sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Lena Jesus Ponte (A poética do sim e do não)

A obra de Jafran Bastos é dotada de qualidade incontestável. Com alto grau de criatividade e domínio dos recursos literários, esse escritor transita, de maneira competente, por prosa e poesia, por formas fixas e versos livres e/ou experiências de vanguarda, por textos ora de caráter lírico, ora místico, ora crítico, ora filosófico. Aparição de Teobaldo Luz, Vozvento e Terceiro Milênio, ainda infelizmente inéditos, revelam vertentes de escrita bem diversas, por vezes antagônicas, à maneira das várias identidades assumidas por Fernando Pessoa, apenas sem os heterônimos. Jafran é também um “fingidor”, com suas múltiplas faces inventadas.

Neste O Grito da Ilha, encontramos o poeta no ápice da maturidade literária. Em 1980, participou de um concurso de poesias com 7 poemas que, embora independentes, apresentavam um denominador temático comum – a solidão. Premiado, resolveu posteriormente ampliar esses textos e os reuniu neste longo poema em 8 cantos, que agora o público tem a oportunidade de fruir.

O presente livro, como toda obra de arte que ousa romper com cânones, ainda que os tenha como referenciais importantes, causa um estranhamento inicial. Pela sua estrutura em cantos, à primeira vista engana o leitor que espera um épico nos padrões tradicionais. Com o decorrer da leitura, percebe-se que o termo “canto” não se limita a referir-se a cada uma das partes de um longo poema, mas também remete ao significado de “lugar retirado”, contribuindo com todo um campo semântico de solidão que rasga, de ponta a ponta, o tecido do texto. O protagonista desta pseudo-epopéia apresenta características de anti-herói: sua imobilidade impede-o de lançar-se a um mar de aventuras e obstáculos; em lugar de partir para a ação heróica e superadora, encontra-se aferrado à ilha, enterrado em si mesmo, diferentemente dos antigos heróis gregos ou dos navegadores do início da Era Moderna. Ou mesmo dos contemporâneos argonautas de Caetano Veloso: “O barco, meu coração não agüenta/ Tanta tormenta, alegria,/ Meu coração não contenta/ O dia, o marco, meu coração/ O porto, não / Navegar é preciso, viver não é preciso...”. Em O grito da Ilha o personagem, chamado de “o poeta”, sofre de impotência existencial – qualquer mínima tentativa de saída de uma situação insatisfatória torna-se inútil. Para ele, navegar não é possível nem viver é possível.

Massaud Moisés, em seu Dicionário de Termos Literários, afirma: “Desde o século XIX o poema épico abandonou as regras mas preservou a base em que se amparava e a meta a que visava [...]: o impulso de visualizar toda a complexidade do Cosmos numa unidade fundamental, num sistema, composto da integração harmoniosa dos contrários e das antinomias observáveis no mundo da realidade. Livre, pois, da sujeição às regras, a poesia de Fernando Pessoa é tão épica quanto a de Camões, a de Carlos Drummond de Andrade quanto a de Homero ou Virgílio: identifica-os não a forma externa, o emprego do decassílabo, a presença do maravilhoso etc., mas a comum intenção de abranger a multiplicidade dinâmica do real físico e espiritual numa só obra, numa só unidade. Avizinha-os, ainda, a circunstância de convocarem o pensamento para o interior do poema, de molde a fundi-lo com a emoção da raiz: a emoção se detém e se transfigura graças ao pensamento que a indaga e desdobra, e o individual adquire foros de universalidade. Ao contrário do poeta lírico, que não ultrapassa os limites da emoção ou do sentimento, portanto da sua individualidade”. Eis aí o sentido para “épico” que podemos aplicar a esta obra de Jafran Bastos.

O “eu” presente em O Grito da Ilha não se utiliza dos versos como veículo apenas de extravasamento de emoções pessoais, com ênfase na função emotiva da linguagem. Trata-se de um “eu” pensante e também universal, como bem expressam os seguintes versos: “O que te pesa mesmo é o choro / De toda a humanidade”. Já no canto I, os leitores são “enganados” com o poema A Autobiografia, que nos faria identificar o “eu” com o autor. Camaleônico, esse “eu” aparece adiante ora ainda em primeira pessoa (desnudado a cada instante), ora em terceira (travestido em “outro”), ora em disfarçada segunda pessoa (um duplo espelhado com quem o primeiro dialoga). Essa multiplicidade fragmentada da personalidade lembra-nos, mais uma vez, os heterônimos de Fernando Pessoa ou o ser dividido e anulado de Mário de Sá-Carneiro (“Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio:/ Pilar da ponte do tédio / Que vai de mim para o Outro”).

Esses dois poetas do modernismo português ecoam na poesia de Jafran Bastos, em especial o heterônimo Álvaro de Campos, na vertente não futurista (“A minha alma partiu-se como um vaso vazio, .../ Caiu, fez-se em mais cacos do que havia loiça no vaso”). E também ressoa nela a contundente dor dos versos do brasileiro Augusto dos Anjos (veja-se trecho do poema A Ilha de Cypango, com o qual a ilha de Jafran pode dialogar: “Estou sozinho!... Eis-me passeando como um grande verme / Que, ao sol, em plena podridão passeia”). Com uma sólida formação em Letras (Português e Literaturas), Jafran recebeu outras fortes influências na construção deste livro. Sua poesia remonta ao desespero dos ultra-românticos, mergulhados no “mal-do-século”; flerta com os simbolistas (por todo o livro há elementos altamente carregados de simbologia, a exemplo da própria ilha, além da musicalidade dos versos expressa por meio dos mais diversos recursos fônicos); passa pela angústia dos expressionistas (não por coincidência o título do livro remete à tela de Edward Munch); tangencia a liberdade de pesquisa do inconsciente conquistada pelos surrealistas, com suas (dele e deles) metáforas livres de quaisquer amarras; e deságua no niilismo de alguns pós-modernos. Como em muitos destes últimos, também o gosto por recorrentes referências metalingüísticas e metapoéticas (Este poema órfão, / Sem musa, / sem signos, / Sem nada!) e o gosto pelas referências intertextuais (a revisitação recriadora do gênero épico, o uso de epígrafes, as alusões a antigos mitos, entre outros procedimentos dialógicos).

Mas, a par dessas tantas influências, Jafran consegue impor-se em estilo próprio, marcante, rascante, maduro, escritor que prima pela profundidade do conteúdo filosófico e pela consciente ourivesaria formal. Lê-lo traz também à língua um gosto de sal de batismo, de espanto com o novo. Rompe com padrões preestabelecidos: suas metáforas são sempre ousadas, inesperadas; a todo momento surpreendem-nos ambigüidades expressivas, neologismos, construções sintático-semânticas que subvertem as estruturas gramaticais da língua em todos os níveis. Sem contar a diversidade rítmica e rímica, o livre uso de formas canônicas e não canônicas do soneto ao lado de formas modernas de poemas. E o paradoxo como elemento estruturador do texto, desequilibrando nossas falsas verdades e coerências... E as hipérboles que fazem gritar o grito da ilha... Em lugar de fornecer exemplos, sugerimos o prazer da leitura e da descoberta desses procedimentos.

Jafran explora outros dois campos semânticos essenciais além do já citado no terceiro parágrafo: o de ilha e o de negação. Basta realizar um levantamento do vocabulário para constatar que, no primeiro caso, as palavras e expressões ligadas a ilha longe estão de descrevê-la como o lugar paradisíaco que aparece em grande parte da tradição artística. No segundo caso, tal é o número de vocábulos e expressões conotadores de aspectos negativos (relativamente ao personagem e ao ambiente) e prefixos com significado de negação, que poderíamos chamar a estética jafraniana neste livro de “uma poética do Não”.

O grande poeta inglês John Donne (1572-1631) afirmou: “ Homem nenhum é uma ilha, completo em si; cada homem é uma parte do continente, uma parte do todo”. Essa, a visão do ser humano nos primórdios da Era Moderna, em uma perspectiva integradora. Já nestes nossos tempos em que globalização não corresponde necessariamente a integração, em que informação acessível nem sempre tem como conseqüência a comunicação verdadeira, Jafran Bastos revela-nos um homem metaforizado em ilha porque isolado, desgarrado do todo, feito de carências, frustrações, inadaptações, perdida a amada (canto VI, A Face Tatuada), sem amigos, família, pátria, crenças, perspectivas... à margem da sociedade e da vida. Um gauche drummondiano.

Ao poeta, personagem central do livro, nada resta além de um grito mudo ou um antigrito. Porém ao poeta Jafran Bastos a redenção se dá pelo Belo, pela qualidade e força da função poética de seu texto, que consegue o milagre alquímico de transformar o Não em Sim.

(Prefácio do livro O grito da ilha. Editoração Editora Ltda. RJ. 2008)

Fonte:
Revista da Academia Niteroiense de Letras. ano 2. n.4 (out/nov/dez 2008). Disponivel em http://www.academianiteroiense.org.br/

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