Clenir Neves Ribeiro - RJ

O ano finda, já em outubro
nada aconteceu na vida
onde não estás , descubro
que sem ti, fico perdida...
Clevane Pessoa Lopes-MG

Inverno é um estado de alma,
um não sei quê diferente,
que nos rouba a paz e a calma,
quando, em nós, se faz presente!
Delcy Canalles - RS

Eu quis falar de ternura,
quis abrir meu coração,
quando vi tanta amargura
nos olhos do meu irmão!
Doralice Gomes da Rosa - RS

Nosso amor floriu na infância,
criou raiz e depois,
foi encurtando a distância,
fazendo um só de nós dois.
Doralice Gomes da Rosa - RS

O alto-falante anunciava
a valsa de um querer-bem,
e o parque inteiro aguardava
ouvir seu nome, também.
Dorothy Jansson Moretti-SP

Sou trovador e transponho
os céus da imaginação
pelo galope do sonho
e no dorso da ilusão!
Eduardo Toledo-MG

Na dureza dos escombros,
quando as dores se equivalem,
amizade é mão nos ombros
embora os ombros não falem.
Flavio Stefani - RS

A minha vida é uma Trova,
trova de ilusão perdida,
pois a vida é grande prova,
que prova a Trova da vida!
Gislaine Canales- SC

Na vida, faço e desfaço
duras laçadas sem medo,
porque no ajuste do laço
é Deus quem me empresta o dedo!
Heloísa Zanconato - MG

Trovador, longe da infância,
contando as horas da idade,
rima tempo com distância
e distância com saudade.
Héron Patrício-MG

A noite, de ar seco, anidro,
por não ver no céu a lua,
põe-se a acender sóis de vidro
nos postes da minha rua!
Humberto – Poeta – SP

Trovas de amor e saudade
trazem mil temas diversos,
mas predomina a amizade
nascendo de tantos versos...
Ialmar Pio -RS

Quando no céu surge a Lua,
cheia de si, me arrebata,
lavando as trevas da rua
com sua chuva de prata!...
Joaquim Carlos - RJ

Poderia dizer mais
sobre a solidão mesquinha,
mas, não vou querer jamais;
ela nessa vida minha!
Josias Alcântara-ES

-Quando me entrego ao passado,
no meu devaneio infindo,
sonho, bom tempo, acordado,
pensando que estou dormindo.
Jose Lucas-RN

O tempo passa depressa,
mas, quem diz que eu envelheço?
- Cada olhar é uma promessa!
- Cada espera... Um recomeço!
José Ouverney - SP

SProblema sem solução
é o nosso amor desgastado;
já não vibra o coração,
mas vivemos lado a lado...
Lais Rios- RJ

Meu corpo colado ao teu...
dois seres...um sentimento!
Sonho que sobreviveu
apenas em pensamento.
Luiz Antonio Cardoso – SP

O sol é lâmpada acesa,
por Deus pai, como magia...
para pintar a beleza
da vida... dia após dia
Mara Melinni Garcia-RN

Em meus versos, de alma nua,
a ti, eu canto louvores,
SÃO FRANCISCO, Irmão da Lua,
do Sol e dos Trovadores!
Marisa Vieira Olivaes- RS

Quando a distância incomoda,
parece que, por maldade,
insiste em brincar de roda
com a lembrança...com a saudade...
Marlê Beatriz Araújo - RS

Os anônimos tropeiros
tiveram dias de glória;
com objetivos certeiros
registraram sua história.
Mifori – SP

Estudo trovas a fundo,
mas persisto na suspeita,
que a trova melhor do mundo
até hoje não foi feita!
Miguel Russowsky-SC

O Dia dos Namorados
dura toda a eternidade
para os mais apaixonados:
quem sabe amar de verdade.
Milton Souza – RS

Amigo eu trago guardado,
sempre com muita afeição,
naquele lugar sagrado
que se chama coração.
Neiva Fernandes-RJ

A despedida foi triste,
mas o tempo é passageiro,
e a distância não existe,
quando o amor é verdadeiro.
Neoly de Oliveira Vargas-RS

Com marido quarentão,
a velha disse o seguinte:
- Vou trocar meu Capitão
por dois marujos de vinte...
Paulo R. de Fraga Cirne - RS

Sem desejo interesseiro,
ao ver alguém na desgraça,
o benfeitor verdadeiro
é o que chega, ajuda... e passa!
Pedro Ornellas - SP

O que me faz tua ausência,
é causar-me pranto e dor.
Mas no amor há tanta essência
que sou escravo do amor!
Prof. Garcia-RN

A amizade Deus criou
naquele exato momento,
quando estrelas semeou
nas trevas do firmamento!
Roza de Oliveira-MG

No mar revolto da vida,
mesmo sem ter o roteiro,
sei que não sou nau perdida
porque Deus é o timoneiro.
Terezinha Brisolla - SP
Fontes:
Boletim Trovamar. União Brasileira de Trovadores – Balneário Camboriú-SC - Ano 4– N. 46 – outubro / 2008 (enviado por e-mail)

Boletim Informativo Calêndula Literária - UBT Porto Alegre/RS - n.364 - outubro 2008

UBT - Porto Alegre (Encontro de Outubro)

Dia 26 de outubro de 2008
Domingo - 12 horas
Local: Sede da UBT
Rua Otto Niemeyer, 246
Bairro Cavalhada

Almoço
Rodada de Trovas
Música

Lançamento dos livros de:
Zelinda Slomp
(Só Trovas...)

Severino Silveira de Souza
(Rimas do Entardecer)

Lisete Johnson
(Festarola na Biblio e Comidinhas Poéticas)

Milton Souza
(Poesias Para Declamar)

Concurso Relâmpago:
Tema: Regresso

Venha e convide os amigos

Mais informações:
3241 6422 ou 3241 5992

Fonte:
Boletim Informativo Calêndula Literária - UBT Porto Alegre/RS - n.364 - outubro 2008

III Jogos Florais de Balneário Camboriú (Programação)

(Sujeita a modificações)

Dia 7 de Novembro 2008
Encontro dos Trovadores no hotel, às 12, 00 horas.
Hospedagem para todos os Trovadores classificados e convidados.
(O café da manhã será por conta de cada um).

TARDE DA TROVA EM BRUSQUE

Saída 12h.
Chegada em Brusque: 13h .
Encontro na FIP (centro comercial), com almoço patrocinado pelo FIP.
Compras até as 17h, em seguida visita ao VIII Simpósio Internacional de Esculturas), visita ao Santuário de Azambuja e à gruta, uma parada na Praça das Bandeiras, para tirar fotos, e depois seguimos para a ABB (local do café colonial): chegada prevista a esse local 19h30, onde o Café Colonial já estará pronto para ser servido.
Apresentação do coral do Círculo Trentino e o canto alemão, e música para dançar (minifenarreco).
Rodada de Trovas.
(Almoço, Café Colonial e Chope patrocinados por Brusque)
Retorno para Balneário Camboriú, às 23 horas.

Dia 8 de Novembro 2008
10h - Varal de Trovas no Calçadão.
11h-Passeio turístico, a partir do Calçadão com a Av. Atlântida.
12h- Almoço (por conta de cada um).
14h- Teleférico - 50% de desc.
20h – Solenidade na Faculdade de Balneário Camboriú.
Distribuição livretos e coquetel

Dia 9 de Novembro 2008
11 horas – Oração ecumênica em trovas.
12 horas – Almoço de despedida no Cristo Luz-
Concurso Relâmpago-Tema: Amizade.
(O almoço de despedida é patrocínio de Miguel Russowsky)

Fonte:
Trovamar. União Brasileira de Trovadores – Balneário Camboriú-SC - Ano 4– N. 46 – outubro / 2008 (enviado por e-mail)

Virginia Woolf (Kew Gardens)

Tradução de Fabrício Cassilhas

Do canteiro oval de flores erguiam-se talvez centenas de talos se alongando entre folhas em formatos de coração ou de línguas, enquanto cresciam e se desenrolavam na ponta de pétalas vermelhas ou azuis ou amarelas manchadas com borrões que afloravam à superfície; e do escuro vermelho, azul ou amarelo dos seus interiores emergia uma estreita barra, áspera com pó de ouro e com um leve formato de clava na extremidade. As pétalas eram volumosas o bastante para se agitarem com a brisa, e quando elas se mexiam, as luzes vermelhas, amarelas e azuis passavam umas sobre as outras, tingindo alguns poucos centímetros de terra marrom por baixo, com borrões dos mais intrigantes. A luz caía ou sobre a lisa superfície cinza de uma pedrinha, ou sobre a concha de um caracol com veias circulares, em tons marrom, ou, quando caía sobre uma gota de chuva, se expandia com tamanha intensidade de vermelho, azul e amarelo que se esperava que de tão finas suas paredes se rompessem ou desaparecessem. Em vez disso, a gota, em um segundo, ficou de novo prateada, e a luz então se acomodou sobre a superfície de uma folha, revelando a ramificação de filetes de fibra sobre a superfície, e novamente se moveu e espalhou sua luz sobre os vastos espaços verdes abaixo das cúpulas das folhas em formatos de corações e línguas. Então a brisa soprou sem dúvida ainda mais vivaz no alto e as cores passavam no ar, nos os olhos de homens e mulheres que caminham por Kew Gardens em julho.

As silhuetas desses homens e mulheres afastavam-se dos canteiros de flores com um curioso movimento irregular, não diferente do das borboletas brancas e azuis que cruzaram a relva voando em ziguezague de canteiro em canteiro. O homem estava a pouco mais de quinze centímetros à frente da mulher, passeando despreocupadamente, enquanto ela passava apreensiva, apenas virava a cabeça de vez em quando para ver se as crianças estavam logo atrás. O homem manteve certa distância da mulher de propósito, embora talvez não percebesse, pois queria seguir com seus pensamentos.

“Há quinze anos estive aqui com a Lily”, pensou. “Sentamos em algum lugar por ali, perto do lago, e durante toda a tarde quente, implorei lhe que se casasse comigo. Como a libélula circulava ao nosso redor: como eu via de forma tão clara a libélula e seu sapato com uma fivela retangular e prateada nos dedos. Durante todo o tempo em que eu falava, via seu sapato e quando ele se mexia impacientemente eu sabia sem precisar olhar para cima o que ela iria dizer: ela toda parecia estar no sapato. E o meu amor, o meu desejo, estavam na libélula; por algum motivo eu sabia que se ela pousasse lá, naquela folha, aquela grande com uma flor vermelha no meio, se aquela libélula pousasse naquela folha, ela diria “Sim” na mesma hora. Mas a libélula rodeou e rodeou: não pousou em lugar nenhum é claro, felizmente não, ou então eu não estaria aqui sentado com Eleanor e as crianças. Diga-me Eleanor. Você pensa no seu passado?

“Por que a pergunta, Simon?”

“Porque estava pensando no passado. Estava pensando na Lily, a mulher com quem eu poderia ter me casado… Bem, por que está tão calada? Você se incomoda por eu pensar no meu passado?”

“Por que é que eu deveria me importar, Simon? A gente não pensa sempre no passado, em um jardim com homens e mulheres deitados em baixo de árvores? Eles não são o nosso passado, tudo o que resta dele, aqueles homens e aquelas mulheres e, aqueles fantasmas deitados em baixo das árvores,… a nossa felicidade, a nossa realidade ?”

“Para mim, uma fivela de sapato retangular e prateada e uma libélula”.

“Para mim, um beijo. Imagine seis garotinhas sentadas diante de seus cavaletes há vinte anos, lá embaixo perto do lago, pintando vitórias-régias, as primeiras vitórias-régias vermelhas que vi na vida. E de repente um beijo, na nuca. Minha mão ficou tremendo a tarde inteira, de tal forma que eu não conseguia mais pintar. Peguei meu relógio e marquei o horário em que me permitiria pensar no beijo por cinco minutos apenas foi tão precioso o beijo de uma mulher grisalha com uma verruga no nariz, a mãe de todos os beijos da minha vida. Venha, Caroline, venha Hubert.”

Eles contornaram o canteiro de flores, agora caminhando lado a lado, e logo diminuíram de tamanho entre às arvores e pareciam meio transparentes quando a luz do sol e a sombra banhavam as costas deles parecendo manchas irregulares trêmulas.

No canteiro oval de flores o caracol, cuja concha tingiu-se de vermelho, azul e amarelo num espaço de aproximadamente dois minutos, agora parecia estar se movendo lentamente em sua concha, e em seguida começou a mover as migalhas de terra solta que se desprendiam e desciam rolando enquanto ele passava por elas. Ele parecia ter um destino bem definido à sua frente, diferenciando-se nesse aspecto do excêntrico inseto verde angular de passos altos que tentava passar na sua frente, e esperava por um segundo com suas antenas que vibravam como se estivesse pensando, e então deu um passo de maneira tão rápida quanto estranha na direção oposta. Penhascos marrons com lagos verdes profundos nos vales, árvores achatadas em forma de pá que se agitavam da raiz à extremidade, penedos redondos de rocha cinza, uma vasta superfície enrugada com uma fina textura estalante todos esses objetos que cruzavam o curso do caracol entre um talo e outro para seu destino. Antes de decidir se contornava a tenda curvada de uma folha morta ou se a encarava, ao lado do canteiro os pés de outros seres humanos passaram.

Desta vez ambos eram homens. O mais jovem dos dois tinha uma expressão talvez de uma calma não natural, ele ergueu os olhos e fixou-os para frente enquanto seu companheiro falava, e sem rodeios seu companheiro falava, ele olhava para o chão e às vezes abria a boca só após uma longa pausa e às vezes nem mesmo abria. O homem mais velho tinha um curioso jeito irregular e vacilante de andar sacudindo a mão para frente e jogando a cabeça de repente, mais exatamente como um cavalo de carruagem cansado de esperar do lado de fora da casa; mas no homem esses gestos eram indecisos e sem finalidade. Ele falava quase sem pausas, sorria para si mesmo e novamente começava a falar, como se o sorriso fosse uma resposta. Falava sobre espíritos os espíritos da morte, que, de acordo com ele, estavam agora mesmo lhe contando todos os tipos de coisas extravagantes sobre sua experiências no paraíso.

“O Paraíso era conhecido pelos anciões como Tessália, William, e agora, com essa guerra, o espírito está ressoando entre as colinas como o trovão.” Ele parou, parecia ouvir, sorriu, sacudiu a cabeça e continuou:

“Você tem uma pequena bateria elétrica e um pedaço de borracha para isolar o fio isolar? vedar? bem, vamos deixar os detalhes de lado, melhor não entrar em detalhes que poderiam não ser entendidos e resumindo a maquininha fica em qualquer posição conveniente ao lado da cabeceira da cama, digamos, em uma bela mesinha de mogno. Tudo arrumado por trabalhadores contratados sob minha orientação, a viúva aguça seus ouvidos e invoca o espírito concordando com um sinal. Mulheres! Viúvas! Mulheres de preto!”

A essa altura ele parece ter tido uma visão de um vestido de uma mulher, que na sombra parecia ser roxo escuro. Ele tirou seu chapéu, colocou a mão sobre o peito, e se apressou em direção a ela murmurando e fazendo gestos exaltados. Mas William o pegou pela manga e tocou em uma flor com a ponta da sua bengala para desviar a atenção do velho. Após nota-la por um momento em uma confusão o velho inclinou seu ouvido para ela e pareceu ouvir uma voz vindo dela, para ele começou falando sobre as florestas do Uruguai que visitou há milhares de anos acompanhado da mais bela jovem da Europa. Podia-se ouvi-lo murmurando sobre as florestas do Uruguai cobertas com pétalas lustrosas de rosas tropicais, rouxinóis, praias com ondas, sereias, e mulheres afogadas no mar, enquanto ele padecia com as tentativas de William de fazê-lo se mexer, o olhar de uma paciência estóica crescia lentamente sobre a face de William cada vez mais profundo.

“Nell, Bert, Lot, Cess, Phil, Pa, ele diz, eu diz, ela diz, eu diz, eu diz, eu diz
Meu Bert, Sis, Bill, Vovô, o velho, açúcar,
Açúcar, farinha, peixe defumado, vegetais,
Açúcar, açúcar, açúcar.”

A mulher sonolenta examinava cuidadosamente a disposição das palavras que caíam nas flores permanecendo calma, firme, de pé no chão, com uma expressão curiosa. Ela os viu da mesma forma que uma dorminhoca acordando de um sono pesado vê um castiçal de bronze refletindo a luz de um jeito diferente, e fecha os olhos e os abre, e vendo mais uma vez o candelabro de bronze, finalmente desperta e fita o castiçal com todas as suas forças. Então a mulher com os olhos pesados fez uma pausa próxima ao canteiro oval de flores, e parou até mesmo para fingir escutar o que a outra mulher dizia. Ela continuou deixando que as palavras despencassem sobre ela, oscilando a parte de cima do seu corpo lentamente para frente e para trás olhando para as flores. Então ela sugeriu que elas achassem um lugar para sentar e tomar chá.

O caracol tinha considerado todas as possibilidades de alcançar seu destino que não incluíssem dar a volta pela folha seca ou escalá-la. Deixando de lado o esforço que era preciso para escalar a folhar, ele tinha dúvidas se a textura fina que vibrava com estalos estrondosos quando tocada até mesmo pela ponta de suas antenas suportaria seu peso; e isso por fim determinou que ele rastejasse por debaixo dela, pois em uma parte da folha havia uma curvatura alta o bastante do chão para que ele passasse. Ele acabara de colocar sua cabeça sobe a folha e estava verificando o alto telhado marrom e se acostumando à serena luz marrom quando mais duas pessoas passaram por fora do gramado. Nesta época os dois eram jovens, um homem e uma mulher. Ambos na puberdade, ou ainda naquela época que antecede a puberdade, aquela antes das bolsas lisas e rosadas das flores romperem sua viscosa membrana, quando as asas da borboleta, embora crescidas por completo, não tem movimento ao sol.

“É uma sorte não ser sexta feira”, ele observou.

“Por quê? Você acredita em sorte?”

“Eles cobram seis centavos na sexta feira”.

“O que são seis centavos? Isso não vale seis centavos?”

“O que é ‘isso’, o que você quer dizer com ‘isso’?”

“Ah, nada quer dizer que você sabe o que eu quero dizer”.

Longas pausas ocorriam após esses comentários, eles se pronunciaram com vozes desafinadas monótonas. O casal ficou parado na beira do canteiro de flores, e juntos empurraram a ponta do seu guarda-sol para dentro da terra macia. A ação e o fato de que suas mãos apoiavam-se sobre as dela expressavam o que eles sentiam de um jeito estranho, como se essas palavras curtas e insignificantes também manifestassem alguma coisa, palavras com asas curtas para corpos tão cheios de significados; inadequados para levá-las para longe e assim pousando de maneira desastrada sobre os objetos tão comuns que os rodeavam, e eram tão imponentes para um toque tão inexperiente; mas quem sabe (assim eles pensaram enquanto pressionaram o guarda-sol para dentro da terra) que precipícios não se escondem, ou que declives de gelo não brilham no sol do lado de lá? Quem sabe? Quem é que já se deparou com isso antes? Até mesmo quando ela imaginava que tipos de chá lhe davam em Kew Gardens, ele sentiu que havia algo por trás das suas palavras, e permaneceram vastas e densas atrás delas, e a névoa dissipou lentamente e revelou Ó céus, o que eram aquelas formas? pequenas mesas brancas, e garçonetes que olhavam primeiro para ela para então olharem para ele, e havia uma conta que ele pagaria com uma moeda de verdade de dois xelins, e era de verdade, tudo de verdade, ele se assegurou, dedilhando a moeda em seu bolso, de verdade para todos exceto para ele e para ela, até mesmo para ele aquilo começava a parecer de verdade, mas então era tudo tão excitante para ficar mais tempo parado e pensando, e ele puxou o guarda-sol para fora da terra com um solavanco e estava impaciente para encontrar o lugar em que se tomava chá com as outras pessoas, como as outras pessoas.

“Vem comigo, Trissie; está na hora do chá.”

“Onde se toma chá?” ela perguntou com uma empolgação fora do comum em sua voz, olhando vagamente ao seu redor e se deixando aproximar do gramado, arrastando seu guarda-sol, virando sua cabeça de um lado para o outro, esquecendo-se do chá, desejando ir lá em baixo e depois lá em baixo, lembrando de orquídeas e garças entre as flores selvagens, um pagode chinês e um pica-pau-de-topete-vermelho; mas ele a chamou.

Assim aos pares, seguidos uns dos outros com praticamente os mesmos movimentos irregulares e sem direção passavam pelo canteiro de flores e estavam envoltos em camadas atrás de camadas de vapor azul esverdeado, onde de início seus corpos tinham tanto substância como cor, porém mais tarde a substância e a cor se dissolveram na atmosfera azul esverdeado. Como estava quente! Tão quente que até mesmo os melros preferiam saltar, como pássaros mecânicos, à sombra das flores, com longas pausas entre um movimento e outro; ao invés de perambular sem rumo, as borboletas brancas dançavam umas sobre as outras, fazendo com seus flocos brancos delineassem o contorno de uma coluna de mármore estilhaçada sobre as flores mais altas; os telhados de grama da casa de palmas brilhavam como se uma loja cheia de guarda-chuvas verdes e brilhantes tivesse aberto ao sol; e com o zunido do avião, a voz do céu de verão murmurou sua alma selvagem. Amarelo e preto, rosa e gelo, formas de todas essas cores, homens, mulheres e crianças foram tingidas por um segundo acima do horizonte, e então, vendo a amplitude de amarelo que caía sobre a grama, elas hesitaram e foram para debaixo das árvores, dissolveram-se como gotas de água em uma atmosfera verde e amarela, tingindo-a sutilmente de vermelho e azul. Era como se todos os corpos volumosos e pesados tivessem afundado no calor sem se mexer e caíssem de maneira confusa sobre o chão, mas suas vozes vinham oscilantes como se fossem chamas reclinando-se dos largos corpos de cera das velas. Vozes. Isso mesmo, vozes. Vozes sem palavras, quebrando bruscamente o silêncio com um contentamento tão intenso, com tanta vontade de paixão, ou, nas vozes das crianças, tantas novas surpresas; quebrando o silêncio? Mas não havia silêncio; o tempo todo os ônibus mudavam de direção e trocavam suas marchas; como uma vasta coleção de caixas chinesas todas de ferro ornado mudando incessantemente uma dentro da outra a cidade murmurava; no topo vozes gritavam e as pétalas de uma infinidade de flores passam suas cores no ar.

Fonte:
http://www.ichs.ufop.br/tradufop/
http://www.evanevanstours.co.uk (foto)

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Cidade da Criança (Itu) celebra Dia da Leitura no domingo

ITU - A partir deste ano, o Dia das Crianças é, também, o Dia Estadual da Leitura em São Paulo, como resultado de uma proposta realizada em 2006 pelo Instituto Ecofuturo à Secretaria de Cultura do Estado. Para sensibilizar pais e educadores sobre a importância de oferecer leitura às crianças desde o nascimento, o próximo dia 12 de outubro terá uma extensa programação com leitura para crianças e adultos em vários locais do Estado de São Paulo, além de oficinas para educadores.

Em Itu, o Dia da Leitura será realizado na Cidade da Criança por voluntários da Biblioteca Comunitária prof. Waldir de Souza Lima. Haverá leitura de livros infantis e contação de histórias em dois horários: às 10 horas na Casa do Tarzan e às 15 horas no Coreto. Durante todo o dia, livros, revistas, gibis e brinquedos do acervo infanto-juvenil da Biblioteca Comunitária estarão à disposição das crianças na Casa do Tarzan.

O evento faz parte da programação da Secretaria Municipal de Turismo para o local, que contará ainda com apresentações de dublagem dos grupos de Cabreúva Patrulha Troupe Juvenil e Gingado Manero; hapkido e taekwondo com a Fábrica Academia; e shows com a banda Happy Hour e a dupla sertaneja Erasmo e Rafael.

O Dia da Leitura deste ano convidará todos a ler para as crianças no domingo, dia 12 de outubro, estimulando nelas a vontade e a paixão de ler, numa iniciativa batizada de Brincar de Ler. No dia serão distribuídos exemplares do Passaporte Brincar de Ler, um guia de 23 páginas que traz dicas de como implantar o gosto pela leitura em crianças desde o nascimento, mesmo que os pais sejam analfabetos.

A ação conta com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, Poiesis, São Paulo Estado de Leitores, Fundação Victor Civita, Câmara Brasileira do Livro (CBL) e Associação Nacional de Livrarias (ANL). O objetivo, agora, é transformar esta conquista estadual em uma lei nacional, já em votação em Brasília. Você pode manifestar apoio deixando sua assinatura no site www.diadaleitura.org.br .

Fonte:
E-mail enviado por José Renato M. Galvão.
Biblioteca Comunitária Prof. Waldir de Souza Lima

Raul Pompéia (Conto de Fadas)

Contra-sensos de atavismo. Algumas vezes nascem príncipes da poeira humilde das ruas. Não da espécie dos conspiradores felizes, que fazem da própria nulidade original arma de guerra e lutam e sobem, cobrejando através dos conhecimentos até campear triunfantes sobre o domínio dos homens, não: verdadeiros príncipes, que o são ao nascer; que têm a púrpura do manto diluída em glóbulos de altivo sangue, absolutamente a salvo da embolia mortífera que a impureza do ambiente da sua miséria poderia ocasionar; príncipes nobilíssimos, que têm a força do emblemático cetro vertebrada em espinha dorsal, inflexível às humilhações da sorte, e no olhar firme, sem jaça, que lhes clareia a testa, a majestade dos diademas.

Podemos encontrá-los, ao dobrar uma esquina, em andrajos, face cavada pela necessidade e pelo suor, - lágrimas de fadiga.

Pesa-lhes mais que a ninguém a fatalidade arquitetônica do edifício social, que obriga a superposição dos andares e a inferioridade do baldrame.

São oriundos desta raça os piores criminosos e os revolucionários sublimes. Entre estes extremos há, porém, o meio termo, mais comum, dos obscuros que sucumbem, bloqueados na vaidade inflexível da imaginária realeza.

"Impossível! monologava Aristo. Com os diabos! É uma solução arrebatada, que não me entusiasma. Suprimir-me! É boa! e o meu lugar no refeitório da vida? Então não há um talher para cada um nesta mesa redonda, como não há, no campo, um figo para cada pássaro. Quem me privou do figo nesta partilha? Implorar... Mas haverá pássaros mendigos? Há criancinhas que esmolam cantando; nenhuma outra miséria conheço que cante; não há lágrimas aladas; a própria chuva, porque parece pranto, cai na terra. Não será, pois, a vida como o espaço, e as aspirações como um vôo? Ah! mas reflitamos com justeza.

E o que pensarão os figos, desta vida? Que opinião a deles sobre os pássaros e sobre as aspirações? Também, pobrezinhos, têm um coração que palpita insensivelmente. Abri um figo; vereis a polpa ouriçada de pontas sangrentas... Como não? os frutos sangram! Têm todos os direitos da maternidade... Não respeitais a maternidade?... inclusive o Santíssimo direito da dor! Percebo, percebo. Há homens-figos, há homens-pássaros. Sim! mas eu, figo!... uma figa! É preciso que um degrau se estenda embaixo, para que outro degrau se estenda em cima, e a escada suba?...

Eu trabalhei o ferro. Como me compreendia o másculo metal, parente da energia inflexível de meu gênio! Não me valeu a força de operário: faltou-me a habilidade de mendigo. Trabalhei então o pano. Homens do dispêndio, mantenedores da indústria, não sabeis de que tecido se fazem as ricas vestes. Passaram fibras de coração pelos teares; tingiram-se os padrões com as cores escuras da miséria. Conheceis os rebanhos humanos encurralados nas fábricas. O carneiro dá a lã. Toda essa lã puríssima: sensibilidade, delicadeza, pudor, altivez, de que se faz a superioridade moral, se apara ao rebanho humano.

Este precioso estofo: vedes esta rosa entre folhas, labiada em pétalas esplêndidas sobre a trama da tecelagem? É a honra de uma operária, a infâmia feita tinturaria. Não quiseram que eu visse o que eu vi, nem que, vendo-o sentisse.

Passei a ser compositor. Ia encontrar de frente o pensamento, como encontrara a indústria. Maravilhou-me a infinidade dos tipos nos caixotins, palavras reduzidas a migalhas, idéias pulverizadas! Criei amor ao estanho dos tipos. O estanho vale mais que o bronze; porque se de bronze se pode fazer o glorioso escritor, de estanho se faz o livro. Ao metal do gloriado prefiro o metal da glória.

Deram-me a compor esta frase de um poeta: Filosofia do mar: os menores peixes, devoram-nos os maiores. Assim os homens.

E nesse dia não compus mais. E odiei o estanho; voltei definitivamente às velhas simpatias pelo ferro."

E Aristo amaciava na palma da mão o ferro de um punhal, com a alma varada pela meditação cruciante, sentindo rasgar-se-lhe aos pés a aberta por onde, mais dia menos dia, nos escapamos todos para a sombra.

- Aristo, vem comigo; disse-lhe alguém ao ouvido, - uma pequenina voz de mulher, áurea e musical.

Era uma visão de risos, trajando o vestido etéreo dos sonetos de Petrarca, maneando a haste leve de uma varinha de fadas. Donde vens, desertora gentil dos contos da infância, graciosa importuna do meu desespero?

- Anda comigo, Aristo. Partamos para a independência feliz.

E partiram, Aristo e a fada, para uma região fantástica e surpreendente.

Céu vasto, de transparência inexprimível. As alvas nuvens, por uma superfluidade de asseio iam, como esponjas, esfregando, uma a uma, as safiras limpas do céu. Cobria-se a terra de pedraria, poeira cintilante de gemas; erguiam-se taludes de facetado cristal. Estranha vegetação brotava. Perfeita floresta de ourivesaria. Troncos de ouro lavrado e folhagem soldada a fogo. Através dos ramos reluzentes, a viração ia e vinha, fria do contato metálico da selva, sem que o mais débil galho tremesse, sem que a mínima flor vacilasse no hastil. Às vezes, a um sopro mais forte, soltava-se um ramúsculo com um estalido seco de agulha partida, ou uma flor desarmava-se, e as pétalas caíam, produzindo o barulho de moedinhas pelo chão. Nenhum outro rumor, nem um perfume, nem uma vida, em toda a paisagem, imóvel e rutilante.

Desaparecera a fada com o rosto em risos e o vestido celeste, que descansavam a vista da crueza das cintilações.

Brilhava no ar, terrivelmente, a claridade verde dos reflexos combinados das safiras do céu e do ouro da floresta.

Horas passadas, Aristo teve fome; exacerbou-lhe a sede a secura cáustica do ambiente. Descobriu pomos no arvoredo, inchados de maturidade, e gotas de orvalho no cálice das flores. Mas, quando quis trincar os pomos, quebravam-se-lhe os dentes contra a rija resistência da casca dourada, e bebendo orvalho, puríssimos diamantes aliás, foram-lhe as arestas da pedra, ensangüentar o esôfago.

- Maldição! maldição! Que me trouxeram ao inferno da pureza e da inflexibilidade!

A fada, aparecendo:

- Eu sou, pobre Aristo, a fada Ironia. Guiei-te à pátria inexorável do teu orgulho.

Fonte:
http://www.biblio.com.br

Machado de Assis (A Chinela Turca)

Vede o Bacharel Duarte. Acaba de compor o mais teso e correto laço de gravata que apareceu naquele ano de 1850, e anunciam-lhe a visita do Major Lopo Alves. Notai que é de noite, e passa de nove horas. Duarte estremeceu, e tinha duas razões para isso. A primeira era ser o major, em qualquer ocasião, um dos mais enfadonhos sujeitos do tempo. A segunda é que ele preparava-se justamente para ir ver, em um baile, os mais finos cabelos loiros e os mais pensativos olhos azuis, que este nossa clima, tão avaro deles, produzira. Datava de uma semana aquele namoro. Seu coração deixando-se prender entre duas valsas, confiou aos olhos, que eram castanhos, uma declaração em regra, que eles pontualmente transmitiram à moça, dez minutos antes da ceia, recebendo favorável resposta logo depois do chocolate. Três dias depois, estava a caminho a primeira carta, e pelo jeito que levavam as cousas não era de admirar que, antes do fim do ano, estivessem ambos a caminho da igreja. Nestas circunstâncias, a chegada de Lopo Alves era uma verdadeira calamidade. Velho amigo da família, companheiro de seu finado pai no exército, tinha jus o major a todos os respeitos. Impossível despedi-lo ou tratá-lo com frieza. Havia felizmente uma circunstância atenuante; o major era aparentado com Cecília, a moça dos olhos azuis; em caso de necessidade, era um voto seguro.

Duarte enfiou um chambre e dirigiu-se para a sala, onde Lopo Alves, com um rolo debaixo do braço e os olhos fitos no ar, parecia totalmente alheio à chegada do bacharel.

— Que bom vento o trouxe a Catumbi a semelhante hora? perguntou Duarte, dando à voz uma expressão de prazer, aconselhada não menos pelo interesse que pelo bom-tom.

— Não sei se o vento que me trouxe é bom ou mau, respondeu o major sorrindo por baixo do espesso bigode grisalho; sei que foi um vento rijo. Vai sair?

— Vou ao Rio Comprido.

— Já sei; vai à casa da viúva Meneses. Minha mulher e as pequenas já lá devem estar: eu irei mais tarde, se puder. Creio que é cedo, não?

Lopo Alves tirou o relógio e viu que eram nove horas e meia. Passou a mão pelo bigode, levantou-se, deu alguns passos na sala, tornou a sentar-se e disse:

— Dou-lhe uma notícia, que certamente não espera. Saiba que fiz... fiz um drama.

— Um drama! exclamou o bacharel.

— Que quer? Desde criança padeci destes achaques literários. O serviço militar não foi remédio que me curasse, foi um paliativo. A doença regressou com a força dos primeiros tempos. Já agora não há mais remédio senão deixá-la, e ir simplesmente ajudando a natureza.

Duarte recordou-se de que efetivamente o major falava noutro tempo de alguns discursos inaugurais, duas ou três nênias e boa soma de artigos que escrevera acerca das campanhas do Rio da Prata. Havia porém muitos anos que Lopo Alves deixara em paz os generais platinos e os defuntos; nada fazia supor que a moléstia volvesse, sobretudo caracterizada por um drama. Esta circunstância explicá-la-ia o bacharel, se soubesse que Lopo Alves algumas semanas antes, assistira à representação de uma peça do gênero ultra-romântico, obra que lhe agradou muito e lhe sugeriu a idéia de afrontar as luzes do tablado. Não entrou o major nestas minuciosidades necessárias, e o bacharel ficou sem conhecer o motivo da explosão dramática do militar. Nem o soube, nem curou disso. Encareceu muito as faculdades mentais do major, manifestou calorosamente a ambição que nutria de o ver sair triunfante naquela estréia, prometeu que o recomendaria a alguns amigos que tinha no Correio Mercantil, e só estacou e empalideceu quando viu o major, trêmulo de bem-aventurança, abrir o rolo que trazia consigo.

— Agradeço-lhe as suas boas intenções, disse Lopo Alves, e aceito o obséquio que me promete; antes dele, porém, desejo outro. Sei que é inteligente e lido; há de me dizer francamente o que pensa deste trabalho. Não lhe peço elogios, exijo franqueza e franqueza rude. Se achar que não é bom, diga-o sem rebuço.

Duarte procurou desviar aquele cálix de amargura; mas era difícil pedi-lo, e impossível alcançá-lo. Consultou melancolicamente o relógio, que marcava nove horas e cinqüenta e cinco minutos, enquanto o major folheava paternalmente as cento e oitenta folhas do manuscrito.

— Isto vai depressa, disse Lopo Alves; eu sei o que são rapazes e o que são bailes. Descanse que ainda hoje dançará duas ou três valsas com ela, se a tem, ou com elas. Não acha melhor irmos para o seu gabinete?

Era indiferente, para o bacharel, o lugar do suplício; acedeu ao desejo do hóspede. Este, com a liberdade que lhe davam as relações, disse ao moleque que não deixasse entrar ninguém. O algoz não queria testemunhas. A porta do gabinete fechou-se; Lopo Alves tomou lugar ao pé da mesa, tendo em frente o bacharel, que mergulhou o corpo e o desespero numa vasta poltrona de marroquim, resoluto a não dizer palavra para ir mais depressa ao termo.

O drama dividia-se em sete quadros. Esta indicação produziu um calafrio no ouvinte. Nada havia de novo naquelas cento e oitenta páginas, senão a letra do autor. O mais eram os lances, os caracteres, as ficelles, e até o estilo dos mais acabados tipos do romantismo desgrenhado. Lopo Alves cuidava pôr por obra uma invenção, quando não fazia mais do que alinhavar as suas reminiscências. Noutra ocasião, a obra seria um bom passatempo. Havia logo no primeiro quadro, espécie de prólogo, uma criança roubada à família, um envenenamento, dous embuçados, a ponta de um punhal e quantidade de adjetivos não menos afiados que o punhal. No segundo quadro dava-se conta da morte de um dos embuçados, que devia ressuscitar no terceiro, para ser preso no quinto, e matar o tirano do sétimo. Além da morte aparente do embuçado, havia no segundo quadro o rapto da menina, já então moça de dezessete anos, um monólogo que parecia durar igual prazo, e o roubo de um testamento.

Eram quase onze horas quando acabou a leitura deste segundo quadro. Duarte mal podia conter a cólera; era já impossível ir ao Rio Comprido. Não é fora de propósito conjeturar que, se o major expirasse naquele momento, Duarte agradecia a morte como um benefício da Providência. Os sentimentos do bacharel não faziam crer tamanha ferocidade; mas a leitura de um mau livro é capaz de produzir fenômenos ainda mais espantosos. Acresce que, enquanto aos olhos carnais do bacharel aparecia em toda a sua espessura a grenha de Lopo Alves, fugiam-lhe ao espírito os fios de ouro que ornavam a formosa cabeça de Cecília; via-a com os olhos azuis, a tez branca e rosada, o gesto delicado e gracioso, dominando todas as demais damas que deviam estar no salão da viúva Meneses. Via aquilo, e ouvia mentalmente a música, a palestra, o soar dos passos, e o ruge-ruge das sedas; enquanto a voz rouquenha e sensaborona de Lopo Alves ia desfiando os quadros e os diálogos, com a impassibilidade de uma grande convicção.

Voava o tempo, e o ouvinte já não sabia a conta dos quadros. Meia-noite soara desde muito; o baile estava perdido. De repente, viu Duarte que o major enrolava outra vez o manuscrito, erguia-se, empertigava-se, cravava nele uns olhos odientos e maus, e saía arrebatadamente do gabinete. Duarte quis chamá-lo, mas o pasmo tolhera-lhe a voz e os movimentos. Quando pôde dominar-se, ouviu o bater do tacão rijo e colérico do dramaturgo na pedra da calçada.

Foi à janela; nada viu nem ouviu; autor e drama tinham desaparecido.

— Por que não fêz ele isso a mais tempo? disse o rapaz suspirando.

O suspiro mal teve tempo de abrir as asas e sair pela janela fora, em demanda do Rio Comprido, quando o moleque do bacharel veio anunciar-lhe a visita de um homem baixo e gordo.

— A esta hora? exclamou Duarte.

— A esta hora, repetiu o homem baixo e gordo, entrando na sala. A esta ou a qualquer hora, pode a polícia entrar na casa do cidadão, uma vez que se trata de um delito grave.

— Um delito!

— Creio que me conhece...

— Não tenho essa honra.

— Sou empregado na polícia.

— Mas que tenho eu com o senhor? de que delito se trata?

— Pouca cousa: um furto. O senhor é acusado de ter subtraído uma chinela turca. Aparentemente não vale nada ou vale pouco a tal chinela. Mas há chinela e chinela. Tudo depende das circunstâncias.

O homem disse isto com um riso sarcástico, e cravando no bacharel uns olhos de inquisidor. Duarte não sabia sequer da existência do objeto roubado. Concluiu que havia equívoco de nome, e não se zangou com a injúria irrogada à sua pessoa, e de algum modo à sua classe, atribuindo-se-lhe a ratonice. Isto mesmo disse ao empregado da polícia, acrescentando que não era motivo, em todo caso, para incomodá-lo a semelhante hora.

— Há de perdoar-me, disse o representante da autoridade. A chinela de que se trata vale algumas dezenas de contos de réis; é ornada de finíssimos diamantes, que a tornam singularmente preciosa. Não é turca só pela forma, mas também pela origem. A dona, que é uma de nossas patrícias mais viajeiras, esteve, há cerca de três anos no Egito, onde a comprou a um judeu. A história, que este aluno de Moisés referiu acerca daquele produto da indústria muçulmana, é verdadeiramente miraculosa, e, no meu sentir, perfeitamente mentirosa. Mas não vem ao caso dizê-la. O que importa saber é que ela foi roubada e que a polícia tem denúncia contra o senhor.

Neste ponto do discurso, chegara-se o homem à janela; Duarte suspeitou que fosse um doudo ou um ladrão. Não teve tempo de examinar a suspeita, porque dentro de alguns segundos, viu entrar cinco homens armados, que lhe lançaram as mãos e o levaram, escada abaixo, sem embargo dos gritos que soltava e dos movimentos desesperados que fazia. Na rua havia um carro, onde o meteram à força. Já lá estava o homem baixo e gordo, e mais um sujeito alto e magro, que o receberam e fizeram sentar no fundo do carro. Ouviu-se estalar o chicote do cocheiro e o carro partiu à desfilada.

— Ah! ah! disse o homem gordo. Com que então pensava que podia impunemente furtar chinelas turcas, namorar moças louras, casar talvez com elas... e rir ainda por cima do gênero humano.

Ouvindo aquela alusão à dama dos seus pensamentos, Duarte teve um calafrio. Tratava-se, ao que parecia, de algum desforço de rival suplantado. Ou a alusão seria casual e estranha à aventura? Duarte perdeu-se num cipoal de conjeturas, enquanto o carro ia sempre andando a todo galope. No fim de algum tempo, arriscou uma observação.

— Quaisquer que sejam os meus crimes, suponho que a polícia...

— Nós não somos da polícia, interrompeu friamente o homem magro.

— Ah!

— Este cavalheiro e eu fazemos um par. Ele, o senhor e eu fazemos um terno. Ora, terno não é melhor que par; não é, não pode ser. Um casal é o ideal. Provavelmente não me entendeu?

— Não, senhor.

— Há de entender logo mais.

Duarte resignou-se à espera, enfronhou-se no silêncio, derreou o corpo, e deixou correr o carro e a aventura. Obra de cinco minutos depois estacavam os cavalos.

— Chegamos, disse o homem gordo.

Dizendo isto, tirou um lenço da algibeira e ofereceu-o ao bacharel para que tapasse os olhos. Duarte recusou, mas o homem magro observou-lhe que era mais prudente obedecer que resistir. Não resistiu o bacharel; atou o lenço e apeou-se. Ouviu, daí a pouco, ranger uma porta; duas pessoas, — provavelmente as mesmas que o acompanharam no carro, — seguraram-lhe as mãos e o conduziram por uma infinidade de corredores e escadas. Andando, ouvia o bacharel algumas vozes desconhecidas, palavras soltas, frases truncadas. Afinal pararam; disseram-lhe que se sentasse e destapasse os olhos. Duarte obedeceu; mas ao desvendar-se, não viu ninguém mais.

Era uma sala vasta, assaz iluminada, trastejada com elegância e opulência. Era talvez sobreposse a variedade dos adornos; contudo, a pessoa que os escolhera devia ter gosto apurado.

Os bronzes, charões, tapetes, espelhos, — a cópia infinita de objetos que enchiam a sala, era tudo da melhor fábrica. A vista daquilo restituiu a serenidade de ânimo ao bacharel; não era provável que ali morassem ladrões.

Reclinou-se o moço indolentemente na otomana... Na otomana! Esta circunstância trouxe à memória do rapaz o principio da aventura e o roubo da chinela. Alguns minutos de reflexão bastaram para ver que a tal chinela era já agora mas que problemática. Cavando mais fundo no terreno das conjeturas, pareceu-lhe achar uma explicação nova e definitiva. A chinela vinha a ser pura metáfora; tratava-se do coração de Cecília, que ele roubara, delito de que o queria punir o já imaginado rival. A isto deviam ligar-se naturalmente as palavras misteriosas do homem magro: o par é melhor que o terno; um casal é o ideal.

— Há de ser isto, concluiu Duarte; mas quem será esse pretendente derrotado?

Neste momento abriu-se uma porta do fundo da sala e negrejou a batina de um padre alvo e calvo. Duarte levantou-se, como por efeito de uma mola. O padre atravessou lentamente a sala, ao passar por ele deitou-lhe a bênção, e foi sair por outra porta rasgada na parede fronteira. O bacharel ficou sem movimento, a olhar para a porta, a olhar sem ver, estúpido de todos os sentidos. O inesperado daquela aparição baralhou totalmente as idéias anteriores a respeito da aventura. Não teve tempo, entretanto, de cogitar alguma nova explicação, porque a primeira porta foi de novo aberta e entrou por ela outra figura, desta vez o homem magro, que foi direito a ele e o convidou a segui-lo. Duarte não opôs resistência. Saíram por uma terceira porta, e, atravessados alguns corredores mais ou menos alumiados, foram dar a outra sala, que só o era por duas velas postas em castiçais de prata. Os castiçais estavam sobre uma mesa larga. Na cabeceira desta havia um homem velho que representava ter cinqüenta e cinco anos; era uma figura atlética, farta de cabelos na cabeça e na cara.

— Conhece-me? perguntou o velho, logo que Duarte entrou na sala.

— Não, senhor.

— Nem é preciso. O que vamos fazer exclui absolutamente a necessidade de qualquer apresentação. Saberá em primeiro lugar que o roubo da chinela foi um simples pretexto...

— Oh! decerto! interrompeu Duarte.

— Um simples pretexto, continuou o velho, para trazê-lo a esta nossa casa. A chinela não foi roubada; nunca saiu das mãos da dona. João Rufino, vá buscar a chinela.

O homem magro saiu, e o velho declarou ao bacharel que a famosa chinela não tinha nenhum diamante, nem fora comprada a nenhum judeu do Egito; era, porém, turca, segundo se lhe disse, e um milagre de pequenez. Duarte ouviu as explicações, e, reunindo todas as forças, perguntou resolutamente:

— Mas, senhor, não me dirá de uma vez o que querem de mim e o que estou fazendo nesta casa?

— Vai sabê-lo, respondeu tranqüilamente o velho.

A porta abriu-se e apareceu o homem magro com a chinela na mão. Duarte, convidado a aproximar-se da luz, teve ocasião de verificar que a pequenez era realmente miraculosa. A chinela era de marroquim finíssimo; no assento do pé, estufado e forrado de seda cor azul, rutilavam duas letras bordadas a ouro.

— Chinela de criança, não lhe parece? disse o velho.

— Suponho que sim.

— Pois supõe mal; é chinela de moça.

— Será; nada tenho com isso.

— Perdão! Tem muito, porque vai casar com a dona.

— Casar! exclamou Duarte.

— Nada menos. João Rufino, vá buscar a dona da chinela.

Saiu o homem magro, e voltou logo depois. Assomando à porta, levantou o reposteiro e deu entrada a uma mulher, que caminhou para o centro da sala. Não era mulher, era uma sílfide, uma visão de poeta, uma criatura divina.

Era loura; tinha os olhos azuis, como os de Cecília, extáticos, uns olhos que buscavam o céu ou pareciam viver dele. Os cabelos, deleixadamente penteados, faziam-lhe em volta da cabeça um como resplendor de santa; santa somente, não mártir, porque o sorriso que lhe desabrochava os lábios, era um sorriso de bem-aventurança, como raras vezes há de ter tido a terra.

Um vestido branco, de finíssima cambraia, envolvia-lhe castamente o corpo, cujas formas aliás desenhava, pouco para os olhos, mas muito para a imaginação.

Um rapaz, como o bacharel, não perde o sentimento da elegância, ainda em lances daqueles. Duarte, ao ver a moça, compôs o chambre, apalpou a gravata e fez uma cerimoniosa cortesia, a que ela correspondeu com tamanha gentileza e graça, que a aventura começou a parecer muito menos aterradora.

— Meu caro doutor, esta é a noiva.

A moça abaixou os olhos; Duarte respondeu que não tinha vontade de casar.

— Três cousas vai o senhor fazer agora mesmo, continuou impassivelmente o velho: a primeira, é casar; a segunda, escrever o seu testamento; a terceira engolir droga do Levante...

— Veneno! interrompeu Duarte.

— Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe outro: passaporte do céu.

Duarte estava pálido e frio. Quis falar, não pôde; um gemido, sequer, não lhe saiu do peito. Rolaria ao chão, se não houvesse ali perto uma cadeira em que se deixou cair.

— O senhor, continuou o velho, tem uma fortunazinha de cento e cinqüenta contos. Esta pérola será a sua herdeira universal. João Rufino, vá buscar o padre.

O padre entrou, o mesmo padre calvo que abençoara o bacharel pouco antes; entrou e foi direto ao moço, engrolando sonolentamente um trecho de Neemias ou qualquer outro profeta menos; travou-lhe da mão e disse:

— Levante-se!

— Não! Não quero! Não me casarei!

— E isto? disse da mesa o velho, apontando-lhe uma pistola.

— Mas então é um assassinato?

— É; a diferença está no gênero de morte: ou violenta com isto, ou suave com a droga. Escolha!

Duarte suava e tremia. Quis levantar-se e não pôde. Os joelhos batiam um contra o outro. O padre chegou-se-lhe ao ouvido, e disse baixinho:

— Quer fugir?

— Oh! Sim! exclamou, não com os lábios, que podia ser ouvido, mas com os olhos em que pôs toda a vida que lhe restava.

— Vê aquela janela? Está aberta; embaixo fica um jardim. Atire-se dali sem medo.

— Oh! Padre! disse baixinho o bacharel.

— Não sou padre, sou tenente do exército. Não diga nada.

A janela estava apenas cerrada; via-se pela fresta uma nesga do céu, já meio claro. Duarte não hesitou, coligiu todas as forças, deu um pulo do lugar onde estava e atirou-se a Deus misericórdia por ali abaixo. Não era grande altura, a queda foi pequena; ergueu-se o moço rapidamente, mas o homem gordo, que estava no jardim, tomou-lhe o passo.

— Que é isso? perguntou ele rindo.

Duarte não respondeu, fechou os punhos, bateu com eles violentamente nos peitos do homem e deitou a correr pelo jardim fora. O homem não caiu; sentiu apenas um grande abalo; e, uma vez passada a impressão, seguiu no encalço do fugitivo. Começou então uma carreira vertiginosa. Duarte ia saltando cercas e muros, calcando canteiros, esbarrando árvores, que uma ou outra vez se lhe erguiam na frente. Escorria-lhe o suor em bica, alteava-se-lhe o peito, as forças iam a perder-se pouco a pouco; tinha uma das mãos feridas, a camisa salpicada do orvalho das folhas, duas vezes esteve a ponto de ser apanhado, o chambre pegara-se-lhe em uma cerca de espinhos. Enfim, cansado, ferido, ofegante, caiu nos degraus de pedra de uma casa, que havia no meio do último jardim que atravessara.

Olhou para trás; não viu ninguém, o perseguidor não o acompanhara até ali. Podia vir, entretanto; Duarte ergueu-se a custo, subiu os quatro degraus que lhe faltavam, e entrou na casa, cuja porta, aberta, dava para uma sala pequena e baixa.

Um homem que ali estava, lendo um número do Jornal do Comércio, pareceu não o ter visto entrar. Duarte caiu numa cadeira. Fitou os olhos no homem. Era o Major Lopo Alves.

O major, empunhando a folha, cujas dimensões iam-se tornando extremamente exíguas, exclamou repentinamente:

— Anjo do céu, estás vingado! Fim do último quadro.

Duarte olhou para ele, para a mesa, para as paredes, esfregou os olhos, respirou à larga.

— Então! Que tal lhe pareceu?

— Ah! excelente! Respondeu o bacharel, levantando-se.

— Paixões fortes, não?

— Fortíssimas. Que horas são?

— Deram duas agora mesmo.

Duarte acompanhou o major até à porta, respirou ainda uma vez, apalpou-se, foi até à janela. Ignora-se o que pensou durante os primeiros minutos; mas, a cabo de um quarto de hora, eis o que ele dizia consigo: — Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituís-te-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco.

Fonte:
http://paginas.terra.com.br/arte/ecandido/mestre26.htm

Jakob Wassermann (1873 - 1934)


Nasceu em Fürth, cidade industrial próxima de Nuremberg, Alemanha, a 10 de março e 1873, e morreu em Alt-Aussee, Áustria, a 1 ° de janeiro de 1934. Filho de modesto comerciante judeu, abandonou cedo a vida comercial imposta pelos pais para participar ativamente da vida alegre e despreocupada de Munique. Sua juventude foi desordenada e aventureira, solitária e difícil. Seus primeiros artigos, contos e novelas foram publicados num semanário ilustrado de Mônaco, Simplicissimus, de orientação polêmica e satírica.


A democracia era para Wassermann a única forma digna da vida humana. Imbuído de cultura alemã, mas consciente de suas origens judaicas, sofreu muito pelo anti-semitismo dos alemães. Com o nazismo, provou o amargor do exílio, sendo igualmente destituído de sua cadeira na Academia Prussiana de Letras. Seu primeiro romance publicado, Os Judeus de Zirndorf (Die Juden von Zirndorf, 1897), trata de um episódio da história dos judeus alemães no século XVII. A preocupação com as tradições judaicas e seu enraizamento na cultura alemã também caracterizaram o conteúdo de seu segundo romance, História da Jovem Renata Fuchs (Geschichte der jungen Renate Fuchs), publicado em 1900.

Com Kaspar Hauser ou A Preguiça do Coração (Kaspar Hauser oder die Trägheit des Herzens, 1903) e O Homenzinho com os Gansos (Das Gänsemännchen, 1915), Wassermann inaugurou a segunda fase de sua carreira, centrada nos problemas morais e na relatividade da justiça pública. Mas foi Christian Wahnschaffe (1918) - romance de inspiração dostoievskiana sobre a luta de um idealista puro contra a corrupção do meio ambiente - que projetou definitivamente seu nome nos centros intelectuais do mundo. Seguiram-se Ulrike Woytich (1923), Faber ou os Anos Perdidos (Faber oder die Ver orenen Jahre, 1924), Laudin e os Seus (Laudin und die Seinen, 1925) e sua indiscutível obra-prima, O Processo Maurizius (Der Fall Maurizius, 1928), história de um erro judiciário e do empenho de um jovem para libertar o homem que seu próprio pai condenara. O romance constitui um soberbo retrato da época da república de Weimar e, segundo Otto Maria Carpeaux, "obra inspirada por um alto senso de justiça fundamentado em seguro conhecimento da causa e dos motivos psicológicos". Jakob Wassermann escreveu ainda: Etzel Andergast (1931), seqüência de O Processo Maurizius, alguns contos notáveis, reunidos no volume O Espelho de Ouro (Der Goldene Spiegel, 1911) e uma autobiografia (Meu Caminho como Judeu e Alemão).

Fontes:
Wassermann, Jakob. O processo Maurizius. Tradução de Octavio de Faria e Adonias Filho. São Paulo: Abril SA, 1982.
http://paginas.terra.com.br/arte/ecandido/jakob2.htm
Foto =
http://www.britannica.com

Jorge Antonio Mendes (O destino chega com o verão)

Olhava as pessoas da sala e parecia que o calor aumentava. Todos estavam furiosos, queixavam-se do calor, de tudo, da vida, inquietos. Um radinho tocava músicas sertanejas e para nos azucrinar mais ainda, também informava a temperatura. Trinta e cinco graus. Tinha vontade de parar de pensar. Sair dali correndo e atirar-me na primeira poça d'água que encontrasse. Beber uma cerveja gelada. Fugir. Levei a mão à nuca, senti o suor correndo, e fiquei assim por algum tempo. Tempo suficiente para lembrar-me da Débora. Os pensamentos surgiram como relâmpagos, onde eu apenas captava o que me interessava e mais me convinha.

Por um momento, tive a sensação que estava deslizando pelo pescoço dela.

Suavemente.

Nem me lembro mais como conheci Débora. Somente sei que foi na festa de passagem do século. Surgiu na minha frente, linda, insinuante, e aquela boate tornou-se pequena para nós. Mas isto não importa muito, pois acho que a coincidência de nosso encontro, talvez não tivesse sido tão coincidente assim. Com os meus 58 anos e ela com 26, formamos um casal que chamava mais atenção pela diferença de idade, do que por outras coisas. Mas a verdade é que me apaixonei. De cara. Era como se tivesse ganhado na loteria, mesmo que não precisasse disto, pois vivia bem financeiramente, desde aquele desfalque que dei na firma... E ela surgiu assim, como um prêmio para mim. Era a juventude vindo ao meu encontro. Como poderia não me apaixonar? Podia resgatar todo um passado de infelicidades amorosas e com uma mulher bem mais nova que eu. Em uma semana estávamos apaixonados. Em um mês achávamos que tínhamos nascido um para o outro. E eu cada vez mais cego para as circunstâncias. Decidimos ir morar numa cidade litorânea. Aluguei uma casa para passarmos o verão. E aí os problemas começaram a surgir. Fazia dois meses que morávamos juntos. Não me importava com o dinheiro que dava para ela. Estava completamente extasiado com aquela mulher que fazia tudo o quê eu queria.

Um dia me falou que um ex-namorado a tinha ameaçado de morte, alguns anos atrás, caso não reatasse o namoro com ele e mostrou-me a ocorrência policial. E ele, agora, voltara e pedia dinheiro para afastar-se, definitivamente, de sua vida. Não dei a quantia que ela pediu, mas a minha desconfiança surgiu intensa. Senti que as coisas não eram tão fáceis assim, como eu estava pensando. E comecei a vigiá-la.

Maldita desconfiança, problema insolúvel e que me persegue eternamente.

Quem procura problemas, sempre acha. Encontrei mais um. Quando descobri que eles estavam armando alguma coisa para mim, fiquei mais atento. Um dia ouvi-a dizer ao seu amigo, no telefone, que estava na hora de dar o golpe no velho. Minha vida mudou. Do amor surgiu o ódio e deste a vingança.

E naquela noite, enquanto explodiam os foguetes na praia, enquanto o calor se fazia eterno, nos amamos, eu acariciando seu corpo, moreno, suado, a mão subindo, chegando ao seu pescoço, acariciei-o suavemente, senti sua carne, vi seus olhos abrindo-se cada vez mais, e fui pressionando o pescoço até não conseguir mais.

Após dois dias, recebi a visita do amigo de Débora, dizendo ter certeza que eu a tinha matado. Olhei, demoradamente, para ele e disse que também tinha certeza que existia uma ocorrência policial de ameaça de morte dele para com ela. Ficamos, por alguns momentos, que pareceram minutos, nos olhando, ele virou-se e foi embora para sempre.

E agora estou aqui, nesta repartição pública, para prestar depoimento sobre o sumiço de Débora. O calor é intenso. Nunca vi um mês de março assim. Vou dizer que não sei o seu paradeiro. Que fomos apenas namorados. Vou falar que este velho aqui, nem imagina onde está a Débora. Velho. Imagina, eu velho? Como fiquei magoado quando ela me chamou de velho. Nestes momentos, tenho tido muita sorte, pois não é a primeira vez que acontece isto e achar desculpas para certos atos é o meu forte. E se um dia a verdade surgir, vou pensar em algo. Até lá, quem sabe, as coisas estejam diferentes em minha vida. Vou arranjar uma namorada de minha idade.

Pelo menos não corro o risco de ser chamado de velho.

— Senhor Valério, pode passar, o delegado quer falar com o senhor.

Entro na sala dizendo:

— Que caloraço, doutor.
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Sobre o Autor
Jorge Antonio Mendes (1957), mora em Novo Hamburgo — RS, onde é comerciante. Tem dois livros publicados: "O Resgate das Ilusões" — novela literária, 1993, e "Objetos de Valor" — contos, 1995. Foi premiado em vários concursos de contos — o primeiro em 1975 — e, desde então, não parou de escrever e de se interessar por literatura.

Fonte:
http://www.releituras.com

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Daniel Piza (Machado de Assis - O pai da prosa brasileira)

Tudo nele tem razão de ser, o que o deixa extremamente alerta para incorporar improvisos

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) não teve filhos, mas transmitiu às novas gerações o legado de sua obra. É o pai da literatura brasileira e não apenas num gênero, o do romance, principalmente a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). É também o pai da crônica - se Rubem Braga foi o príncipe, é porque antes houve um rei -, o pai do ensaio - pois de seu Instinto de Nacionalidade (1873) nasceram os Sérgios Buarques e Antonios Candidos - e o pai do conto - que sua primeira biógrafa, Lúcia Miguel Pereira, considerou exageradamente como o melhor de sua obra. Por isso tudo e mais alguns motivos, ele é, enfim, o pai da prosa brasileira moderna.

Alguns escritores têm jeito, outros têm estilo, disse Graciliano Ramos. E, numa injustiça consigo mesmo, acrescentou que tinha jeito; quem tem estilo, no Brasil, é Machado. Mas, afinal, o que era o estilo de Machado? Estilo não é apenas o conjunto de recursos de linguagem mais utilizados por um escritor; é o uso desses recursos para a expressão articulada de seu ponto de vista único, de sua visão pessoal de mundo. E poucos como Machado lançaram mão de figuras e ritmos com tamanha consciência que não podemos alterar uma vírgula sem prejudicar sua força e integridade. Tudo nele tem razão de ser, o que o deixa extremamente alerta para incorporar improvisos.

Um dos recursos que mais caracterizam a prosa de Machado é a maneira com que usa as metáforas. As metáforas foram usadas e abusadas no romantismo para criar imagens simbólicas que levassem ao que então se chamava de "sublime", a uma intensidade emocional máxima. No Machado maduro, pós-romântico, as metáforas se concretizam ironicamente; voltam do campo idealista para sua materialidade. O exemplo mais famoso é do início de Brás Cubas: "Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um x: decifra-me ou devoro-te."

Outra passagem conhecida em que a meditação desmancha metáforas e mostra ironias é de Dom Casmurro: "Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até ao fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. (...) Não sei o que era a minha. Eu ainda não era Casmurro, nem Dom Casmurro; o receio é que me tolhia a franqueza, mas, como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou, até que..."

Não à toa é que Cubas descreve o morrer como "estudar a geologia dos campos santos". As metáforas de Machado servem para desconstruir o comportamento romântico e/ou religioso, devolvendo o símbolo à imagem. Em alguns momentos ele leva o jogo com as metáforas a tal ponto que é capaz de criar um diálogo entre dois burros sobre o bonde elétrico (em crônicas) ou mostrar Deus e o Diabo conversando sobre a ópera que fariam em parceria (Dom Casmurro) ou fazer a célebre história em que agulha e linha trocam opinião sobre seus papéis morais (no conto Um Apólogo). Se Machado escreve alegorias, não é para fins edificantes ou barrocos, mas inspirado na literatura satírica iluminista de autores como Voltaire e Diderot.

Na mesma linha entram suas paródias e citações da Bíblia. Machado escreveu paródia do Sermão das Montanhas ("Bem-aventurados os que não descem"), citou o Eclesiastes em muitas ocasiões como no capítulo final de Dom Casmurro, satirizou o clero em figuras como a do padre glutão do mesmo livro. Outras crenças foram ironizadas, como o espiritismo e o hipnotismo. As menções eruditas - a pensadores, romancistas, músicos e personagens históricos - também são comuns, mas nunca como recurso "de autoridade", para dar verniz sofisticado à história. Quando o Conselheiro Aires escreve em seu Memorial que releu Shelley e Thackeray e que "um consolou-me do outro, este desenganou-me daquele; é assim que o engenho completa o engenho, e o espírito aprende as línguas do espírito", deixa claro o contraste entre romantismo e realismo que está na raiz das preocupações literárias de Machado.

Outra figura tipicamente machadiana é o "understatement", o modo como diz coisas importantes sem parecer que as diz. Casmurro, o narrador, é mestre nisso. Quando conta que depois do casamento com Capitu vive "dias de felicidade e glória" e que "ao fim de dois anos de casado, salvo o desgosto grande de não ter um filho, tudo corria bem", o leitor atento percebe: como é que tudo pode correr tão gloriosamente se existe um desgosto grande? Casmurro conta isso entre vírgulas, num aposto, como se fosse algo secundário na frase e em sua vida. Mas sabemos que não é. E Machado lida como ninguém com as expectativas do leitor, com as informações que lhe dá ou deixa de dar - ou então dá sem a devida hierarquia, sem a corriqueira explicitude.

Há uma série de modos que Machado usa para fazer suas descrições mais sugestivas, sombrias, ambíguas. Um deles, pouco analisado, é a própria construção sintática. Um exemplo excelente de Brás Cubas está no capítulo do delírio, outra grande metáfora ou alegoria desfeita pela ironia. É quando Pandora diz: "Levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes?". Ao usar "o maior de todos", Machado nos levanta a dúvida: maior de todos os bens ou maior de todos os males - ou de ambos? O mesmo vale para o último capítulo, Das Negativas, quando, depois de enumerar derrotas e consolos de sua biografia, o defunto Cubas diz: "Ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas." Cabe ao leitor julgar se esse pequeno saldo é positivo ou negativo.

Com essas maneiras peculiares de aplicar metáforas, paródias, apostos e ambigüidades, Machado queria justamente fugir às dicotomias. Não só aquelas vigentes em seu tempo e lugar, mas também as eternas dicotomias, a "eterna contradição humana" - entre bem e mal, alma e corpo, etc. Isso, no entanto, não significava ficar em cima do muro ou buscar um meio-termo confortável, conformista; muito ao contrário. Para ir além das dualidades banais, Machado precisou explorar o idioma em toda sua complexidade, o que só é possível para quem o tem como orgânico e elástico, não como algo congelado em dicionários.

Outro dilema que Machado superou, em conseqüência disso, foi aquele entre norma culta e norma coloquial. Ele fez uma grande e criteriosa mistura entre ambas. Para entender como escreveu de modo mais próximo da fala, sem pompas, sem academicismos, basta comparar qualquer página sua com a de um contemporâneo que por sinal admirava, Coelho Neto. Até hoje lingüistas reagem à falta de purismo de Machado. Olhando o mundo como olhava, não poderia ser diferente. Machado era um crítico das ilusões de pureza, de plenitude, de totalidade, de conciliação perfeita dos contrários. Esse é seu maior assunto

É por isso tudo que escreve frases como "Dessa terra e desse estrume nasceu esta flor". Ou que usa num mesmo parágrafos termos "nobres" como "perpetuidade" e termos "chulos" como "jururu". Ou que Cubas confessa que em seu cérebro "cruzavam-se pensamentos de vária casta e feição". E acrescenta: "Não havia ali a atmosfera somente da águia e do beija-flor; havia também a da lesma e do sapo." Essa mescla de registros, tão mal compreendida até hoje, é seu maior trunfo lingüístico. É com ela que Machado consegue criar a "simultaneidade" de naturezas que Pascal não admitia.

Antipuritano, Machado também "suja" o texto com uma variedade enorme de sinais gráficos; sua pontuação não exclui nada, os dois pontos, o travessão, o ponto-e-vírgula, a exclamação, as reticências... Seus períodos podem ser tão curtos quanto uma palavra ou tão extensos quanto um parágrafo. E em geral há um contraponto entre breves e longos: "Não havia lua; mas nossa amiga aborrecia a lua - não se sabe bem por quê -, ou porque brilha de empréstimo, ou porque toda a gente a admira, e pode ser que por ambas as razões. Era uma de suas esquisitices" (Trio em Lá Menor).

Poeta e dramaturgo frustrado, Machado soube dar novo uso a esse aprendizado juvenil. Seu ouvido para as palavras é excelente, como se vê nos trechos em que dá voz romântica aos narradores: "Vi-a sair de uma cadeirinha, airosa e vistosa, um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma cousa que nunca achara nas mulheres puras." Seus adjetivos nunca são redundantes, nunca usados somente para completar a métrica. E o teatro aparece nos enredos ou em cenas específicas, como aquela em que Bentinho desvia a atenção de José Dias dizendo que o botão de sua calça está aberto - e que soa extraída de uma comédia de salão como as que Machado escrevera aos 20 e poucos anos.

É também para não cair em dualidades que Machado usa com freqüência expressões como "sem... nem..." ou "nem... nem..." ou "mas também". Em Dom Casmurro, por exemplo, o narrador descreve sua vida pós-Capitu como "sem encantos nem espinhos", o que quer dizer que o problema de Bento era acreditar que existem encantos sem espinhos, homem iludido e covarde que é, sempre pronto a acreditar em sua própria felicidade. E, quando ele sente ciúme dos braços de Capitu, ela os veste com um tecido "que não cobria nem descobria inteiramente". Nos contos, os exemplos também são muitos: "Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio" (Um Homem Célebre); "Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia" (Uns Braços).

Machado também não respeita a pureza dos gêneros, o que explica que tenha sido pai da prosa brasileira em quase todos eles. Seus romances têm passagens que poderiam ser destacadas e publicadas isoladamente como crônicas (a exemplo do capítulo da Confeitaria do Custódio em Esaú e Jacó) ou contos (História de Dona Plácida em Brás Cubas). Escritor elíptico, que deixa lacunas no texto em vez de trabalhar por acumulação (como um Eça de Queirós trabalhava), ele adota formas fragmentárias, principalmente os capítulos curtos. Cada um, por sinal, na linha de Cervantes e Sterne, tem seu título, muitas vezes contendo uma auto-referência irônica.

Os nomes dos personagens tampouco são casuais. A mãe de Bento se chama Glória, a "santíssima", segundo o superlativo que o filho poria em sua lápide. Capitu na verdade se chama Capitolina, aquela que na Roma Antiga era capaz de convencer os outros de sua suposta inocência pelas artimanhas do discurso. O compositor que não consegue ir além das polcas em Um Homem Célebre se chama Pestana. Cubas, na terceira acepção do dicionário Houaiss, significa um sujeito malandro, esperto, dado a fantasia. Pedro é o irmão monarquista do republicano Paulo em Esaú e Jacó. O alferes de O Espelho se chama Jacobina. Por tática simbólica ou humorística, os nomes sempre são significativos.

Foi com a filosofia e o humor que Machado superou a ficção romântica sem aderir aos dogmas do realismo. O idioma foi o maior beneficiado. O que Machado tem, afinal, é o dom de fazer frases: "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada mais." Como as pessoas que escrevem em inglês não conseguem esquecer a música das palavras de Shakespeare, nós que escrevemos em português - mesmo inconscientemente - temos uma dívida com Machado a cada período. Cromático e sintético, seu estilo é inspirador, mas inimitável; modelar, mas único. Como são os melhores pais.

Fontes:
http://www.sorocult.com , extraído do Jornal A Folha de São Paulo on line
Caricatura = http://fragacaricaturas.blogspot.com

Augusto dos Anjos (Santuário Poético)

A esmola de Dulce
Ao Alfredo A.

E todo o dia eu vou como um perdido
De dor, por entre a dolorosa estrada,
Pedir a Dulce, a minha bem amada,
A esmola dum carinho apetecido.

E ela fita-me, o olhar enlanguescido,
E eu balbucio trêmula balada:
- Senhora, dai-me u’a esmola - e estertorada
A minha voz soluça num gemido.

Morre-me a voz, e eu gemo o último harpejo,
Estendo à Dulce a mão, a fé perdida,
E dos lábios de Dulce cai um beijo.

Depois, como este beijo me consola!
Bendita seja a Dulce! A minha vida
Estava unicamente nessa esmola.
=========================
A esperança

A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.

Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?

Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro - avança!

E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da morte a me bradar: descansa!
=========================
A dança da psiquê

A dança dos encéfalos acesos
Começa. A carne é fogo. A alma arde. A espaços
As cabeças, as mãos, os pés e os braços
Tombara, cedendo à ação de ignotos pesos!

É então que a vaga dos instintos presos
— Mãe de esterilidades e cansaços —
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.

Subitamente a cerebral coréa
Pára. O cosmos sintético da Idéa
Surge. Emoções extraordinárias sinto...

Arranco do meu crânio as nebulosas.
E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!
=========================
A floresta

Em vão com o mundo da floresta privas!...
- Todas as hermenêuticas sondagens,
Ante o hieróglifo e o enigma das folhagens,
São absolutamente negativas!

Araucárias, traçando arcos de ogivas,
Bracejamentos de álamos selvagens,
Como um convite para estranhas viagens,
Tornam todas as almas pensativas!

Há uma força vencida nesse mundo!
Todo o organismo florestal profundo
É dor viva, trancada num disfarce...

Vivem só, nele, os elementos broncos,
- As ambições que se fizeram troncos,
Porque nunca puderam realizar-se!
=========================
A fome e o amor

A um monstro

Fome! E, na ânsia voraz que, ávida, aumenta,
Receando outras mandíbulas a esbangem,
Os dentes antropófagos que rangem,
Antes da refeição sanguinolenta!

Amor! E a satiríasis sedenta,
Rugindo, enquanto as almas se confrangem,
Todas as danações sexuais que abrangem
A apolínica besta famulenta!

Ambos assim, tragando a ambiência vasta,
No desembestamento que os arrasta,
Superexcitadíssimos, os dois

Representam, no ardor dos seus assomos
A alegoria do que outrora fomos
E a imagem bronca do que inda hoje sois!
=========================
A idéia

De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas do laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica ...

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No mulambo da língua paralítica
=========================
A ilha de Cipango

Estou sozinho! A estrada se desdobra
Como uma imensa e rutilante cobra
De epiderme finíssima de areia...
E por essa finíssima epiderme
Eis-me passeando como um grande verme
Que, ao sol, em plena podridão, passeia!

A agonia do sol vai ter começo!
Caio de joelhos, trêmulo... Ofereço
Preces a Deus de amor e de respeito
E o ocaso que nas águas se retrata
Nitidamente reproduz, exata,
A saudade interior que há no meu peito.

Tenho alucinações de toda a sorte...
Impressionado sem cessar com a Morte
E sentindo o que um lázaro não sente,
Em negras nuanças lúgubres e aziagas
Vejo terribilíssimas adagas,
Atravessando os ares bruscamente.

Os olhos volvo para o céu divino
E observo-me pigmeu e pequenino
Através de minúsculos espelhos.
Assim, quem diante duma cordilheira,
Pára, entre assombros, pela vez primeira,
Sente vontade de cair de joelhos!


Soa o rumor fatídico dos ventos,
Anunciando desmoronamentos
De mil lajedos sobre mil lajedos...
E ao longe soam trágicos fracassos
De heróis, partindo e fraturando os braços
Nas pontas escarpadas dos rochedos!

Mas de repente, num enleio doce,
Qual se num sonho arrebatado fosse,
Na ilha encantada de Cipango tombo,
Da qual, no meio, em luz perpétua, brilha
A árvore da perpétua maravilha,
A cuja sombra descansou Colombo!

Foi nessa ilha encantada de Cipango,
Verde, afetando a forma, de um losango,
Rica, ostentando amplo floral risonho,
Que Toscanelli viu seu sonho extinto
E como sucedeu a Afonso Quinto
Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho!

Lembro-me bem. Nesse maldito dia
O gênio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio.
Iríamos a um país de eternas pazes
Onde em cada deserto há mil oásis
E em cada rocha um cristalino veio.

Gozei numa hora séculos de afagos,
Banhei-me na água de risonhos lagos,
E finalmente me cobri de flores...
Mas veio o vento que a Desgraça espalha
E cobriu-me com o pano da mortalha,
Que estou cosendo para os meus amores!

Desde então para cá fiquei sombrio!
Um penetrante e corrosivo frio
Anestesiou-me a sensibilidade
E a grandes golpes arrancou as raízes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!

Invoco os Deuses salvadores do erro.
A tarde morre. Passa o seu enterro!...
A luz descreve ziguezagues tortos
Enviando à terra os derradeiros beijos.
Pela estrada feral dois realejos
Estão chorando meus amores mortos!

E a treva ocupa toda a estrada longa...
O Firmamento é uma caverna oblonga
Em cujo fundo a Via-Láctea existe.
E como agora a lua cheia brilha!
Ilha maldita vinte vezes a ilha
Que para todo o sempre me fez triste!
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A lágrima

- Faça-me o obséquio de trazer reunidos
Cloreto de sódio, água e albumina...
Ah! Basta isto, porque isto é que origina
A lágrima de todos os vencidos!

-"A farmacologia e a medicina
Com a relatividade dos sentidos
Desconhecem os mil desconhecidos
Segredos dessa secreção divina"

- O farmacêutico me obtemperou. -
Vem-me então à lembrança o pai Yoyô
Na ânsia física da última eficácia...

E logo a lágrima em meus olhos cai.
Ah! Vale mais lembrar-me eu de meu Pai
Do que todas as drogas da farmácia!
------------------
In "Augusto dos Anjos: Poesia e Prosa", de Zenir Campos Reis, Ed. Ática, São Paulo, 1977.
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A louca
A Dias Paredes

Quando ela passa: - a veste desgrenhada,
O cabelo revolto em desalinho,
No seu olhar feroz eu adivinho
O mistério da dor que a traz penada.

Moça, tão moça e já desventurada;
Da desdita ferida pelo espinho,
Vai morta em vida assim pelo caminho,
No sudário de mágoa sepultada.

Eu sei a sua história. - Em seu passado
Houve um drama d’amor misterioso
- O segredo d’um peito torturado -

E hoje, para guardar a mágoa oculta,
Canta, soluça - coração saudoso,
Chora, gargalha, a desgraçada estulta.
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A luva
Para o Augusto Belmont

Pensa na glória! Arfa-lhe o peito, opresso.
-O pensamento é uma locomotiva-
Tem a grandeza duma força viva
Correndo sem cessar para o Progresso.

Que importa que, contra ele, horrendo e preto
O áspide abjeto do Pesar se mova!...
E só, no quadrilátero da alcova,
Vem-lhe à imaginação este soneto:

"A princípio escrevia simplesmente
Para entreter o espírito...Escrevia
Mais por um impulso de idiosincrasia
Do que por uma propulsão consciente.

Entendi, depois disso, que devia,
Como Vulcano, sobre a forja ardente
Da Ilha de Lemnos, trabalhar contente,
Durante as vinte e quatro horas do dia!

Riam de mim, os monstros zombeteiros,
Trabalharei assim dias inteiros,
Sem ter uma alma só que me idolatre...

Tenha a sorte de Cícero proscrito
Ou morra embora, trágico e maldito,
Como Camões morrendo sobre um catre!"

Nisto, abre, em ânsias, a tumbal janela
E diz, olhando o céu que além se expande:
"-A maldade do mundo é muito grande,
Mas meu orgulho ainda é maior do que ela!

Ruja a boca danada da profana
Coorte dos homens, com o seu grande grito,
Que meu orgulho do alto do Infinito
Suplantará a própria espécie humana!

Quebro montanhas e aos tufões resisto
Numa absoluta impassibilidade",
E como um desafio à eternidade
Atira a luva para o próprio Cristo!

Chove. Sobre a cidade geme a chuva,
Batem-lhe os nervos, sacudindo-o todo,
E na suprema convulsão o doudo
Parece aos astros atirar a luva!
Fonte:
Soares Lustosa. In Jornal de Poesia.
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