sábado, 25 de outubro de 2008

Aurora Bernardini (A dama que seduziu Dumas)

Como Marie Capelle, que lia para sobreviver na prisão, se tornou heroína de um folhetim inédito em livro até pouco tempo atrás

Em 1869, aos 67 anos de idade, Alexandre Dumas, o autor dos romances mais lidos na França da época, O conde de Monte Cristo e Os três mosqueteiros, e de um número considerável de outros livros (inclusive um de culinária!) e de 60 peças de teatro (“era uma verdadeira força da natureza!” – dizem seus biógrafos), resolve mudar de rumo. Sempre atento aos interesses de seu público, pressentiu que os leitores queriam agora algo de mais ágil que lhes desse a sensação de continuidade; nada melhor, para tanto, do que recorrer ao gênero folhetinesco.

Passa então a escrever folhetins, cada um dos quais encerra não mais do que um capítulo de sua nova narrativa que, para manter a atenção do leitor numa longa sucessão, deve ter os ingredientes necessários: suspense, ação, reação, golpes de cena, reviravoltas que redundem, no desenlace, em algo de extremamente verossímil, quando não completamente verdadeiro.

É este o caso de Senhora Lafarge e de Le chevalier de Sainte-Hermine. O primeiro acaba de ser publicado pela Martins Fontes, e o segundo (de mais de mil páginas!) está em fase de tradução. Durante quase um século e meio as duas narrativas ficaram inéditas em livro. Só em 2005 Claude Schopp, o “meticuloso guardião do corpus dumasiano” e autor de uma tese e vários livros sobre o grande escritor, reuniu os escritos que vieram a constituir o romance Senhora Lafarge e, pesquisando os periódicos da época nos Arquivos do Sena, trouxe inesperadamente à luz cento e tantos capítulos de Le chevalier de Sainte-Hermine – 70 mil exemplares impressos na França em um único mês – que prefaciou e teve de terminar, preenchendo as lacunas deixadas por Dumas que não conseguiu fazê-lo antes de sua morte, em 1870.

Senhora Lafarge narra a história de Marie Cappelle, jovem de origem aristocrática sem muita fortuna que, pelos descaminhos da vida, acaba casando-se, via agência matrimonial, com o brutamontes Lafarge, que, além de repulsivo, ainda por cima – descobre-se demasiado tarde – é desprovido de meios. As cenas da chegada da mulher à casa da sogra e o seu assédio noite afora são das mais acabrunhantes do livro. O que fazer? Um belo dia de 1840, na cidadezinha de Tulle, onde reside, o senhor Lafarge amanhece envenenado. Arsênico. O fato é verdadeiro, as personagens, também. Instaura-se o processo que irá apaixonar por anos a opinião pública francesa.

Tal como Aleksandr Púchkin, que apesar de ter tido uma vida mais breve (foi morto em duelo aos 38 anos, por um francês!) foi seu contemporâneo, Alexandre Dumas, embora escritor romântico, sabe como lidar com seus leitores de maneira realista. Entremeando referências pes¬soais sem ilações psicologizantes, leva-os a participarem, como interlocutores inteligentes, da ação, das conseqüências da ação, das digressões, das discussões de sua época. Se Púchkin, em seu famoso conto gótico A dama de espadas instrui o público sobre telepatia, alucinação, magnetismo e jogos de azar, Dumas mergulha-o em cheio na história da França.

“Minha vida daria um romance”, teve ocasião de dizer Dumas nos fascículos de suas volumosas memórias que vão desde a queda da Bastilha, o advento de Napoleão até o II Império e a III República. (Nos sebos ainda se encontram as traduzidas por Rachel de Queiroz para a José Olympio, em 1947, Memórias de Alexandre Dumas, pai. Como se sabe, Alexandre Dumas teve um filho, também escritor, que passou a firmar Alexandre Dumas, filho).

De fato ele reconta sua vida a partir do avô, marquês Davy de la Pailetterie, que, devido a intrigas da corte, deixa a França em 1760 e se estabelece na grande propriedade que compra na ilha de São Domingos, colônia francesa, onde se casa com uma escrava e tem um filho mulato que se torna um grande militar: o pai de Dumas. Morta a mulher, a quem queria muito, o avô volta à França em 1784 e, com a idade de 74 anos, torna a casar-se. O filho, Thomas-Alexandre Dumas-Davy de la Pailleterie, célebre por sua bravura e força hercúlea, faz rápida carreira, torna-se general, mas se incompatibiliza com Napoleão durante a campanha do Egito. Volta à França, perde o prestígio e a saúde e morre em Villers-Cotterêts, onde a família possuía uma propriedade, em 1806.

Alexandre Dumas, filho de Thomas-Alexandre, nascido em 1802, e sua irmã ficam portanto órfãos de pai na idade mais tenra. Acontece que o avô de Marie Cappelle, o senhor Collard, fora vizinho e amigo do general republicano e, como tal, fora designado tutor do pequeno Alexandre e de sua irmã. Isso não apenas justifica o fato de Alexandre Dumas ter mergulhado no caso judicial que envolveu Marie Cappelle como conhecedor de todos os detalhes, mas explica a autenticidade que soube imprimir a todas as passagens como protagonista que de fato foi.

O processo desenrola-se com todos os moventes e peças manipulados pelos jurisconsultos mais renomados da época. Documentos a favor e contra a senhora Lafarge são arrolados com a veemência e a meticulosidade que o caso comporta. Formam-se alas de lafargistas e antilafargistas. A comoção é nacional. Por fim, a senhora Lafarge, recolhida à prisão desde o início do processo, é condenada e transferida de Tulle para Montpellier, onde irá expiar sua culpa. Culpada ou mártir?

As várias propostas de fuga para o estrangeiro são recusadas por Marie, que clama sua inocência. O próprio Dumas, amigo da família, propusera à jovem órfã (Marie perdera os pais quando ainda menina, ficando a cargo de uma tia) que o deixasse levá-la para Paris: “Ofereci-me para raptá-la naquela mesma noite. Eu falava seriamente e o teria feito, certo de estar agindo em prol da sua felicidade e, conseqüentemente, de acordo com a Providência. Teria você se tornado cantora, atriz trágica ou literata? Não sei. (...) Com certeza teria sido algo grande, distinto, fora de série!”. Marie não foge e nada mais lhe resta senão escrever suas Reflexões e recordações, as quais, por sinal, Dumas cita várias vezes em sua narrativa. Triste é o destino das mulheres que não se adaptam a seu tempo, opina o escritor.

Enquanto espera pelo indulto que o novo imperador talvez lhe dê, instado pelos esforços do próprio Dumas e após superar os maus-tratos que lhe são infligidos na prisão à custa de sua própria saúde, Marie lê, lê “como quem tenha feito da crença na ficção a chave do funcionamento do real”, dirá Ricardo Piglia no seu O último leitor.

“É preciso ter sido privado de livros para sentir o preço dessa doce companhia, sempre variada, sempre renovada, sempre em uníssono com a corda vibrante de nosso espírito”, escreve Marie. E o que ela lê? Pascal, “o suave agrimensor da dúvida e da fé”; depois Bossuet, “o cronista inspirado dos segredos de Deus”; depois ainda Fénelon, “ a alma de apóstolo e de santo”; Madame de Sévigné, com “o inesgotável gênio de seu amor de mãe”, e enfim Corneille, Racine, Montaigne, La Fontaine, Molière. Em sua clausura vive da lembrança dos livros que carrega em sua memória.

E se ela tivesse tentado fugir?, pergunta-se o leitor, enquanto ainda tenta dirimir a dúvida que lhe ficou quanto à sua culpabilidade. Será que não teria conseguido talvez contornar a sorte que coube às suas contemporâneas literárias, Anna Kariênina e Emma Bovary? Talvez só George Sand, com suas self-made-women (quem, de sua geração, não torceu pela Pequena Fadette?), teria podido dar uma visão mais otimista do que a do romântico Dumas quanto ao destino de suas heroínas.

Fonte:
Revista EntreLivros - edição 24 - Abril 2007

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