sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Virginia Woolf (Kew Gardens)

Tradução de Fabrício Cassilhas

Do canteiro oval de flores erguiam-se talvez centenas de talos se alongando entre folhas em formatos de coração ou de línguas, enquanto cresciam e se desenrolavam na ponta de pétalas vermelhas ou azuis ou amarelas manchadas com borrões que afloravam à superfície; e do escuro vermelho, azul ou amarelo dos seus interiores emergia uma estreita barra, áspera com pó de ouro e com um leve formato de clava na extremidade. As pétalas eram volumosas o bastante para se agitarem com a brisa, e quando elas se mexiam, as luzes vermelhas, amarelas e azuis passavam umas sobre as outras, tingindo alguns poucos centímetros de terra marrom por baixo, com borrões dos mais intrigantes. A luz caía ou sobre a lisa superfície cinza de uma pedrinha, ou sobre a concha de um caracol com veias circulares, em tons marrom, ou, quando caía sobre uma gota de chuva, se expandia com tamanha intensidade de vermelho, azul e amarelo que se esperava que de tão finas suas paredes se rompessem ou desaparecessem. Em vez disso, a gota, em um segundo, ficou de novo prateada, e a luz então se acomodou sobre a superfície de uma folha, revelando a ramificação de filetes de fibra sobre a superfície, e novamente se moveu e espalhou sua luz sobre os vastos espaços verdes abaixo das cúpulas das folhas em formatos de corações e línguas. Então a brisa soprou sem dúvida ainda mais vivaz no alto e as cores passavam no ar, nos os olhos de homens e mulheres que caminham por Kew Gardens em julho.

As silhuetas desses homens e mulheres afastavam-se dos canteiros de flores com um curioso movimento irregular, não diferente do das borboletas brancas e azuis que cruzaram a relva voando em ziguezague de canteiro em canteiro. O homem estava a pouco mais de quinze centímetros à frente da mulher, passeando despreocupadamente, enquanto ela passava apreensiva, apenas virava a cabeça de vez em quando para ver se as crianças estavam logo atrás. O homem manteve certa distância da mulher de propósito, embora talvez não percebesse, pois queria seguir com seus pensamentos.

“Há quinze anos estive aqui com a Lily”, pensou. “Sentamos em algum lugar por ali, perto do lago, e durante toda a tarde quente, implorei lhe que se casasse comigo. Como a libélula circulava ao nosso redor: como eu via de forma tão clara a libélula e seu sapato com uma fivela retangular e prateada nos dedos. Durante todo o tempo em que eu falava, via seu sapato e quando ele se mexia impacientemente eu sabia sem precisar olhar para cima o que ela iria dizer: ela toda parecia estar no sapato. E o meu amor, o meu desejo, estavam na libélula; por algum motivo eu sabia que se ela pousasse lá, naquela folha, aquela grande com uma flor vermelha no meio, se aquela libélula pousasse naquela folha, ela diria “Sim” na mesma hora. Mas a libélula rodeou e rodeou: não pousou em lugar nenhum é claro, felizmente não, ou então eu não estaria aqui sentado com Eleanor e as crianças. Diga-me Eleanor. Você pensa no seu passado?

“Por que a pergunta, Simon?”

“Porque estava pensando no passado. Estava pensando na Lily, a mulher com quem eu poderia ter me casado… Bem, por que está tão calada? Você se incomoda por eu pensar no meu passado?”

“Por que é que eu deveria me importar, Simon? A gente não pensa sempre no passado, em um jardim com homens e mulheres deitados em baixo de árvores? Eles não são o nosso passado, tudo o que resta dele, aqueles homens e aquelas mulheres e, aqueles fantasmas deitados em baixo das árvores,… a nossa felicidade, a nossa realidade ?”

“Para mim, uma fivela de sapato retangular e prateada e uma libélula”.

“Para mim, um beijo. Imagine seis garotinhas sentadas diante de seus cavaletes há vinte anos, lá embaixo perto do lago, pintando vitórias-régias, as primeiras vitórias-régias vermelhas que vi na vida. E de repente um beijo, na nuca. Minha mão ficou tremendo a tarde inteira, de tal forma que eu não conseguia mais pintar. Peguei meu relógio e marquei o horário em que me permitiria pensar no beijo por cinco minutos apenas foi tão precioso o beijo de uma mulher grisalha com uma verruga no nariz, a mãe de todos os beijos da minha vida. Venha, Caroline, venha Hubert.”

Eles contornaram o canteiro de flores, agora caminhando lado a lado, e logo diminuíram de tamanho entre às arvores e pareciam meio transparentes quando a luz do sol e a sombra banhavam as costas deles parecendo manchas irregulares trêmulas.

No canteiro oval de flores o caracol, cuja concha tingiu-se de vermelho, azul e amarelo num espaço de aproximadamente dois minutos, agora parecia estar se movendo lentamente em sua concha, e em seguida começou a mover as migalhas de terra solta que se desprendiam e desciam rolando enquanto ele passava por elas. Ele parecia ter um destino bem definido à sua frente, diferenciando-se nesse aspecto do excêntrico inseto verde angular de passos altos que tentava passar na sua frente, e esperava por um segundo com suas antenas que vibravam como se estivesse pensando, e então deu um passo de maneira tão rápida quanto estranha na direção oposta. Penhascos marrons com lagos verdes profundos nos vales, árvores achatadas em forma de pá que se agitavam da raiz à extremidade, penedos redondos de rocha cinza, uma vasta superfície enrugada com uma fina textura estalante todos esses objetos que cruzavam o curso do caracol entre um talo e outro para seu destino. Antes de decidir se contornava a tenda curvada de uma folha morta ou se a encarava, ao lado do canteiro os pés de outros seres humanos passaram.

Desta vez ambos eram homens. O mais jovem dos dois tinha uma expressão talvez de uma calma não natural, ele ergueu os olhos e fixou-os para frente enquanto seu companheiro falava, e sem rodeios seu companheiro falava, ele olhava para o chão e às vezes abria a boca só após uma longa pausa e às vezes nem mesmo abria. O homem mais velho tinha um curioso jeito irregular e vacilante de andar sacudindo a mão para frente e jogando a cabeça de repente, mais exatamente como um cavalo de carruagem cansado de esperar do lado de fora da casa; mas no homem esses gestos eram indecisos e sem finalidade. Ele falava quase sem pausas, sorria para si mesmo e novamente começava a falar, como se o sorriso fosse uma resposta. Falava sobre espíritos os espíritos da morte, que, de acordo com ele, estavam agora mesmo lhe contando todos os tipos de coisas extravagantes sobre sua experiências no paraíso.

“O Paraíso era conhecido pelos anciões como Tessália, William, e agora, com essa guerra, o espírito está ressoando entre as colinas como o trovão.” Ele parou, parecia ouvir, sorriu, sacudiu a cabeça e continuou:

“Você tem uma pequena bateria elétrica e um pedaço de borracha para isolar o fio isolar? vedar? bem, vamos deixar os detalhes de lado, melhor não entrar em detalhes que poderiam não ser entendidos e resumindo a maquininha fica em qualquer posição conveniente ao lado da cabeceira da cama, digamos, em uma bela mesinha de mogno. Tudo arrumado por trabalhadores contratados sob minha orientação, a viúva aguça seus ouvidos e invoca o espírito concordando com um sinal. Mulheres! Viúvas! Mulheres de preto!”

A essa altura ele parece ter tido uma visão de um vestido de uma mulher, que na sombra parecia ser roxo escuro. Ele tirou seu chapéu, colocou a mão sobre o peito, e se apressou em direção a ela murmurando e fazendo gestos exaltados. Mas William o pegou pela manga e tocou em uma flor com a ponta da sua bengala para desviar a atenção do velho. Após nota-la por um momento em uma confusão o velho inclinou seu ouvido para ela e pareceu ouvir uma voz vindo dela, para ele começou falando sobre as florestas do Uruguai que visitou há milhares de anos acompanhado da mais bela jovem da Europa. Podia-se ouvi-lo murmurando sobre as florestas do Uruguai cobertas com pétalas lustrosas de rosas tropicais, rouxinóis, praias com ondas, sereias, e mulheres afogadas no mar, enquanto ele padecia com as tentativas de William de fazê-lo se mexer, o olhar de uma paciência estóica crescia lentamente sobre a face de William cada vez mais profundo.

“Nell, Bert, Lot, Cess, Phil, Pa, ele diz, eu diz, ela diz, eu diz, eu diz, eu diz
Meu Bert, Sis, Bill, Vovô, o velho, açúcar,
Açúcar, farinha, peixe defumado, vegetais,
Açúcar, açúcar, açúcar.”

A mulher sonolenta examinava cuidadosamente a disposição das palavras que caíam nas flores permanecendo calma, firme, de pé no chão, com uma expressão curiosa. Ela os viu da mesma forma que uma dorminhoca acordando de um sono pesado vê um castiçal de bronze refletindo a luz de um jeito diferente, e fecha os olhos e os abre, e vendo mais uma vez o candelabro de bronze, finalmente desperta e fita o castiçal com todas as suas forças. Então a mulher com os olhos pesados fez uma pausa próxima ao canteiro oval de flores, e parou até mesmo para fingir escutar o que a outra mulher dizia. Ela continuou deixando que as palavras despencassem sobre ela, oscilando a parte de cima do seu corpo lentamente para frente e para trás olhando para as flores. Então ela sugeriu que elas achassem um lugar para sentar e tomar chá.

O caracol tinha considerado todas as possibilidades de alcançar seu destino que não incluíssem dar a volta pela folha seca ou escalá-la. Deixando de lado o esforço que era preciso para escalar a folhar, ele tinha dúvidas se a textura fina que vibrava com estalos estrondosos quando tocada até mesmo pela ponta de suas antenas suportaria seu peso; e isso por fim determinou que ele rastejasse por debaixo dela, pois em uma parte da folha havia uma curvatura alta o bastante do chão para que ele passasse. Ele acabara de colocar sua cabeça sobe a folha e estava verificando o alto telhado marrom e se acostumando à serena luz marrom quando mais duas pessoas passaram por fora do gramado. Nesta época os dois eram jovens, um homem e uma mulher. Ambos na puberdade, ou ainda naquela época que antecede a puberdade, aquela antes das bolsas lisas e rosadas das flores romperem sua viscosa membrana, quando as asas da borboleta, embora crescidas por completo, não tem movimento ao sol.

“É uma sorte não ser sexta feira”, ele observou.

“Por quê? Você acredita em sorte?”

“Eles cobram seis centavos na sexta feira”.

“O que são seis centavos? Isso não vale seis centavos?”

“O que é ‘isso’, o que você quer dizer com ‘isso’?”

“Ah, nada quer dizer que você sabe o que eu quero dizer”.

Longas pausas ocorriam após esses comentários, eles se pronunciaram com vozes desafinadas monótonas. O casal ficou parado na beira do canteiro de flores, e juntos empurraram a ponta do seu guarda-sol para dentro da terra macia. A ação e o fato de que suas mãos apoiavam-se sobre as dela expressavam o que eles sentiam de um jeito estranho, como se essas palavras curtas e insignificantes também manifestassem alguma coisa, palavras com asas curtas para corpos tão cheios de significados; inadequados para levá-las para longe e assim pousando de maneira desastrada sobre os objetos tão comuns que os rodeavam, e eram tão imponentes para um toque tão inexperiente; mas quem sabe (assim eles pensaram enquanto pressionaram o guarda-sol para dentro da terra) que precipícios não se escondem, ou que declives de gelo não brilham no sol do lado de lá? Quem sabe? Quem é que já se deparou com isso antes? Até mesmo quando ela imaginava que tipos de chá lhe davam em Kew Gardens, ele sentiu que havia algo por trás das suas palavras, e permaneceram vastas e densas atrás delas, e a névoa dissipou lentamente e revelou Ó céus, o que eram aquelas formas? pequenas mesas brancas, e garçonetes que olhavam primeiro para ela para então olharem para ele, e havia uma conta que ele pagaria com uma moeda de verdade de dois xelins, e era de verdade, tudo de verdade, ele se assegurou, dedilhando a moeda em seu bolso, de verdade para todos exceto para ele e para ela, até mesmo para ele aquilo começava a parecer de verdade, mas então era tudo tão excitante para ficar mais tempo parado e pensando, e ele puxou o guarda-sol para fora da terra com um solavanco e estava impaciente para encontrar o lugar em que se tomava chá com as outras pessoas, como as outras pessoas.

“Vem comigo, Trissie; está na hora do chá.”

“Onde se toma chá?” ela perguntou com uma empolgação fora do comum em sua voz, olhando vagamente ao seu redor e se deixando aproximar do gramado, arrastando seu guarda-sol, virando sua cabeça de um lado para o outro, esquecendo-se do chá, desejando ir lá em baixo e depois lá em baixo, lembrando de orquídeas e garças entre as flores selvagens, um pagode chinês e um pica-pau-de-topete-vermelho; mas ele a chamou.

Assim aos pares, seguidos uns dos outros com praticamente os mesmos movimentos irregulares e sem direção passavam pelo canteiro de flores e estavam envoltos em camadas atrás de camadas de vapor azul esverdeado, onde de início seus corpos tinham tanto substância como cor, porém mais tarde a substância e a cor se dissolveram na atmosfera azul esverdeado. Como estava quente! Tão quente que até mesmo os melros preferiam saltar, como pássaros mecânicos, à sombra das flores, com longas pausas entre um movimento e outro; ao invés de perambular sem rumo, as borboletas brancas dançavam umas sobre as outras, fazendo com seus flocos brancos delineassem o contorno de uma coluna de mármore estilhaçada sobre as flores mais altas; os telhados de grama da casa de palmas brilhavam como se uma loja cheia de guarda-chuvas verdes e brilhantes tivesse aberto ao sol; e com o zunido do avião, a voz do céu de verão murmurou sua alma selvagem. Amarelo e preto, rosa e gelo, formas de todas essas cores, homens, mulheres e crianças foram tingidas por um segundo acima do horizonte, e então, vendo a amplitude de amarelo que caía sobre a grama, elas hesitaram e foram para debaixo das árvores, dissolveram-se como gotas de água em uma atmosfera verde e amarela, tingindo-a sutilmente de vermelho e azul. Era como se todos os corpos volumosos e pesados tivessem afundado no calor sem se mexer e caíssem de maneira confusa sobre o chão, mas suas vozes vinham oscilantes como se fossem chamas reclinando-se dos largos corpos de cera das velas. Vozes. Isso mesmo, vozes. Vozes sem palavras, quebrando bruscamente o silêncio com um contentamento tão intenso, com tanta vontade de paixão, ou, nas vozes das crianças, tantas novas surpresas; quebrando o silêncio? Mas não havia silêncio; o tempo todo os ônibus mudavam de direção e trocavam suas marchas; como uma vasta coleção de caixas chinesas todas de ferro ornado mudando incessantemente uma dentro da outra a cidade murmurava; no topo vozes gritavam e as pétalas de uma infinidade de flores passam suas cores no ar.

Fonte:
http://www.ichs.ufop.br/tradufop/
http://www.evanevanstours.co.uk (foto)

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