A casa da Prof. Arnaldo era uma construção antiga, com mais de trinta anos, varandões em torno, jardim na frente e pomar nos fundos. Ficava quase escondida por de trás dos pés de jaca, das amoreiras e dos tamarindeiros. Logo que se transpunha o portão de entrada, do chão se evolava um odor de folhas podres, lodo e umidade.
Prof. Arnaldo morava só. Recebia muitas visitas, principalmente ex-colegas de labuta forense. Há muitos anos, deixara a advocacia, justificando que não suportava a morosidade com que os processos caminhavam e os desmandos de certos magistrados. Nos fundos, isolado do casarão, um quarto com banheiro anexo abrigava uma senhora morena, de longos cabelos negros, que arrumava a casa, cozinhava e cuidava das roupas do professor. Chamava-se Cristina. E tinha um filho pequeno: Rafael.
Numa noite de dezembro, quente, de tal modo que nenhuma folha do arvoredo se movia, o professor ficou na varanda, sentado numa cadeira de alumínio e forro de morim branco. Lá pelas tantas, quando já havia saído do primeiro cochilo, apareceu-lhe a figura de Altamiro Gouveia, proprietário de uma livraria.
– Trouxe-lhe hoje, Prof. Arnaldo, a última novidade a respeito da Segunda Guerra Mundial. O senhor vai gostar muito: é sobre a invasão da Normandia.
– Minha biblioteca está um tanto belicosa, Altamiro. Esta minha recente queda pelos livros de guerra fez-me esquecer até os clássicos. Estava lendo OS MAIAS, de Eça, e interrompi a leitura dele por causa daquela bigrafia de Rommel.
Prof. Arnaldo alisou a capa do livro, folheou-o ligeiramente, deteve os olhos num trecho do meio e acrescentou: – Vou devorá-lo, quando terminar OS MAIAS.
Conversaram ainda a respeito de vários outros autores nacionais e estrangeiros. Falaram acerca de escritores novos, tecendo-lhes críticas às produções, considerando que o excesso de ensaios literários denunciavam decadência das letras. Quando o bate-papo já esmorecia, Gouveia aproveitou uma pausa e, com o porte de quem se prepara para começar um discurso importante, acentuou:
– Prof. Arnaldo, o senhor vai desculpar-me, mas quero pedir-lhe uma gentileza. O senhor compreende... eu vou... vou... vou...
– Pode falar, Gouveia – atalhou.
– É que vou pedir um empréstimo no banco e necessito de seu aval. O senhor compreende, a gente não quer incomodar, mas se vê às vezes na contingência de...
– Não se acanhe, Gouveia. Isso é natural. Posso prestar-lhe o aval. O título está com você aí?
Prof. Arnaldo sabia que não podia negar-lhe a garantia. Embora fosse visceralmente contrário ao instituto do aval, não lhe restava outra alternativa senão concedê-lo ao velho amigo. E como Gouveia lhe exibisse a nota promissória, pediu que o acompanhasse até o escritório. Nesse cômodo do casarão, ficavam as estantes lotadas de livros, antigos volumes encadernados e brochuras novas, edições recentes. Uma escrivaninha de mogno estilo colonial espanhol. Quadros de família nas paredes. Uma reprodução a óleo de uma tela de Wlaminck, Paisagem Hibernal.
Prof. Arnaldo sentou-se, tomou da caneta e, examinando o título cambiário com cuidado, apôs o aval no verso.
– Estou comovido, professor. Não sei como agradecer-lhe. O senhor tirou-me de uma situação delicada. São coisas que a gente não esquece.
– Esqueça, Gouveia.
E voltaram a varanda.
Prof. Arnaldo prosperara economicamente depois que deixou a advocacia. Possuía um rendoso colégio, a bela casa residencial, vários terreno no centro da cidade, algum gado e várias casas de aluguel. E a riqueza não conseguiu afastar de si o vasto círculo de amizades. Constantemente era convidado para pronunciar palestras e conferências e para saudar personalidades importantes que visitavam a cidade.
Numa noite chuvosa, recolheu-se à biblioteca com muita vontade de ler o dicionário ilustrado. Neste, não encontrou a palavra ofendículo, mas, no etimológico-prosódico, sim. Nos tempos de Faculdade de Direito, aprendera nas aulas de Direito Penal que esse termo significava obstáculo, barreira, estorvo. Os cacos de vidro, que implantara nos muros em volta de sua propriedade, eram ofendículo.
– Como sua casa era singular! – pensou. – Bem poderia chamar-se A Casa dos Ofendículos. Os cacos de vidros eram grandes, pontiagudos, de várias cores, predominando o verde-garrafa. Não havia um só trecho de muro, em todo o perímetro, em que faltasse o estorvo.
– Ofendículo, uma palavra rara – pensou. – Pouco conhecida, mas vigorosa, expressiva, viril. Como o casarão era um recanto seu, intocável, onde se recolhera a si e aos seus caprichos, problemas, emoções, sentimentos, levando a vida que traçara, onde se encastelara contra o mundo onde a própria solidão tinha seus encantos, Prof. Arnaldo não relutou em admitir que a propriedade deveria chamar-se mesmo A Casa dos Ofendículos.
Fora, a chuva continuava, escorrendo pelas calhas, inundando as varandas. A leitura dos dicionários prolongou-se até as portas da meia noite, quando então o professor deixou a biblioteca e dirigiu-se ao quarto.
No dia seguinte, voltaria às preocupações lexicológicas. Mas tal não ocorreu. Logo de manhã, lembrou-se de cuidar das roseiras. Enquanto as adubava com uma pá pequena, agachado, percebeu que alguém abria o portão da frente e ingressava na área do jardim. Era Avelino Xavier, um conhecido dos tempos de serviço militar. Quase não vinha ao casarão. Quando o fazia, compelia-o alguma necessidade, de dinheiro ou de conselho. Quase sempre de dinheiro.
Logo que chegou às roseiras, começo a falar:
– Velho amigo, grande amigo, Prof. Arnaldo! Há quanto tempo distante desta humana e incomparável figura! Como está forte, disposto, conservado...
Com esse linguajar lisonjeiro, Xavier objetivava conquistar a atenção do professor. Este, no entanto, contestava os elogios. Não tanto por modéstia, mas porque achava falsa, fingida, estéril, aquela maneira de louvar. Não tardou que a verve do recém-chegado se arrefecesse, conduzindo-o logo à finalidade da visita. Mudando para um tom seco e áspero
de voz, disse:
– Professor, estou necessitando de seu aval.
Prof. Arnaldo permaneceu calado. Xavier considerou:
– Outra vez, meu caro professor. Sei que estou abusando, mas não tenho outra pessoa a quem pedir.
– Você sabia que estou muito carregado nos bancos, Xavier? Ontem mesmo um dos gerentes comentou esse fato. Na verdade, dei um aval na semana passada. Não acho elegante revelar o nome da pessoa.
– É que o senhor é muito conceituado nos bancos, professor. É controlado, organizado, prudente, honesto...Os bancos sabem disso. Gostam disso.
– Xavier, volta aqui amanhã. Preciso fazer um levantamento das minhas contas e fichas bancárias. Estou mesmo muito carregado.
– Por favor, professor – insistiu. – Não deixe para amanhã. Até que contabilizem o título, até que eu possa sacar o dinheiro, já passou a formatura de Lenita. Preciso enfrentar os gastos. Depois, será o noivado com o capitão.
– Mas amanhã não é daqui a um século, Xavier.
– Eu sei, professor. Eu compreendo. Perdoa-me a insistência. Rogo-lhe encarecidamente que seja hoje. Também será o ultimo. Juro-lhe.
Prof. Arnaldo rendeu-se.
– Está aí com você a letra?
– Sim, professor. E já está preenchida.
No caminho do jardim à biblioteca, Avelino Xavier fermentava e robustecia as razões de seu pedido.
– O senhor é solteiro, mora só, é muito rico. O senhor jamais poderá imaginar as privações, os apertos, os vexames por que passa um pai de família, destituído de recursos financeiros. Quando não uma doença ou o colégio dos filhos, é o noivado, a formatura, é tanta coisa.
Depois que Xavier se retirou com a nota promissória avalizada, Prof. Arnaldo ficou refletindo, com os olhos pregados no livros das estantes altas:
– Que desaforo! E nesta hora falta-me adrenalina para estourar, recusar, pedir ao homem que se retire, que não apareça mais. Pedir o aval não é nada. Mas aquela consideração atrevida em torno da minha condição de rico, solteiro e solitário? Que eu desconheço as vicissitudes de um pai de família... Ora, bolas! Por que o homem se casou, sabendo que não agüentaria o encargo? Por que não permaneceu solteiro como eu?
Vários dias passaram-se depois da visita de Xavier, todos eles carregados de pedidos análogos. De há muito, concedia favores dessa natureza, mas não com a freqüência e a intensidade atuais.
Prof. Arnaldo chegou a concluir que muitos elogios e convites para conferências estavam vinculados a esses pedidos de aval. Na verdade, logo após a palestra acerca das influências inglesas em Machado de Assis, no Colégio Estadual, recebeu a visita do presidente do Centro Literário Estudantil, que lhe subtraiu mais um aval. E assim se sucederam outros mais, prestados a Prudêncio Peixoto Nobre, jornalista da crônica social, a Vitor Hugo Seleto, criador de gado, Pedro Saulo Botelho, reformado dos quadros da Polícia Civil.
E todos haviam penetrado o casarão, denunciando a frágil, a precária oposição dos cacos de vidro, implantados nos muros, reluzentes, multicores, pontudos. Verdes, azuis, brancos, amarelos. Mais forte era a dialética dos pidões: -
“O Senhor é solteiro, mora só, é muito rico. Jamais poderá imaginar as privações, os apertos, os vexames por que passa um pai de família destituído de recursos financeiros...”
Prof. Arnaldo pensou em vários remédios. Viajar pelo Norte, onde tinha um primo, constituiria uma solução temporária, passageira, pois teria que regressar breve ao casarão. Dizer “não” a todos, trancar a cara, bancar o durão, poderia comprometer-lhe o conceito, a estima geral. Mas era preciso dar uma solução ao problema, pôr um paradeiro nos abusos. Muitos favorecidos haviam adotado o mal costume de não liquidar os títulos no vencimento, obrigando o avalista ao desembolso. Entre esses, Avelino Xavier. Prof. Arnaldo pensou em simular um contrato social, em que figuraria uma disposição vedando aos sócios a prestação do aval. Mas não conseguiu o cúmplice para a simulação. Somente se recorresse aos preguiçosos angorás de sua sala de visitas.
Finalmente, depois de várias noites de vigília, brotou-lhe na mente a solução. Uma fonte de água límpida, fresca, a jorrar pura, farta.
Adotaria um menino.
Cuidou dos detalhes. Consultou compêndios de direito, de há muito desprezados nas estantes da biblioteca. Mandou arrumar o quarto do futuro adotado num dos cômodos da frente. Ficou para o fim o principal:
– Quem seria o eleito?
Depois de alguns cotejos e confrontos, não tardou que a escolha recaísse no filho de Cristina, a doméstica. Conhecia o menino, os costumes da casa e parecia herdeiro da boa índole da mãe. Esta recebeu a notícia com lágrimas nos olhos. Sempre almejara um bom futuro para o filho. Há vários anos, pelo Natal – eis como são as coisas – até já havia tido a idéia.
Rafael tinha dois anos, quando da adoção. Era moreno claro, forte, de olhos grandes, muito inteligente, serviçal, educado. Crescera daí por diante cercado de toda opulência. Prof. Arnaldo – a quem o garoto chamava de pai – dava-lhe de tudo. Freqüentava os melhores colégios, usava as roupas mais caras, chegando a ter dezenas de ternos de linho branco irlandês. Com esse evento, o casarão tomou um banho de juventude: festinhas, reuniões, bailes. Dançavam, recitavam, ouviam discos novos e algumas vezes logravam aprender o caminho da biblioteca.
Numa dessas noites festivas, apareceu na casa o Avelino Xavier, com o mesmo estilo de linguagem, a mesma adjetivação postiça, abundante. Primeiro, o intróito; depois, a solicitação brusca, sem solenidade alguma:
– Preciso de outro aval, professor.
Antes que Xavier prosseguisse com as justificativas, Prof. Arnaldo asseverou-lhe:
– Meu garoto pretende visitar a Europa muito breve, talvez ainda neste ano. É para mim uma grande satisfação proporcionar-lhe esta invejável oportunidade. Por isso, meu caro Xavier, alimento receio de abalos, de comprometimento em meu orçamento.
– Não o colocarei mais em situação embaraçada, professor. Da vez anterior, foi puro esquecimento. Agora, pagarei o título no vencimento, ou antes, se possível.
- Não, Xavier. Você é pai de família, como eu. Sabe dos problemas, dos riscos, das vicissitudes inerentes a essa condição. Que vexame passaria eu amanhã, que apertos, se a meu menino viesse a faltar o conforto que sempre lhe proporcionei. Não, não, Xavier. Pense bem e reflita.
E assim todas as demais investidas dos pidões se frustraram. Ninguém mais procurou o professor para solicitar aval. As visitas escassearam, chegando quase a se extinguirem de todo. Não mais os convites para as conferências, ou nome na crônica social.
* * *
Passaram-se os anos. Rafael já falava assim aos amigos:
– Quando papai me adotou, há dez anos atrás...
Logo o moço estava com vinte e dois anos de idade. Conhecera, então, uma garota e queria desposá-la. Chamava-se Castorina, filha de seu ex-professor de violino, um alemão chamado Hans, que também vendia mel. Prof. Arnaldo opôs-se ao casamento imediato, pois que o rapaz fazia poucos meses concluíra o curso na Escola de Química Industrial e aguardava a nomeação para um cargo no Estado, promessa de um velho amigo da família. Promessas, principalmente de empregos, quase sempre dão em nada.
– Não custa nada esperar um pouco, Rafael – aconselhou o professor.
– Você é jovem demais Castorina também. Pegue a colocação, economize alguns meses e depois sim. É preciso enfrentar de cabeça erguida as despesas, as responsabilidades, os compromissos. Fique sabendo que o mês somente possui trinta dias e as contas vencem. Por mais que eu queira ajudá-lo, meu filho, você deverá ser um homem independente.
– Mas o emprego já está garantido, papai. Disseram-me que os papéis já se acham sobre a mesa do governador.
Em diálogos dessa natureza mantiveram-se por várias semanas. Até que Rafael não suportou mais a espera e marcou com a noiva a data do casamento. Prof. Arnaldo nada pôde fazer. Restou-lhe apenas disfarçar o descontentamento, mostrando-se alegre, feliz.
Numa tarde, após o almoço no casarão, em regozijo pelo acontecimento, Prof. Arnaldo abandonou a conversa na varanda e caminhou até a biblioteca, alegando aos presentes que precisava consultar algumas anotações. É que a conversa se tornara enfadonha, improdutiva, girando em torno de preços de roupas e de outros artigos de comércio. Chegando à biblioteca, foi até a janela. Olhou o pomar e um pedaço de rua que aparecia entre o arvoredo. Uma rua estreita, calçada de paralelepípedos. Nesse instante, ouviu passos atrás de si, no corredor. Voltou-se e viu que o professor Hans acabava de entrar.
– Prof. Arnaldo, desculpe-me abordá-lo assim inesperadamente. Vim aqui porque não quero que ouçam o que vou dizer-lhe, ou melhor, pedir-lhe.
– Fique à vontade, professor. Não tenha constrangimento. De que se trata?
– É custoso pedir, professor. O senhor compreende, nesse campo, confesso minha nulidade absoluta. As circunstâncias da vida, porém, obrigam-nos a mudar o próprio temperamento.
– O senhor tem toda a liberdade, Prof. Hans. É um amigo que muito estimo, o ex-professor de violino do meu pupilo. Por isso, acredito que não pode haver entre nós nenhum embaraço.
– Sou assim um poço de esquisitices, de manias, de timidez.
– Mas quem de nós não tem um punhado disso tudo, Prof. Hans?
– Então, o senhor vai me perdoar, Prof. Arnaldo. Trouxe aqui...O senhor sabe... Ninguém melhor que o senhor para saber que muitas vezes um pai de família, embora não disponha de muitos recursos financeiros e econômicos, quer pelo menos no dia do casamento de sua filha... pelo menos nesse dia...
E retirou do bolso interno do paletó um papel retangular, branco.
– Trouxe aqui – continuou – um título do banco, uma nota promissória para desconto. Vou precisar de seu aval, Prof. Arnaldo.
– Ora, ora, ora, então era somente isso? Dê-me cá o título, professor.
Prof. Hans passou-lhe a letra. Tremia-lhe um pouco a mão. Prof. Arnaldo examinou a nota, verificou a quantia no verso. Era suficiente para patrocinar o festão de casamento. Em seguida, lançou o aval nas costas do papel. Voltou à janela, lobrigou novamente o arvoredo, a rua, sem dizer palavra alguma.
Prof. Hans agradecia: – Obrigado, obrigado. Não fosse o senhor não sei como faria.
Com a chegada da primavera, o flamboyant da calçada derramava flores vermelhas pelo chão. Às vezes, o vento levava-as até o piso das varandas.
Por sobre o longo muro, os ofendículos tremeluziam ao sol.
===============================
Sobre o Autor:
José Couto Pontes nasceu em Três Lagoas (MS), em 1933. É juiz de direito aposentado. Foi advogado e professor. É um dos fundadores da Academia de Letras e História de Campo Grande (1971), antecessora da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. Foi seu presidente de 1972 a 1982. É autor de DESTE LADO DO HORIZONTE (1972, contos), JORGE LUÍS BORGES, A ERUDIÇÃO E OS ESPELHOS (1976, ensaio) e HISTÓRIA DA LITERATURA SUL-MATO-GROSSENSE (1981). É contista premiado nacionalmente.
================================
Fonte:
Revista da Academia Sul-Matogrossense de Letras. n.3. março 2004. Campo Grande
Prof. Arnaldo morava só. Recebia muitas visitas, principalmente ex-colegas de labuta forense. Há muitos anos, deixara a advocacia, justificando que não suportava a morosidade com que os processos caminhavam e os desmandos de certos magistrados. Nos fundos, isolado do casarão, um quarto com banheiro anexo abrigava uma senhora morena, de longos cabelos negros, que arrumava a casa, cozinhava e cuidava das roupas do professor. Chamava-se Cristina. E tinha um filho pequeno: Rafael.
Numa noite de dezembro, quente, de tal modo que nenhuma folha do arvoredo se movia, o professor ficou na varanda, sentado numa cadeira de alumínio e forro de morim branco. Lá pelas tantas, quando já havia saído do primeiro cochilo, apareceu-lhe a figura de Altamiro Gouveia, proprietário de uma livraria.
– Trouxe-lhe hoje, Prof. Arnaldo, a última novidade a respeito da Segunda Guerra Mundial. O senhor vai gostar muito: é sobre a invasão da Normandia.
– Minha biblioteca está um tanto belicosa, Altamiro. Esta minha recente queda pelos livros de guerra fez-me esquecer até os clássicos. Estava lendo OS MAIAS, de Eça, e interrompi a leitura dele por causa daquela bigrafia de Rommel.
Prof. Arnaldo alisou a capa do livro, folheou-o ligeiramente, deteve os olhos num trecho do meio e acrescentou: – Vou devorá-lo, quando terminar OS MAIAS.
Conversaram ainda a respeito de vários outros autores nacionais e estrangeiros. Falaram acerca de escritores novos, tecendo-lhes críticas às produções, considerando que o excesso de ensaios literários denunciavam decadência das letras. Quando o bate-papo já esmorecia, Gouveia aproveitou uma pausa e, com o porte de quem se prepara para começar um discurso importante, acentuou:
– Prof. Arnaldo, o senhor vai desculpar-me, mas quero pedir-lhe uma gentileza. O senhor compreende... eu vou... vou... vou...
– Pode falar, Gouveia – atalhou.
– É que vou pedir um empréstimo no banco e necessito de seu aval. O senhor compreende, a gente não quer incomodar, mas se vê às vezes na contingência de...
– Não se acanhe, Gouveia. Isso é natural. Posso prestar-lhe o aval. O título está com você aí?
Prof. Arnaldo sabia que não podia negar-lhe a garantia. Embora fosse visceralmente contrário ao instituto do aval, não lhe restava outra alternativa senão concedê-lo ao velho amigo. E como Gouveia lhe exibisse a nota promissória, pediu que o acompanhasse até o escritório. Nesse cômodo do casarão, ficavam as estantes lotadas de livros, antigos volumes encadernados e brochuras novas, edições recentes. Uma escrivaninha de mogno estilo colonial espanhol. Quadros de família nas paredes. Uma reprodução a óleo de uma tela de Wlaminck, Paisagem Hibernal.
Prof. Arnaldo sentou-se, tomou da caneta e, examinando o título cambiário com cuidado, apôs o aval no verso.
– Estou comovido, professor. Não sei como agradecer-lhe. O senhor tirou-me de uma situação delicada. São coisas que a gente não esquece.
– Esqueça, Gouveia.
E voltaram a varanda.
Prof. Arnaldo prosperara economicamente depois que deixou a advocacia. Possuía um rendoso colégio, a bela casa residencial, vários terreno no centro da cidade, algum gado e várias casas de aluguel. E a riqueza não conseguiu afastar de si o vasto círculo de amizades. Constantemente era convidado para pronunciar palestras e conferências e para saudar personalidades importantes que visitavam a cidade.
Numa noite chuvosa, recolheu-se à biblioteca com muita vontade de ler o dicionário ilustrado. Neste, não encontrou a palavra ofendículo, mas, no etimológico-prosódico, sim. Nos tempos de Faculdade de Direito, aprendera nas aulas de Direito Penal que esse termo significava obstáculo, barreira, estorvo. Os cacos de vidro, que implantara nos muros em volta de sua propriedade, eram ofendículo.
– Como sua casa era singular! – pensou. – Bem poderia chamar-se A Casa dos Ofendículos. Os cacos de vidros eram grandes, pontiagudos, de várias cores, predominando o verde-garrafa. Não havia um só trecho de muro, em todo o perímetro, em que faltasse o estorvo.
– Ofendículo, uma palavra rara – pensou. – Pouco conhecida, mas vigorosa, expressiva, viril. Como o casarão era um recanto seu, intocável, onde se recolhera a si e aos seus caprichos, problemas, emoções, sentimentos, levando a vida que traçara, onde se encastelara contra o mundo onde a própria solidão tinha seus encantos, Prof. Arnaldo não relutou em admitir que a propriedade deveria chamar-se mesmo A Casa dos Ofendículos.
Fora, a chuva continuava, escorrendo pelas calhas, inundando as varandas. A leitura dos dicionários prolongou-se até as portas da meia noite, quando então o professor deixou a biblioteca e dirigiu-se ao quarto.
No dia seguinte, voltaria às preocupações lexicológicas. Mas tal não ocorreu. Logo de manhã, lembrou-se de cuidar das roseiras. Enquanto as adubava com uma pá pequena, agachado, percebeu que alguém abria o portão da frente e ingressava na área do jardim. Era Avelino Xavier, um conhecido dos tempos de serviço militar. Quase não vinha ao casarão. Quando o fazia, compelia-o alguma necessidade, de dinheiro ou de conselho. Quase sempre de dinheiro.
Logo que chegou às roseiras, começo a falar:
– Velho amigo, grande amigo, Prof. Arnaldo! Há quanto tempo distante desta humana e incomparável figura! Como está forte, disposto, conservado...
Com esse linguajar lisonjeiro, Xavier objetivava conquistar a atenção do professor. Este, no entanto, contestava os elogios. Não tanto por modéstia, mas porque achava falsa, fingida, estéril, aquela maneira de louvar. Não tardou que a verve do recém-chegado se arrefecesse, conduzindo-o logo à finalidade da visita. Mudando para um tom seco e áspero
de voz, disse:
– Professor, estou necessitando de seu aval.
Prof. Arnaldo permaneceu calado. Xavier considerou:
– Outra vez, meu caro professor. Sei que estou abusando, mas não tenho outra pessoa a quem pedir.
– Você sabia que estou muito carregado nos bancos, Xavier? Ontem mesmo um dos gerentes comentou esse fato. Na verdade, dei um aval na semana passada. Não acho elegante revelar o nome da pessoa.
– É que o senhor é muito conceituado nos bancos, professor. É controlado, organizado, prudente, honesto...Os bancos sabem disso. Gostam disso.
– Xavier, volta aqui amanhã. Preciso fazer um levantamento das minhas contas e fichas bancárias. Estou mesmo muito carregado.
– Por favor, professor – insistiu. – Não deixe para amanhã. Até que contabilizem o título, até que eu possa sacar o dinheiro, já passou a formatura de Lenita. Preciso enfrentar os gastos. Depois, será o noivado com o capitão.
– Mas amanhã não é daqui a um século, Xavier.
– Eu sei, professor. Eu compreendo. Perdoa-me a insistência. Rogo-lhe encarecidamente que seja hoje. Também será o ultimo. Juro-lhe.
Prof. Arnaldo rendeu-se.
– Está aí com você a letra?
– Sim, professor. E já está preenchida.
No caminho do jardim à biblioteca, Avelino Xavier fermentava e robustecia as razões de seu pedido.
– O senhor é solteiro, mora só, é muito rico. O senhor jamais poderá imaginar as privações, os apertos, os vexames por que passa um pai de família, destituído de recursos financeiros. Quando não uma doença ou o colégio dos filhos, é o noivado, a formatura, é tanta coisa.
Depois que Xavier se retirou com a nota promissória avalizada, Prof. Arnaldo ficou refletindo, com os olhos pregados no livros das estantes altas:
– Que desaforo! E nesta hora falta-me adrenalina para estourar, recusar, pedir ao homem que se retire, que não apareça mais. Pedir o aval não é nada. Mas aquela consideração atrevida em torno da minha condição de rico, solteiro e solitário? Que eu desconheço as vicissitudes de um pai de família... Ora, bolas! Por que o homem se casou, sabendo que não agüentaria o encargo? Por que não permaneceu solteiro como eu?
Vários dias passaram-se depois da visita de Xavier, todos eles carregados de pedidos análogos. De há muito, concedia favores dessa natureza, mas não com a freqüência e a intensidade atuais.
Prof. Arnaldo chegou a concluir que muitos elogios e convites para conferências estavam vinculados a esses pedidos de aval. Na verdade, logo após a palestra acerca das influências inglesas em Machado de Assis, no Colégio Estadual, recebeu a visita do presidente do Centro Literário Estudantil, que lhe subtraiu mais um aval. E assim se sucederam outros mais, prestados a Prudêncio Peixoto Nobre, jornalista da crônica social, a Vitor Hugo Seleto, criador de gado, Pedro Saulo Botelho, reformado dos quadros da Polícia Civil.
E todos haviam penetrado o casarão, denunciando a frágil, a precária oposição dos cacos de vidro, implantados nos muros, reluzentes, multicores, pontudos. Verdes, azuis, brancos, amarelos. Mais forte era a dialética dos pidões: -
“O Senhor é solteiro, mora só, é muito rico. Jamais poderá imaginar as privações, os apertos, os vexames por que passa um pai de família destituído de recursos financeiros...”
Prof. Arnaldo pensou em vários remédios. Viajar pelo Norte, onde tinha um primo, constituiria uma solução temporária, passageira, pois teria que regressar breve ao casarão. Dizer “não” a todos, trancar a cara, bancar o durão, poderia comprometer-lhe o conceito, a estima geral. Mas era preciso dar uma solução ao problema, pôr um paradeiro nos abusos. Muitos favorecidos haviam adotado o mal costume de não liquidar os títulos no vencimento, obrigando o avalista ao desembolso. Entre esses, Avelino Xavier. Prof. Arnaldo pensou em simular um contrato social, em que figuraria uma disposição vedando aos sócios a prestação do aval. Mas não conseguiu o cúmplice para a simulação. Somente se recorresse aos preguiçosos angorás de sua sala de visitas.
Finalmente, depois de várias noites de vigília, brotou-lhe na mente a solução. Uma fonte de água límpida, fresca, a jorrar pura, farta.
Adotaria um menino.
Cuidou dos detalhes. Consultou compêndios de direito, de há muito desprezados nas estantes da biblioteca. Mandou arrumar o quarto do futuro adotado num dos cômodos da frente. Ficou para o fim o principal:
– Quem seria o eleito?
Depois de alguns cotejos e confrontos, não tardou que a escolha recaísse no filho de Cristina, a doméstica. Conhecia o menino, os costumes da casa e parecia herdeiro da boa índole da mãe. Esta recebeu a notícia com lágrimas nos olhos. Sempre almejara um bom futuro para o filho. Há vários anos, pelo Natal – eis como são as coisas – até já havia tido a idéia.
Rafael tinha dois anos, quando da adoção. Era moreno claro, forte, de olhos grandes, muito inteligente, serviçal, educado. Crescera daí por diante cercado de toda opulência. Prof. Arnaldo – a quem o garoto chamava de pai – dava-lhe de tudo. Freqüentava os melhores colégios, usava as roupas mais caras, chegando a ter dezenas de ternos de linho branco irlandês. Com esse evento, o casarão tomou um banho de juventude: festinhas, reuniões, bailes. Dançavam, recitavam, ouviam discos novos e algumas vezes logravam aprender o caminho da biblioteca.
Numa dessas noites festivas, apareceu na casa o Avelino Xavier, com o mesmo estilo de linguagem, a mesma adjetivação postiça, abundante. Primeiro, o intróito; depois, a solicitação brusca, sem solenidade alguma:
– Preciso de outro aval, professor.
Antes que Xavier prosseguisse com as justificativas, Prof. Arnaldo asseverou-lhe:
– Meu garoto pretende visitar a Europa muito breve, talvez ainda neste ano. É para mim uma grande satisfação proporcionar-lhe esta invejável oportunidade. Por isso, meu caro Xavier, alimento receio de abalos, de comprometimento em meu orçamento.
– Não o colocarei mais em situação embaraçada, professor. Da vez anterior, foi puro esquecimento. Agora, pagarei o título no vencimento, ou antes, se possível.
- Não, Xavier. Você é pai de família, como eu. Sabe dos problemas, dos riscos, das vicissitudes inerentes a essa condição. Que vexame passaria eu amanhã, que apertos, se a meu menino viesse a faltar o conforto que sempre lhe proporcionei. Não, não, Xavier. Pense bem e reflita.
E assim todas as demais investidas dos pidões se frustraram. Ninguém mais procurou o professor para solicitar aval. As visitas escassearam, chegando quase a se extinguirem de todo. Não mais os convites para as conferências, ou nome na crônica social.
* * *
Passaram-se os anos. Rafael já falava assim aos amigos:
– Quando papai me adotou, há dez anos atrás...
Logo o moço estava com vinte e dois anos de idade. Conhecera, então, uma garota e queria desposá-la. Chamava-se Castorina, filha de seu ex-professor de violino, um alemão chamado Hans, que também vendia mel. Prof. Arnaldo opôs-se ao casamento imediato, pois que o rapaz fazia poucos meses concluíra o curso na Escola de Química Industrial e aguardava a nomeação para um cargo no Estado, promessa de um velho amigo da família. Promessas, principalmente de empregos, quase sempre dão em nada.
– Não custa nada esperar um pouco, Rafael – aconselhou o professor.
– Você é jovem demais Castorina também. Pegue a colocação, economize alguns meses e depois sim. É preciso enfrentar de cabeça erguida as despesas, as responsabilidades, os compromissos. Fique sabendo que o mês somente possui trinta dias e as contas vencem. Por mais que eu queira ajudá-lo, meu filho, você deverá ser um homem independente.
– Mas o emprego já está garantido, papai. Disseram-me que os papéis já se acham sobre a mesa do governador.
Em diálogos dessa natureza mantiveram-se por várias semanas. Até que Rafael não suportou mais a espera e marcou com a noiva a data do casamento. Prof. Arnaldo nada pôde fazer. Restou-lhe apenas disfarçar o descontentamento, mostrando-se alegre, feliz.
Numa tarde, após o almoço no casarão, em regozijo pelo acontecimento, Prof. Arnaldo abandonou a conversa na varanda e caminhou até a biblioteca, alegando aos presentes que precisava consultar algumas anotações. É que a conversa se tornara enfadonha, improdutiva, girando em torno de preços de roupas e de outros artigos de comércio. Chegando à biblioteca, foi até a janela. Olhou o pomar e um pedaço de rua que aparecia entre o arvoredo. Uma rua estreita, calçada de paralelepípedos. Nesse instante, ouviu passos atrás de si, no corredor. Voltou-se e viu que o professor Hans acabava de entrar.
– Prof. Arnaldo, desculpe-me abordá-lo assim inesperadamente. Vim aqui porque não quero que ouçam o que vou dizer-lhe, ou melhor, pedir-lhe.
– Fique à vontade, professor. Não tenha constrangimento. De que se trata?
– É custoso pedir, professor. O senhor compreende, nesse campo, confesso minha nulidade absoluta. As circunstâncias da vida, porém, obrigam-nos a mudar o próprio temperamento.
– O senhor tem toda a liberdade, Prof. Hans. É um amigo que muito estimo, o ex-professor de violino do meu pupilo. Por isso, acredito que não pode haver entre nós nenhum embaraço.
– Sou assim um poço de esquisitices, de manias, de timidez.
– Mas quem de nós não tem um punhado disso tudo, Prof. Hans?
– Então, o senhor vai me perdoar, Prof. Arnaldo. Trouxe aqui...O senhor sabe... Ninguém melhor que o senhor para saber que muitas vezes um pai de família, embora não disponha de muitos recursos financeiros e econômicos, quer pelo menos no dia do casamento de sua filha... pelo menos nesse dia...
E retirou do bolso interno do paletó um papel retangular, branco.
– Trouxe aqui – continuou – um título do banco, uma nota promissória para desconto. Vou precisar de seu aval, Prof. Arnaldo.
– Ora, ora, ora, então era somente isso? Dê-me cá o título, professor.
Prof. Hans passou-lhe a letra. Tremia-lhe um pouco a mão. Prof. Arnaldo examinou a nota, verificou a quantia no verso. Era suficiente para patrocinar o festão de casamento. Em seguida, lançou o aval nas costas do papel. Voltou à janela, lobrigou novamente o arvoredo, a rua, sem dizer palavra alguma.
Prof. Hans agradecia: – Obrigado, obrigado. Não fosse o senhor não sei como faria.
Com a chegada da primavera, o flamboyant da calçada derramava flores vermelhas pelo chão. Às vezes, o vento levava-as até o piso das varandas.
Por sobre o longo muro, os ofendículos tremeluziam ao sol.
===============================
Sobre o Autor:
José Couto Pontes nasceu em Três Lagoas (MS), em 1933. É juiz de direito aposentado. Foi advogado e professor. É um dos fundadores da Academia de Letras e História de Campo Grande (1971), antecessora da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. Foi seu presidente de 1972 a 1982. É autor de DESTE LADO DO HORIZONTE (1972, contos), JORGE LUÍS BORGES, A ERUDIÇÃO E OS ESPELHOS (1976, ensaio) e HISTÓRIA DA LITERATURA SUL-MATO-GROSSENSE (1981). É contista premiado nacionalmente.
================================
Fonte:
Revista da Academia Sul-Matogrossense de Letras. n.3. março 2004. Campo Grande
Nenhum comentário:
Postar um comentário