sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Ademir Braz (Vestígios de Duília)

Foi só enquanto saltava amarelinha sobre o calçamento irregular que ia da casa dela até à esquina, sob a rama de oitizeiros, que me apercebi: nunca mais nos veríamos. Recordo que, tonto, sentei-me no meio-fio e permaneci horas olhando a madrugada rabiscar adeuses naquela porta. Eu ainda a vi num sonho: o ônibus alcançava o extremo da rua e a amada, num gesto insano, lançava um beijo por trás dos vidros; então o sol dourava a rua cheia de pó, andava um alarido de carros no ar, sobre a banca de revista flamejava a cidade irreal. Ela foi embora, dei-me conta ao acordar. “Ela foi embora”, eu disse e mãe pôs de lado a cabeça num gesto seu e acenou assim a cabeça me fitando em silêncio, nesse mistério que as palavras não alcançam. Nenhum símbolo tem a exatidão do silêncio, eu sei, e dito assim soa trágico – eu sou trágico mas não quero ser trágico -, embora esta bebida solitária tenha hoje gosto de pólvora e eu sequer consiga passar minha saudade a limpo. Na noite seguinte vesti a roupa mais sóbria, colhi duas pequeninas flores vermelhas, deixei os cabelos por enxugar, pentear – eles que se arrumassem, se quisessem. Aquele ônibus talvez vadeasse ainda o caldo espesso da noite, longe, atônito. Sentia-me frágil, limpo e docemente triste. Levei as flores ao bar na intenção de dá-las. Em casa, quase amanhecia quando consegui colocá-las num copo d’água antes de despencar bêbado entre a cama e a mesinha de leitura.


A carta veio certa manhã pelo amigo comum e dizia dos filhos do casamento em ruínas no planalto distante. Durante dias levei-a no bolso aonde fosse, parava na rua para acariciá-la, atrás de qualquer coisa das mãos de Duília. Também escrevia, sempre, como se atirasse garrafas ao mar, certo que chegariam a lugar nenhum mas certo de livrar-me da alma que aos poucos destruía e deixava destruir. Os escritos nunca enviados guardei-os numa caixa todos esses anos, até incinerá-los ao certificar-me que o tempo me cobrira de escamas enquanto cercava em muralhas um sentimento desde sempre inútil. Acho que a mãe pressentiu quando libertei no quintal meus pássaros de criação, porque eu nada disse antes de desterrar-me.

Minha solidão tornou-se uniforme, indivisível. É certo que andei por aí, mochila às costas, muitas amantes, raros amores, vi o sol ácido do mar entre pescadores de taínha. Mas por que falar nisso, no mistério das pedras ou na semente que a mão gredosa atirou em solo infértil? Debaixo da pele o rosto da esfinge permanecia violáceo, mais seu olhar, sabor, a flor exótica do rosto. Certa feita, quantos anos depois?, entre búfalos e andorinhas sonhei com uma praia. À tona d’água o sol ensandecia, o vento uivava entre mechas de cabelo, e lá estava ela – gaivota breve e tão translúcida no ar que parecia gota de luz no azul sem fim. Diziam, quando nasci, que chorei na barriga da mãe e cresci entre visões dolorosas que as tias exorcizavam com cânticos, rezas, defumações. Pensava haver-me libertado de tudo isso, do lar não construído, da insurreição não feita. Agora, o que eu tinha? Terra sob as unhas, sonhos derruídos, histórias de pesadelos, mares e pescarias, amores contingentes exatos em si mesmos. Pássaro reencarnado, doeu-me até onde sentia, em todas as dobras do meu tempo, na carne, no sonho voando em círculos.

Atrás dos óculos olho a cidadela de cal e sol na cruz dos rios. Para lá da janela do quarto de hotel a luz devora montes de lixo no leito arruinado das ruas. Choveu parte da noite, vai o dia lavado chegando às onze e estou aqui, barbeado, em bermudas, essa bebida intragável nas mãos, um bem-te-vi trinando na mangueira do outro lado da rua. Deve ter sido este, mal desnuda a pele do primata, o sentimento de poderosa gratuidade que teve o homem ao sentir-se imerso nas coisas do mundo. Neste momento não há deuses além do sol. Só uma voz pontiaguda, rara, gimme somebody, entre guitarras plangentes. Tudo e tão perfeito! Mesmo esta secreta decisão de só estar aqui vendo enquanto posso o vento nas folhas da palmeira nos fundos do hotel; a trepadeira agarrou-se na janela e, por trás dela, os cachos de carambolas, entre laivos verdes, têm a síntese da vida. “Não estou pensando em nada/ E essa coisa central, que é coisa nenhuma/ É-me agradável como o ar da noite,/ Fresco em contraste com o Verão quente do dia”.

Enquanto caminho, o cheiro da chuva impregna o ar. Na outra margem da rua uma mulher estende roupas no varal e tudo é espantosamente singelo e real, como a menina que imita agora mesmo o cantar de galos e sua voz sobrepõe-se a um rádio, restos de palavras, o ruído da carroça puxada a burro que sacoleja sobre o chão molhado; ouço pássaros – as cambaxirras de outrora! – cantarem próximo e vejo uma revoada de pardais entre oitizeiros. Um tanto mais distraído, sou hoje contemplativo do mundo e das pessoas, observo enquanto os pés roçam o sagrado das pedras e revejo agastado os lugares lembrados em noites de angústia e perda. Não há mais qualquer vestígio do corpo de Duília, do seu cheiro de pau-dangola. Eu sou o estranho na paisagem, o estrangeiro do ontem. Não fora o que sou, poeta, seria mar: todo cheio de velas e adeuses. O bar antigo não existe mais, soterrado entre prateleiras e pares de sapatos. Sei que a amada está aqui e penso que se pudesse ocultaria a alma em sobressalto exposta às memórias que vêm do pó, enquanto o aço da arma pesa toneladas no cós da calça. Eu não quero pensar, recordar, olhar sobre o ombro para o mar que uniu-se ao precipício e soterrou pássaros e tigres. Sou o estranho na paisagem, o passageiro do ontem refletido nos vidros da sapataria. O que deve ser feito, será feito, para isso eu vim. Antes, quero apenas rever os olhos da esfinge.

Fonte:
http://www.culturapara.art.br/Literatura/

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