sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Machado de Assis (O Lince)

Em uma crônica publicada em 11 de novembro de 1897, ele confessava: "Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto". Se você quiser encarar esses olhos, é imperativo que entenda essa confissão.

A essência da obra de Joaquim Maria Machado de Assis não se encontra na sua macro-estrutura, mas na micro-estrutura.

Os detalhes, como um gesto, um olhar, uma palavra aparentemente dita à toa, esparzidos ao longo de suas narrativas têm de ser devidamente "pescados" e colecionados, porque eles darão a chave para o entendimento de seus textos. Neles há um permanente jogo entre essência e aparência. A "história" de superfície é só um pretexto para discussões e denúncias de maior calibre. Existem o filosófico e a análise psicológica profunda que anteciparam conceitos que mais tarde Sigmund Freud teorizaria.

Machado não fez apenas a anatomia da sociedade patriarcal escravocrata de seu tempo, mas a do psiquismo humano com seus infinitos prismas.

Foi um esgrimista da palavra. Empunhando um estilo elegante e requintado, ele desfere golpes fulminantes e precisos contra a hipocrisia, a mediocridade, a vaidade, o egoísmo e a superficialidade que regem as relações humanas. Uma das características mais obsessivas de sua obra é o desvendamento da precariedade de nossa condição. As ridicularias cotidianas, alimentadas pela arrogância e pela pretensão, contrastam com a crueza da passagem do tempo e a iminência da morte. Exemplo disso é Marcela, a linda cortesã que manipulava e extorquia homens, como fez com o ainda adolescente Brás Cubas, em suas Memórias Póstumas. Ela se transformou numa mulher de meia idade com o rosto desfigurado pelas seqüelas da varíola, e chegou à velhice morrendo na indigência num leito miserável de hospital. Não restara nem uma centelha do fausto da época de juventude; nem uma pérola das muitas jóias que teve lhe valeu contra o avanço inexorável do tempo.

Mas a "dedicatória/bofetada" que abre as mesmas Memórias Póstumas de Brás Cubas, tecida de humor cáustico, formatada de modo a imitar o tom leve, casual e familiar que costumam ter as dedicatórias, apresenta um conteúdo ainda mais devastador:


Ao verme que primeiro roeu as frias
carnes do meu cadáver dedico como
saudosa lembrança estas
memórias póstumas.

O narrador escancara nossa condição de seres mortais e putrescíveis. A morte nivela; portanto todas as presunções de ordem material que constroem as diferenças de classe e de hierarquia são circunstanciais, vulgares, transitórias. Especialmente aquelas calcadas nas aparências e no poder econômico. Vivemos num mundo em que somos desencorajados a cultivar um repertório de virtudes duradouro e inabalável que arquitete um caráter, não irretocável, dado o limite do humano, mas positivo, no balanço final. Se houvesse tal encorajamento, o espaço entre nascer e morrer estaria justificado, e o viver teria alguma dignidade.

Mas Machado de Assis não concede a suas criaturas o poder de gerir, conduzir, transformar a própria vida ou a alheia. A existência naufraga numa lama gelada de equívocos, adiamentos, preguiças, vaidades, covardias, egoísmo, futilidades e acomodações.

Os personagens cometem sempre o terrível equívoco de tornar o essencial secundário e vice-versa. Isso promove a anulação da existência.

Suas obras não apresentam heróis. A esmagadora maioria, pode-se dizer que quase a totalidade de seus personagens, não apresenta caracteres, ainda que incidentais, exemplarmente positivos. Os personagens masculinos são, em geral, medíocres, de inteligência estreita, valores rasos, e a aceitação social de que desfrutam decorre do status que têm. É o caso de Brás Cubas (Memórias Póstumas de Brás Cubas), de Rubião (Quincas Borba) e de Bentinho (Dom Casmurro), afora muitos outros presentes em seus demais romances e contos. As personagens femininas não são melhores: frívolas e vaidosas, com interesses superficiais, detêm o domínio do jogo amoroso e da manipulação do outro. Há poucas imagens de sedução mais contundentes do que a passagem do conto “A Cartomante", em que Camilo torna-se amante de Rita, a esposa de Vilela, seu melhor amigo.

(...) Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado.

Pequenos detalhes ou incidentes podem sintetizar psicologicamente uma personagem. Veja-se no romance Esaú e Jacó o caso de Natividade, esposa do Santos, com quem casara aos 20 anos. Belíssima, afeita aos encontros sociais, ela passou dez anos casada sem filhos e sem evitá-los. Mas aos 30 anos foi surpreendida por uma gravidez. Ela reagiu assim:

(...) Lá se iam bailes e festas, lá ia a liberdade e a folga. Natividade andava já na alta roda do tempo; acabou de entrar por ela, com tal arte que parecia haver ali nascido. Carteava-se com grandes damas, era familiar de muitas, tuteava algumas. Nem tinha só esta casa de Botafogo, mas também outra em Petrópolis; nem só carro, mas também camarote no Teatro Lírico, não contando os bailes do Cassino Fluminense, os das amigas e os seus; todo o repertório, em suma, da vida elegante. Era nomeada nas gazetas. Pertencia àquela dúzia de nomes planetários que figuram no meio da plebe de estrelas. O marido era capitalista e diretor de um banco.

No meio disso, a que vinha agora uma criança deformá-Ia por meses, obrigá-Ia a recolher-se, pedir-lhe as noites, adoecer dos dentes e o resto? Tal foi a primeira sensação da mãe, e o primeiro ímpeto foi esmagar o gérmen. Criou raiva ao marido. A segunda sensação foi melhor. A maternidade, chegando ao meio-dia, era como uma aurora nova e fresca. Natividade viu a figura do filho ou filha brincando na relva da chácara ou no regaço da aia, com três anos de idade, e este quadro daria aos trinta e quatro anos que teria então um aspecto de vinte e poucos...
Foi o que a reconciliou com o marido.

Nenhuma mulher é obrigada a reagir bem à notícia de uma gravidez, ainda que seja responsável por ela. Mas note-lhe os motivos: perda de liberdade, deformação do corpo, enfim, frivolidades que a levaram a embirrar com o esposo. Repare, sobretudo, no que promoveu sua reconciliação com ele: ter filhos ao "meio-dia" da vida, aos 30 anos, a rejuvenesceria! Em nenhum momento ela considera o fato em si: ter filhos, e a gravidade e conseqüências do acontecimento, como a responsabilidade de tê-los, por exemplo; é mais um evento social, só que de maior duração. Perceba também que ela imagina os inconvenientes de ter a criança (noites mal dormidas, nascimento dos dentes), mas quando percebe que o filho poderia rejuvenescê-la, procura enquadrar essa possibilidade numa cena aprazível em que o personagem "bebê" está no colo da ama, não no dela, a mãe. Ela delega-o à criada, transferindo de antemão à serviçal os cuidados que ele acarretaria. Pois ela os teve, foram gêmeos e brigaram desde o seu ventre até depois de sua morte.

Quanto ao marido, o Santos, já tinha sido pobre. Quando se casaram não tinham nada, mas amealharam fortuna e desfrutavam de excelente condição social. Veja a ironia fina com que demonstra a mesquinhez do personagem e o gosto que ele tem pelo poder que ser rico acarreta, sobretudo o de se colocar acima dos familiares que não tiveram a mesma sorte que eles.

Dos dous parentes pobres de Natividade morreu o pai em 1866, restava-lhe uma irmã. Santos tinha alguns em Maricá, a quem nunca mandou dinheiro, fosse mesquinhez, fosse habilidade. Mesquinhez não creio, ele gastava largo e dava muitas esmolas. Habilidade seria; tirava-lhes o gosto de vir cá pedir-lhe mais.

Os exemplos são numerosos e dariam um livro (ou uma coleção deles), mas existem muitos outros aspectos relevantes em sua produção. O anticlímax é um deles. O anticlímax consiste na técnica de se criar um conflito com possibilidades de resolução aparentemente previsíveis e frustrar essa previsibilidade, ou esfriando o conflito, ou dando a ele uma solução imprevista, surpreendente. Importa lembrar que Machado de Assis herdou um público leitor com expectativas extraídas da literatura romântica com seus sentimentalismos e idealidades. A estrutura narrativa dos romances e novelas do período que antecedeu o autor era, até certo ponto, previsível, especialmente a finalização dos conflitos: ou se tinha o clássico "final feliz", ou o trágico, que freqüentemente envolvia a loucura e/ou a morte. A opção por um desses dois extremos era determinada, em geral, pela solução do conflito amoroso que era nuclear no Romantismo: se houvesse conciliação amorosa, o final era positivo; caso contrário, negativo.

Machado pertence cronologicamente ao Realismo, movimento que se opõe ao Romantismo. Assim, o anticlímax era um dos modos de neutralizar o olhar viciado no binômio "felicidade ou desgraça" dos leitores que herdou e de estabelecer os princípios da nova escola, especialmente no que se refere ao combate ao idealismo romântico. É de fundamental importância ressaltar que a tarefa de contextualizar esteticamente o autor é delicada. Além de sua inclusão cronológica no Realismo, não se pode ignorar que ele antecipou vários aspectos do Modernismo. E há que se considerar, sobretudo, seu estilo personalíssimo. Tudo isso o torna único, tão único que ele não teve discípulos diretos. Machado de Assis fez mais, ele inaugurou perspectivas sobre o seu tempo e lugar, bem como sobre o que é universal. A partir dele, temos muitos autores que lhe emprestaram o olhar e o adaptaram incorporando-o às suas obras, muitas vezes com talento e competência próprios, mas nenhum com sua agudeza, sua finura.

Quando se lê Machado de Assis, é possível imaginá-lo desde o alto de seu ver, assistindo ao terrível espetáculo do mundo; rindo-se dos esquetes ilusórios de fugaz alegria que permitem ao ser humano tolerar o estar em cena.

Foca, implacável, com seu poderoso telescópio a degeneração moral daqueles que são a gente que manda, ou que é invejada; a subserviência ora ressentida, ora conformada que apequena ainda mais aqueles que obedecem. Machado fulmina o maniqueísmo, ou seja, aquela visão de mundo que divide os seres humanos entre bons e maus, sem categorias intermediárias. Prova disso é o escravo Prudêncio, que servia a Brás Cubas desde a infância de ambos. O pequeno era vítima constante da tirania de seu senhor; mas quando cresceu e ganhou a alforria, teve ele mesmo seu escravo, e o tratava com os mesmos requintes de crueldade com que fora tratado. Não para vingar-se dos maus-tratos passados, mas porque a truculência não é um triste privilégio de classe ou de etnia: ela é humana.

A perspectiva literária desse escritor, quer narre em primeira pessoa (além de narrador, personagem) ou em terceira (apenas narrador), é suprema; e em qualquer das duas hipóteses, pode-se sentir sua enérgica presença, pois ele conversa com o leitor, instiga-o, ironiza-o, sacode-o, mas jamais o adula.

Mas não pense que Machado de Assis, adepto do niilismo, filosofia da negação total de tudo, do pessimismo absoluto cósmico, era só fel. O humor é seu principal recurso crítico. No conto "A Sereníssima República", por exemplo, ele fabula uma república de aranhas, e a partir daí faz uma crítica sarcástica às fraudes eleitorais e políticas de um modo geral. Aquela república resolveu fazer um sistema de eleições. Para tanto, as aranhas teceram um saco para colocar as bolas com os nomes dos candidatos a serem sorteados.

A eleição fez-se a princípio com muita regularidade; mas, logo depois, um dos legisladores declarou que ela fora viciada, por terem entrado no saco duas bolas com o nome do mesmo candidato. A assembléta verificou a exatidão da denúncia, e decretou que o saco, até ali de três polegadas de largura, tivesse agora duas; limitando-se a capacidade do saco, restringia-se o espaço à fraude, era o mesmo que suprimi-la. Aconteceu, porém, que na eleição seguinte, um candidato deixou de ser inscrito na competente bola, não se sabe se por descuido ou intenção do oficial público. Este declarou que não se lembrava de ter visto o ilustre candidato, mas acrescentou nobremente que não era impossível que ele lhe tivesse dado o nome; neste caso não houve exclusão, mas distração. A assembléia, diante de um fenômeno psicológico inelutável, como é a distração, não pôde castigar o oficial; mas, considerando que a estreiteza do saco podia dar lugar a exclusões odiosas, revogou a lei anterior e restaurou as três polegadas. (ASSIS, Machado de. A Desejada das Gentes e Outros Contos. São Paulo, Moderna, 1997).

A habilidade narrativa do autor é tamanha que gerou obras até hoje polêmicas, como é o caso de Dom Casmurro, a principal delas. Até hoje acadêmicos, estudantes e leitores comuns batem-se pela questão: Capitu traiu ou não traiu Bentinho, como ele afirma no romance que o tem como foco narrativo? Consta que houve até a simulação de um julgamento da personagem promovido pelos estudantes de Direito da Faculdade de São Francisco, ligada à Universidade de São Paulo. Ela foi absolvida por falta de provas. Os dois grupos, o dos favoráveis à idéia de que houve o adultério e o de seus opositores, discutem apaixonadamente, e também inutilmente, porque a obra é um duplo perfeito. Ambas as possibilidades são defensáveis, mas nenhuma delas cabais. De fato, essa nem é a principal questão do livro, e seria preciso muitas resmas de papel para se entrar nesse assunto.

Machado de Assis é uma vastidão, um cosmo, um infinito jogo de espelhos. Carlos Drummond de Andrade, em seu poema "A um Bruxo, com Amor", belíssima homenagem ao autor, afirma: "Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro". Quem não leu Machado de Assis, não leu sequer uma linha.

Fonte:
Revista Discutindo Literatura. Edição 4. SP: Escala Educacional. p.30

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