sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Machado de Assis (Dom Casmurro)

OTELO OU ÓPERA-BUFA?

A história de Bentinho e Capitu está entre as obras mais requisitadas pelos exames do País

Publicado pela primeira vez em 1899, Dom Casmurro, de Machado de Assis (1839-1908) é objeto de acirradas discussões entre leigos, professores e críticos. Trata-se de um duplo perfeito meticulosamente calculado pelo maior romancista da Língua Portuguesa.

Ao analisar o livro, o leitor deve ter em mente que essa é uma obra passível de duas interpretações fundamentais e antagônicas. A adesão a uma ou a outra dependerá da credibilidade que se atribui ao narrador-protagonista. O famoso pomo de discórdia que alavanca as polêmicas em torno do romance é a questão do adultério: Capitu, esposa de Bentinho, teria ou não o traído com Escobar? Mas será esse o problema nuclear da obra, ou mero pretexto para verificar aspectos maiores?

Órfão de pai aos quatro anos, o narrador-protagonista, Bento Santiago – também conhecido como Bentinho –, vivia sob a tutela da mãe.A viúva, dona Glória, embora moça e bonita, optou pelo luto fechado, disfarçando suas formas em vestidos escuros e sem enfeites, um xale preto e os cabelos presos num coque, ou cobertos por uma touca. Após vender a fazenda em Itaguaí e alguns escravos, mudou-se para a casa da rua de Matacavalos, de onde raramente saía, a não ser para ir à missa.

Para ter companhia, chamou seu irmão, Cosme, e sua prima Justina, ambos viúvos, para viverem com ela. Além deles morava em Matacavalos o agregado José Dias, um dos mais interessantes personagens do universo machadiano. Dias era membro honorário da família desde a época em que era vivo o pai de Bentinho, Pedro Santiago. Chegara durante uma onda de febres dizendo-se homeopata e curou com ajuda de seus livros o feitor e uma escrava. Pedro Santiago, assim, convidou Dias para morar na fazenda mediante um pequeno salário.

Logo depois, Pedro foi eleito deputado, e os Santiago mudaramse para a então capital do Império, Rio de Janeiro. Dias os acompanhou. Convocado para examinar os escravos num segundo surto de febre que abateu Itaguaí, confessou que jamais fora médico. O charlatão, porém, já havia conquistado a família. Quando Pedro Santiago morreu, Dias aprontou suas malas, mas dona Glória pediu-lhe que ficasse. Com um “– Obedeço, minha senhora”, concordou, e desde então permaneceu na casa. Assim, Bentinho vivia entre adultos.

Superprotetora, dona Glória criara o filho sob estreita vigilância. O menino nem sequer ia à escola; tomava lições particulares em casa, com o padre Cabral. Seu único contato estreito extrafa--miliar era Maria Capitolina, a Capitu, menina da casa vizinha, filha
do Pádua e de dona Fortunata. A família da amiga era digna, todavia menos abastada que a de dona Glória. Prova disso é a bela descrição que o narrador faz de Capitu:

Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor, não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.

Capitu chegara à vida de Bentinho ainda criança, por volta dos cinco anos. Companheiros de brincadeiras, ele “batizava” as bonecas dela. Mas os anos passaram, e chegou o tempo do amor. Além disso, Bentinho, foco de convergência de sua casa, e até certo ponto seiva para os que desejavam a vitalidade apesar da falta de objetivos, tinha seu futuro neutralizado por uma promessa. Sua mãe, mulher devota, após a perda do primeiro filho, que nascera morto, prometera que, se o próximo fosse homem e vingasse, seria padre.

Na cena que inicia a ação propriamente dita, Bentinho ouviu da varanda o agregado José Dias lembrando à dona Glória que já era época de mandar o garoto, então com 15 anos, para o seminário. Disse-lhe que Capitu, “a filha do Pádua”, por quem nutria mal disfarçado rancor, andava com o menino “pelos cantos”, “em segredinhos”, e que se começassem a namorar seria difícil separá-los. Estupefata, dona Glória negou veemente essa possibilidade, argumentando que eles mal tinham saído das fraldas.Mesmo relutando, a mãe de Bentinho acabou por concordar com o agregado.

Ao ouvir a conversa, o menino, já amadurecido, concluiu que José Dias o denunciara a si mesmo, e da varanda seguiu para a casa da vizinha, que nesse momento já estava escrevendo os nomes de ambos com um prego. Flagrada por ele, tentou encostar-se contra o muro, entretanto Bentinho a tirou dali e leu comovido que no momento seguinte em que pensou amar, era amado.

Bento então contou a Capitu sobre a conversa ouvida. A reação da doce companheira de infância é colérica: “– Beata! Carola! Papa-Missas!”, vociferou para horror silencioso do garoto. E num repente de uma inspiração certamente decantada por tudo o que seus olhos agudos viram ao longo dos anos sob a anestesia daquela gente, Capitu concebeu um plano para livrar o namorado do celibato.

A menina lembrou Bentinho da precariedade financeira de José Dias, já que seu amado seria dono da casa quando crescesse. Lembrou também que o agregado gostava muito de ser elogiado por sua cultura de almanaque e por seus superlativos absolutos sintéticos, que acreditava darem certa dignidade ao seu discurso. Depois de sugerir ao companheiro fazer esses dois preâmbulos, recomendou que pedisse o apoio de José Dias na luta contra o seminário.

Após várias peripécias, que incluíram o primeiro beijo, Bento foi ao seminário. José Dias, porém, estava convencido de que se o menino não ingressasse na carreira eclesiástica iria certamente estudar na Europa, o que a seu ver implicaria acompanhar o futuro acadêmico. Assim conseguiu a promessa de que, se Bento não tivesse sua vocação manifesta em um ano, estaria livre para ser o que desejasse, e sua mãe se livraria da obrigação com Deus, mantendo financeiramente um garoto pobre que almejasse ser padre.

O período de seminário – ao qual, aliás, o temperamento pacato de Bentinho se acostumava – trouxe-lhe o amigo Ezequiel Escobar. Pouco mais velho e também pouco disposto aos votos, Escobar tinha um projeto que não envolvia amores: sua vocação era o comércio. Ambos conseguiram livrar-se do celibato: Bento foi a São Paulo estudar Direito, enquanto Escobar se estabeleceu como próspero comerciante. Em suas muitas viagens levava e trazia a correspondência entre Bento e Capitu, a quem chamava “cunhadinha”. Nesse meio tempo, Escobar conheceu a melhor amiga de Capitu, Sancha.

Os encontros resultaram em dois casamentos: Bento e Capitu; Escobar e Sancha. Estes logo tiveram uma filha, Capituzinha, em homenagem à madrinha. Os protagonistas retribuíram a consideração dos amigos dando o nome Ezequiel ao filho. Logo que Ezequiel nasceu, Escobar sugeriu a Bentinho que trabalhassem pelo casamento de seus filhos.

Os casais se freqüentavam, os pequenos se entendiam. Até que numa noite, depois de anos de convívio – Ezequiel tinha cerca de seis anos e Capituzinha nove –, Bento notou Sancha como não havia notado antes. O mar, onde todas as manhãs Escobar costumava nadar, estava em ressaca. Da janela da casa do amigo, na escuridão da noite, sentia o bramir do oceano; excitado pelo perigo que o aguardava na manhã seguinte ele estava certo de que mais uma vez venceria os caprichos das ondas.

Nessa noite, após o jantar, todos conversavam. Escobar sugeriu que tinha algo a dizer a Bentinho, mas que ficaria para outra ocasião. Este, então, sondou Sancha, que lhe parecia extraordinariamente bonita e acolhedora na ocasião. Ela lhe contou em segredo que o tal projeto era uma viagem à Europa dali a dois anos, os quatro, e rogou-lhe que não contasse ao marido. Ao se despedirem, a mulher de Escobar, a seu ver, apertou-lhe a mão com mais entusiasmo e olhou-o de modo peculiar, o que agravou a atração que sentia por ela naquele momento.

A impressão de cumplicidade sensual entre Sancha e Bentinho dilui-se na manhã seguinte, quando ele acordou com a notícia de que Escobar estava morto, vencido finalmente pelo mar.

A viúva ficou tão transtornada e infeliz que nada havia que cogitar sobre seu amor e fidelidade pelo marido. Ao lado do caixão permanecia aos soluços, amparada pela amiga Capitu, que, diga-se, não chorou, exceto na hora de fechar o caixão, momento em que homens e mulheres choraram. Somente Bentinho suspendeu suas lágrimas ao ver as da mulher “poucas e caladas”, e que ela enxugou “rápido” e, a seu ver, “a furto”.

Tempos depois, após um almoço, Capitu, ainda à mesa, aludiu a uma semelhança entre o olhar do filho e os de duas pessoas que conhecera antes, um amigo de seu pai e o “defunto Escobar”. Bento ponderou para si que não haveria mais de uma dúzia de olhares no mundo, e disse à esposa que em matéria de beleza, os olhos de Ezequiel haviam saído aos dela.

Mas o que se planta no inconsciente, no consciente viceja. O narrador foi tomado pela certeza de que o grande amor de sua vida o havia traído com seu melhor amigo. O único amor, oúnico amigo. A certeza o arrebatou. A partir de então passou a distanciar-se da família. Já não acudia às festas do filho quando chegava do trabalho e costumavam brincar. Evitava a esposa, em longas saídas.

Numa delas, assistiu a Otelo, clássico de William Shakespeare (1564-1616). Como é sabido, Otelo, o mouro de Veneza, casa-se com Desdêmona, rendendo-se ao mútuo e sincero amor que os unia. Mas o falso amigo Iago persuade Otelo de que sua mulher o traía e planta um lencinho da inocente Desdêmona na casa do suposto amante. Otelo mata a esposa e depois se suicida.

No momento em que a platéia assistia ao assassinato de Desdêmona, irrompeu em aplausos. Esses aplausos tanto podem ser entendidos como entusiasmo pela atuação do elenco, quanto como um paralelo ao estado emocional do narrador: ou Capitu é Desdêmona, portanto, inocente, ou a peça pode ser um alerta para a traição de Capitu.

Ao final, Bento, definitivamente dominado pela suspeita, pensa em suicídio colocando veneno no café. Era domingo de manhã, dia de missa. O filho entrou na cozinha exatamente no momento em que Bento se preparava para ingerir a beberagem. Ao ver o garoto, porém, decidiu num lampejo que era o menino quem devia morrer, e lhe ofereceu a xícara. Ezequiel, que já tomara café, ansioso por agradar ao pai que andava tão distante, apanhou a xícara. Quando ia beber, Bento a derrubou de propósito, e começou a chorar. O menino, assustado, puxou-lhe pelas calças, chamando: “ – Papai!”. Ele disse que não era seu pai.

Nesse momento deu-se conta da presença de Capitu. Como o ponto de vista é dele, não sabemos se ela tinha ouvido tudo, ou apenas fora atraída pelo choro de ambos. Capitu pediu ao filho que a esperasse na sala. Bentinho explicou-lhe a terrível suspeita, e a mulher sabia que era a semelhança. Mas a vida, segundo o livro, tem dessas coisas esquisitas, já que a própria Capitu era extremamente parecida com a mãe já falecida de Sancha quando jovem, conforme atestou o próprio Gurgel, o viúvo.

Optaram pela farsa: Capitu e Ezequiel partiriam com Bentinho para a Suíça, com o suposto intuito de dar uma educação européia ao garoto. Ambos nunca mais voltaram. Bentinho nunca assumiu a separação perante a sociedade.

Dona Glória, tio Cosme e José Dias morreram, Capitu também morreu no exílio. Até que Bentinho, definitivamente Dom Casmurro, no tempo em que morava acompanhado de um único escravo, recebeu um dia a visita de Ezequiel, já moço. Após o impacto de ter recebido o cartão de visita, que o fez levar cerca de quinze minutos para descer e receber o rapaz, o narrador deu de cara com o velho companheiro de seminário. É bom lembrar que, para alguém tão parecido com Escobar, Ezequiel guardava diferenças importantes do falecido amigo.

Durante seis meses, dom Casmurro conviveu com Ezequiel e com a suposta semelhança. Ao cabo desses, o rapaz seguiu para Jerusalém, onde morreria de uma febre. O narrador, ao receber a conta do funeral e a cópia do que se escreveu na lápide, diz que custou caro, mas que pagaria o dobro apenas para nunca mais ter de ver Ezequiel.

O arremate da obra é intrigante: citando o capítulo IX, versículo 1, de Jesus, filho de Sirach: “Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti”.

Entre Dois Pólos

Entre o princípio e o fim dessa síntese do enredo de um cosmo, interpõem-se episódios de grande duplicidade interpretativa. Um dos mais celebrados é a ocasião em que Bento Santiago vai sozinho ao teatro, deixando Capitu em casa. Esta alegara estar indisposta. Não tendo gostado da peça, Santiago retirou-se entre o primeiro e o segundo atos e chegando em casa, deparou com Escobar saindo. O amigo disse ter pendências jurídicas a tratar, pendências, no parecer de Bentinho, que poderiam ser resolvidas no dia seguinte. Mais tarde, Capitu alegou que o mal-estar na verdade era uma indisposição a saídas.

Em qualquer hipótese, a obra é bipolar: ou Capitu e Escobar são realmente inocentes da suspeita do narrador, ou são não apenas culpados, mas também cínicos, e não só por ocultarem o caso, mas também pelas repetidas atitudes de dissimulação. Ela é a primeira a aludir à semelhança de olhares entre o do filho e o de Escobar; este, pelo fato de ter proposto o casamento entre Capituzinha e Ezequiel; ambos por terem sido traídos pela genética: o menino indiscutivelmente se parecia com Escobar.

Uma das características marcantes da obra de Machado de Assis é a análise psicológica. O autor chegou até mesmo a antecipar conceitos que mais tarde o próprio Sigmund Freud (1856-1939) formalizaria, como é o caso do complexo de Édipo, claramente prefigurado no romance.

As muitas possibilidades interpretativas da obra merecem um livro. Mas, considerando-se as duas interpretações fundamentais,
evidencia-se que tanto faz optar por uma ou por outra. Se Capitu efetivamente havia traído Bentinho, ele fez o que sabia fazer numa ocasião extrema como essa: mandou a família para a Europa, não assumiu sua separação perante a sociedade, fingiu ir visitá-los todo ano, coisa que na verdade não fazia, deixou o tempo passar, e este se encarregou do resto: a morte dos familiares e da esposa, o retorno imprevisto de Ezequiel.

Caso não tenha sido traído, ele pensou que foi. Então agiu da mesma maneira: mandou a família para a Europa, não assumiu sua separação, etc. Isso nos leva a concluir que tanto faz, e que discutiremos o fato ad aeternum enquanto o velho bruxo do Cosme Velho ri de nós lá do infinito, em sua eterna superação de
tudo quanto é humano.

Fonte:
Revista Discutindo a Literatura. Edicao 13. SP: Editora Escala Educacional. p.22.

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