domingo, 5 de outubro de 2008

José Nicola (Uma aula de poesia)

O poema "Procura da poesia", de Carlos Drummond de Andrade, é o tema desta aula

Procura da poesia

Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes. Nem me reveles teus sentimentos, que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma. O canto não é a natureza nem os homens em sociedade. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques, não indagues. Não percas tempo em mentir. Não te aborreças. Teu iate de marfim, teu sapato de diamante, vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas tua sepultada e merencória infância. Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação. Que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consuma com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceita-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?

Repara: ermas de melodia e conceito elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro, Aguilar, 1967.)

O poeta, sua arte, sua época

"Procura da poesia" é um dos textos de abertura do livro A rosa do povo, que reúne poemas escritos entre 1943 e 1945, o que significa que Drummond tinha, como pano de fundo, os horrores da Segunda Guerra Mundial e, no plano interno, os últimos anos do Estado Novo de Getúlio Vargas. O outro texto de abertura é "Consideração do poema". O conjunto formado por esses dois textos resulta numa das mais belas e profundas reflexões sobre o "fazer poético", ou seja, sobre a arte e utilidade da poesia, sobre o trabalho do artista literário e sua função social.

A reflexão sobre a arte literária e o ofício de escrever sempre foi uma preocupação dos grandes escritores, conscientes de seu trabalho. No entanto, essa necessidade de pensar o "fazer poético" tornou-se verdadeira obsessão entre os escritores modernos, como é o caso de Drummond e João Cabral de Melo Neto, para citar apenas dois poetas brasileiros.

Uma aula de poesia

O poema apresenta um falante que se dirige, em tom professoral, próprio de quem já refletiu muito sobre o assunto, a um hipotético interlocutor, que escreve (ou pretende escrever) poesia sem refletir sobre o "fazer poético". O falante se dirige ao interlocutor sempre empregando verbos no imperativo, na segunda pessoa do singular ("não faças", "não cantes", "penetra", "convive", "espera", "não forces", "não colhas", "não adules", "repara"). O interlocutor, no entanto, não tem voz, não contra-argumenta nem aceita. Apenas ouve!

Podemos, para fins didáticos, dividir o poema em duas partes: a primeira, marcada pelos imperativos negativos, representa tudo aquilo que não deve ser feito por quem pretende escrever poesia. A segunda, marcada pelos imperativos afirmativos, realça o trabalho com a matéria-prima do poeta: a palavra.

Uma especial seleção e combinação de palavras

Num texto que exalta justamente a palavra, compete ao leitor compreender o significado exato das palavras e imagens empregadas pelo poeta. Esse trabalho de pesquisa deve ser feito sempre que se lê um texto: buscar a etimologia de uma palavra, referências sobre personagens ou fatos mencionados, a compreensão de uma palavra usada em sentido conotativo ou de uma figura de palavra. Apenas como sugestão, apresentamos a seguir um pequeno glossário.

infenso à efusão lírica: infenso significa "adverso, contrário"; efusão significa "demonstração clara e sincera dos sentimentos íntimos"; o verso opõe corpo e sentimento.

bile: é o mesmo que bílis, líquido esverdeado e amargo segregado pelo fígado; em sentido figurado, significa "mau humor, azedume".

elide: forma do verbo elidir, que significa "suprimir, eliminar"; o verso afirma que a poesia elimina as relações entre sujeito e objeto.

Teu iate de marfim... esqueletos de família: nesses versos, temos uma enumeração de posses (observe a força dos pronomes possessivos), numa seqüência que abrange desde o objeto mais idealizado (iate de marfim) até o mais material (esqueletos de família); mazurca é uma dança polonesa de salão; abusão é o mesmo que "erro, ilusão", "crendice".

merencória: é o mesmo que "melancólica".

ermas: abandonadas; no verso, significa que as palavras estão sem melodia e conceito.

Idéias, sentimentos e palavras

Segundo Alceu Amoroso Lima, "a palavra é o elemento material intrínseco do homem de letras para realizar sua natureza e alcançar seu objetivo artístico". Podemos relacionar esse conceito ao que afirma Ezra Pound: "a literatura é a linguagem carregada de significado até o máximo grau possível". Pois é exatamente sobre a palavra e sua carga significativa que reflete Drummond em seu poema.

O poeta nos ensina que não se faz literatura apenas falando sobre acontecimentos ou resgatando subjetivamente a infância ou idealizando. Literatura não se faz só com idéias e sentimentos: "O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia". "Ainda não é poesia", mas pode vir a ser. Para isso, é preciso penetrar "surdamente no reino das palavras", "lá estão os poemas que esperam ser escritos". Ainda não são poemas, porque "estão paralisados", "sós e mudos, em estado de dicionário". Pensemos: as palavras em estado de dicionário, ou seja, fora de contexto, têm apenas o sentido denotativo, frio e impessoal. Se contemplarmos as palavras atentamente, de perto, perceberemos que cada uma tem mil faces secretas (conotação) sob a face neutra (denotação).

Ora, se juntarmos as duas idéias, entenderemos que poesia não é apenas falar sobre algo, muito menos colocar palavra ao lado de palavra. Sem melodia e conceito as palavras se refugiam na noite. Só há canto, só há poesia, quando as palavras estão carregadas de melodia e conceito.

A matéria-prima do poeta

"Não faça versos sobre acontecimentos" - esse primeiro verso, tomado isoladamente, permite interpretações equivocadas. Drummond não está propondo uma poesia alheia aos fatos; ele apenas reitera o trabalho com a palavra, matéria-prima do poeta. É preciso entender o poema em seu contexto histórico: o mundo estava, literalmente, em decomposição - milhares de mortos, nações se esfacelando, a destruição de Hiroxima e Nagasáqui. No meio do turbilhão, como avaliar os acontecimentos, o que é efêmero, o que é permanente? A poesia pode (e deve) falar de qualquer coisa, mas o que a sustenta, o que a perpetua é o trabalho com a linguagem.

Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br

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