sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Nicodemos Sena (Potira dentro da Lua)

As águas do rio ficam muito serenas. Nenhum som, nenhuma voz, nada se ouve, como se de repente um grande sono tivesse baixado sobre o rio e todas as coisas dormitassem.

Abaixo da cintura, sinto-me deslizar pela maciez de musgos, samambaias, mururés e lianas. Tépida é a água, cálida a sua frescura. Através do espelho negro dos olhos de Potira consigo ver os peixes de olhos mortiços e escamas faiscantes no fundo das águas. Cobras peçonhentas, agora inofensivas, descem da terra e trançam entre nossos corpos, provocando-nos leves arrepios. Grandes e pequenos jacarés arrastam-se uns sobre os outros, as cobras enfiando-se-lhes pela boca e saindo de suas entranhas como longos cordões.

Os curumins entram no rio com seus arcos e flechas de brinquedo; correm de um lugar para outro mirando os peixes que se amparam em quelônios. O mais taludo dos fedelhos aproxima-se de nós e tenta apalpar os seios de Potira. Faço-lhe uma carranca, mas o maroto não se afasta, apenas ri com a boca escancarada; vejo guelras em sua garganta. Potira deixa-se tocar pelo pirralho e pede que eu não me zangue, pois o curumim é apenas um “petitinga”, peixe-miúdo. Piracanjuba, peixe-da-cabeça-amarela, é seu nome.

Uma cunhã ainda muito “mucu” (nova) vem nadando pelo fundo e se roça em meu corpo. Potira dá-lhe um beliscão no costado. A cunhã se afasta, os cabelos lisos e muito compridos esvoaçando-lhe sobre as costas. Bela é a cunhantã, formoso o seu dorso, porém, em meio à pelugem do púbis, vejo, num átimo de relâmpago, como faca brilhando entre musgos, um pequeno falo. Potira diz que o homem que se juntar com ela será feliz. “Ixé inti xa recó nha, rerecó uahá” (eu não tenho o que você tem), lamenta-se, apalpando-me o pênis.

Piracanjuba, que entrara na idade em que os curumins se tornam perigosos, desinteressa-se de Potira e põe-se a seguir a cunhã-mucu.

Uma arraia cinza, de ferrão imenso, chega planando perto de nós; da sua sombra vultos de gente começam a sair.

“Aba-pe aipó?” (quem são eles?), pergunto. Potira diz que são os que morreram afogados no “upabanema” (lago fedorento). Eles saem do fundo dos rios, retornam como eram em vida e se dirigem para o céu, pelo clarão das estrelas. No fundo dos olhos negros de Potira vejo miríades de pontinhos reluzentes. Como isso aconteceu, se há pouco ainda era manhã?! “Inti mahã! Oar pituna!” (não! a noite já caiu!), exclama Potira. “Psiu! Ninguém deve acordar o rio”, adverte ela. A Mãe-d’água, quando o rio dorme, senta-se na proa das canoas e penteia seus lindos cabelos à luz do luar.

“Vamos ver a mãe d’água?”,convida Potira, em português surpreendentemente perfeito, pois os homens debaixo d’água, ou em transe, unidos pela paixão, no sonho ou no desespero, falam a mesma língua. Consigo ver a sua voz fluindo pela água, em halos transparentes. Fala baixinho, ciciando no meu ouvido. Linda é a sua voz se infiltrando por entre mururés e lianas; ao ouvi-la, jacarés, peixes e quelônios adormecem. Estou ligado ao mundo pela sua voz, que me entra pela alma e conduz a todos os lugares e a lugar nenhum.

Sem pernas, caminhamos em busca da Mãe-d’água, um dentro do outro, no útero fofo do rio, ligados pelo tênue fio da vida. De repente, Potira pára (ou fui eu que parei?). Sem olhos vemos o mundo invertido na linha do horizonte. Ou é o mundo que nos vê? Que bela visão! O rio suspenso na abóbada celeste e o Céu sentado nas águas do rio!

Eu e Potira flutuamos no éter, extasiados, plenos de imensidão, calados, mas nossas almas falam. Nos olhos de Potira enxergo os tempos antigos, muito antigos, em que o seu povo morava no teto do Céu. Lá, muito acima, há tudo que se pode desejar. Há batata-doce, macaxeira, inhame, mandioca, milho, frutos de inajá, banana, caça de toda variedade e tartarugas da terra, tudo o que se pode comer e imaginar. Sou um guerreiro experiente e descubro no mato a cova de um tatu. Quero caçar o animal e começo a cavar. Cavo, cavo o dia todo, até de noite, sem encontrar o tatu. Na manhã seguinte, bem cedo, vou para o mato, a fim de continuar a cavar. Cavo até de noite, em vão. No quinto dia, quando estou cavando bem fundo, vejo de repente o tatu-gigante, mas, na ânsia de cavar, furo a abóbada celeste. O tatu então despenca, vai caindo, caindo, até chegar a Terra. Acompanho o tatu na queda, mas um vento forte, de tempestade, pega-me e atira-me de volta para cima, fazendo-me retornar ao Céu, de onde, através do buraco, olho a Terra, lá em baixo. Distingo uma pequena floresta de buritis, um grande rio e campos imensos. Nostalgia infinita toma conta de mim; desse mundo distante sinto saudade. Corro para minha aldeia e conto a novidade: “Cavei um buraco no Céu”, digo a todos. “Como foi que isso aconteceu?”, pergunta um guerreiro. Conto como descobri no mato a cova do tatu-gigante e comecei a cavar, dia após dia, até furar o firmamento. “E onde está o tatu agora?”, querem saber os homens. “Rolou para baixo, eu vi ele cair numa floresta de burutis”, respondo. “O que faremos agora? Ficamos no Céu ou descemos para a Terra?”, pergunta um dos homens. Falam e pensam por muito tempo, até que resolvem mudar-se para a Terra. “O problema é só como vamos descer para lá”, diz um deles. Um outro sugere: “Façamos uma corda comprida de todos os nossos fios, e cordas de arco de todos os nossos cintos e braceletes; cada homem vá para sua choça e de lá traga o que tiver em cordões e fitas”. “Você tem razão, a corda deve ficar forte, igual à de nossos arcos”, retruca outro. Fazemos a corda comprida e depois a jogamos pelo buraco do Céu. Começamos a descida, mas logo paramos, pois a corda não é suficientemente comprida para chegar até a Terra. Tristonhos, voltamos ao Céu. Lá, amarramos muitas outras fitas e cordas para encompridar a corda; ainda não é o bastante; temos que voltar de novo para prolongar a corda, que, mais uma vez, não tem o comprimento necessário. Damos nova busca na aldeia, juntamos tudo o que há em fitas, cordões, cintos e colares; por fim, a corda fica muito comprida. Um homem sem medo e sem vertigem desce e pisa primeiro na Terra. Vejo-o chegar e amarrar a corda no tronco de uma árvore gigantesca. Começa a descida de toda a tribo: primeiro os jovens, depois as mulheres com as crianças, as menores presas a tipóias nas costas das mães; em seguida, os homens e, por fim, os anciãos. Os que aterrizam partem logo para os campos imensos. Os jovens, à frente, procuram o caminho para uma nova morada. Temerosos, alguns hesitam e não acompanham os demais na descida.

Segurando minha mão na descida, Potira solta gritinhos. Vejo um curumim estranho que vem correndo e, ao ver a corda, corta-a, zombando: “Estou cortando a corda para eles ficarem eternamente lá em cima”. Nesse instante, acho que tenho uma vertigem, pois de nada me lembro. A tribo ficou dividida; uma parte continuou morando no Céu e outra, na Terra. Onde eu e Potira ficamos?

“Na terra”, diz Potira.

“No céu”, digo eu.

O que importa, se estamos juntos? Onde estamos será o nosso Céu. Raios translúcidos partem de um disco escarlate, metade água metade ar, olho dourado na linha do horizonte. Dia ou noite, o que será?

“Oar pituna. Pituna i roine” (a noite caiu, será fria), diz Potira.

“Guaraci osem umã; i porang sepiaca” (o sol já saiu, é bela a visão dele), retruco-lhe.

“Acanga aiua! Iaci-tatá” (louco! é o luar!), diz Potira, divertindo-se com a minha confusão. “Aape iporanga reté” (lá é muito bonito), completa a rapariga.

Não sei por quanto tempo avançamos. Sinto as minhas pernas, a ferida já não dói, mas estou muito cansado. Potira, ao contrário, parece cheia de energia.

“Iaciçuaçu poranga reté!” (como a lua cheia está bonita!), exclama.

“Poranga mahiê ne iaué!” (tão bonita como tu!), retruco.

Afastamo-nos tanto da praia que não enxergo mais a margem; estamos em águas profundas, mas o piso do rio (ou teto do Céu?) nunca foge dos pés. Jacarés e peixes menores ficaram para trás. Tainhas, atuns e xaréus são nossos companheiros. Potira segura firme minha mão e, ágil como um peixe, às vezes, me puxa.

O disco escarlate aos poucos vai se erguendo. Baça é a sua luz, tépido o seu calor. Gotas d’água escorrem como suor pelo meu rosto e respiro com dificuldade.

“Poranga iaci-tatá” (lindo é o luar), diz Potira, adiantando-se à maneira dos golfinhos. De repente pára e olha-me.

Que visão enlouquecedora: Potira dentro da Lua!

“Iuri Iké!” (vem cá!), ela me chama.

Estranho, muito estranho, Potira parece outra. Seu rosto redondo fica do tamanho da Lua e seus olhos refletem uma luz mortiça.

“Iuri Iké! Esiquiié umem!” (vem cá! não tenhas medo!), ela me anima.

Hesito. O rosto esfogueado da cunhantã, suas narinas dilatadas e a língua que umedece os lábios como se estivesse com sede atemorizam-me. Pego-lhe as mãos, nossos dedos se entrelaçam e os corpos unidos balouçam com as ondas.

De longe, muito longe, chegam-me vozes, muitas vozes, vozes muito antigas. As vozes frias dos mortos; as vozes dos vivos que gesticulam em volta dos castelos suplicando comida e agasalho; vozes portuguesas do Alentejo fluindo no ar trêmulo das manhãs; vozes hebraicas que imprecam e pregam; vozes inglesas que murmuram e soluçam; vozes brasileiras que suplicam e amaldiçoam; trêmulas vozes d’África procurando o sentido do mundo; vozes de Dante: “Misere di me, gridai a lui qual che tu sii, od ombra od omo certo!”; e o poeta que se agarra à última quimera para não enlouquecer, dizendo-me: “Atenta, amigo, para a modulação da voz, aprende a sua condensada chama, ali onde há de acender algum claro sentido, a menos que te bastem as estacas do ruído. As muitas vozes que perseguem nosso dia com suas águas turvas, suas lâminas, as que sempre esquecerás antes que calem e a que lembrarás por sua acesa chama; a voz da amada, lasciva e profana, a voz do nada, a voz muda, e a que te engana”. No meio de tudo, a voz de Potira murmurando: “Potira nde rausuba” (Potira te ama). Mas o primeiro naco assado da minha carne a danada vai comer com volúpia, por amor, para que eu, desfazendo-me em suas entranhas, fique entranhado para sempre em sua alma. Gosto dela mesmo assim: Potira fazendo sua própria vontade, Potira espetando seu próprio corpo, Potira mordendo-me com caninos de jaguarete, Potira unhando-me com unhas de suçuarana. Nhaêpepô-oaçu, meu matador, lasca já meu crânio com o ibirapema. Potira, pequena antropófaga, podes comer-me com prazer — que doce ventura ter teu corpo por sepultura!

De dentro da Lua, Potira me olha e enxerga o meu pensamento. Pingos de mel brotam-lhe dos olhos, adocicando-me o sofrimento. Uma auréola de pétalas circunda-lhe o rosto, embriagando com seu perfume o mundo. Fico zonzo, já não tenho pernas, nem braços nem corpo. A terra sumiu, a água sumiu e todos os bichos aquáticos desapareceram. Sem olhos, sem boca e sem ouvidos, apenas penso, ou penso que penso, pois não lembro das palavras, já não penso, apenas pressinto e sinto, um vulto entrando na cabana.

Fontes:
Dossier Amazónico. In Revista “Construções Portuárias” (Lisboa, 2002).
Imagem =
http://www.triplov.com

Nenhum comentário: