sábado, 30 de janeiro de 2021

Eduardo Affonso (Nada Além)


Quando eu morrer, assim que chegar do lado de lá e confirmar que não há lado de lá, faço questão de baixar em algum centro só para dar a má notícia.

– Se houver algum espírito entre nós, que se manifeste.

– Não tem espírito nenhum porque espírito não existe. Vim só para dizer que não tem nada do lado de cá. O Além é uma ilusão.

– Se não tem nada desse lado daí, onde é que tu estás?

– Em lugar nenhum. Ateus são como a Buzina do Chacrinha: acabam quando terminam. Morreu, zefini. E não precisa me tratar na segunda pessoa porque sei que este centro é em Magé, não em Bagé.

– Mas se tu, quer dizer, se você acabou e não está em lugar nenhum como é que estamos conversando neste momento. Não faz sentido…

– Exatamente. Sabe qual a diferença entre o unicórnio de 4 chifres e o de 7 chifres?

– Um tem 3 chifres a mais.

– Não, não tem diferença nenhuma. Nenhum dos dois existe. Você estar falando agora com um espírito ateu inexistente é a mesma coisa de estar falando com um espírito de luz, que também não existe. É tudo uma projeção do seu inconsciente, tudo sua imaginação.

– Você está insinuando que isto aqui é uma armação?

– Uma armação, eu não digo. Um delírio, com certeza. Mas acredito que seja uma forma de consolar as pessoas, e nada mais consolador que a fantasia. Então, tá de boa.

– Mas não tem mesmo nada aí?

– Nadica.

– “Nosso lar” então era…

– … licença poética. Onde já se viu passarela para espírito, que não tem corpo, ter guarda-corpo? Tinha que ter guarda-espírito…

– É que os espíritos…

– Nem vem. Espírito é espírito, corpo é corpo. Uma coisa é o relógio, outra é a corda do relógio.

– Você não está comparando a alma humana com a corda do relógio, está? A corda é uma coisa mecânica…

– … e a alma é uma coisa química. Ou quer que eu acredite que, quando um relógio para, a corda do relógio vai para a “Nossa relojoaria”, onde continua tendo a forma de despertador, cuco, carrilhão, Casio, Rolex? E que depois um reloginho desses de ponteiro, se nunca tiver se atrasado na vida, pode reencarnar – quer dizer, reenrelojar – num relógio digital ou mesmo num celular…. me poupe.

– Mas é que a alma, o espírito, o perispírito, a psique, princípio vital…

– Mano, eu só vim para avisar que vocês vão se decepcionar quando chegarem aqui e não for nada do que imaginam. Porque aqui não existe. É só um imenso Nada, um Nada absoluto. Até eu, que sabia que ia encontrar o Nada fiquei abismado com um o tamanho do Nada que encontrei. Vazião mesmo.

– Ok, o papo tá ótimo, mas tem outros ectoplasmas na fila de espera para se manifestar e o pessoal aqui do centro tá ficando meio indócil com essa nossa conversa. Ide em paz, espírito ateu!

– Valeu, irmão! E obrigado pela segunda do plural. Pena que não exista nenhum centro espírita ateu. Ia ser divertido baixar lá com Freud, Einstein, da Vinci, Hawking, Sagan, Sartre, Niemeyer – que também chegaram aqui, não encontraram nada e vão passar o resto da eternidade sem uma corrente pra arrastar, uma cartinha para ditar, uma gira para animar, uma casa mal assombrada pra assombrar. Pensando bem, inexistir tem suas vantagens. A gente descansa. Fui!

– Já vai tarde. (Suspira fundo) Desculpem, irmãos. Tivemos uma interferência aqui na conexão com o Além, que já foi restabelecida. Tem alguém aqui cujo nome começa com a letra M? O espírito de um ente querido tem uma mensagem de paz para você…

Fonte:
Blog do Eduardo Affonso

A. A. de Assis (Era um tempo e tanto) Parte 3, final

47.
Menino de sete
versus menino de oitenta.
Jogo de botão.

48.
Olhar de criança.
Tendo à frente dois sabugos,
dois boizinhos vê.

49.
A primeira volta
na primeira bicicleta.
Esquecer quem há-de?

50.
A prece das seis.
Cantavam em coro as aves
as Ave-Marias.

51.
Um quintal eu tinha
que tinha abacate e pinha.
Tinha passarinhos.

52.
Tuka, Puã, Xuê.
Difícil mesmo era achar
um sem apelido.

53.
Ventinho legal.
Vamos pra beira do rio
soltar papagaio.

54.
Tinha a escrivaninha,
tinha uma pena e o tinteiro.
Tinha um escritor.

55.
Ah, os velhos mestres.
Cabelos bancos, ou sem-los,
que bonitos são.

56.
Gira o mundo, gira.
Desde a primeira girada,
quanto sonho em mira.

57.
O sonho dos sonhos.
O baile das debutantes
num salão dourado.

58.
Que bom que deixaram
seus sorrisos para os netos.
Álbum de família.

59.
Noite de retreta.
A bandinha no coreto
e os casais sonhando.

60.
Festa no vagão.
Hora de abrir o farnel
para o frango assado.

61.
Foi progresso ou não?
Meu vô trocou a espingarda
por um violão.

62.
Quatro e quatro... oito,
café com leite e biscoito.
Lembra a tabuada?

63.
Aula de latim.
Ego mei mihi me me,
sui sibi se se.*

64.
Teste de audição.
Canta ao longe um pintassilgo
e eu escuto, oba.

65.
Cada mês que passa
vai passando a ser passado.
Um a um, que pena...

66.
Quantas vezes, ah,
eu vi o pião rodar.
E os anos também.

67.
Quais os rios, nós.
Há pedras, mas também flores,
da nascente à foz.

68.
A esperança é infinda.
Os galos cantam ainda
nos quintais vizinhos.

69.
Caminhar, cantar.
Ó ciranda, ó cirandinha,
vamos ser e andar.

70.
Grave em ouro e bronze:
haverá futuro, e bom.
Isaías, onze.
==================================
*São pronomes pessoais da primeira e da terceira pessoa.

Fonte:
A. A. de Assis. Era um tempo e tanto. (triversos). Ed. Do Autor, 2021.
Ebook enviado pelo autor.

Júlia Lopes de Almeida (A Rosa branca)


A Magalhães de Azeredo


A viúva do comandante Henriques dizia a toda a gente que, das suas duas netinhas, dava preferência à primeira; demonstrando pela segunda uma simpatia medíocre.

Comentava cada um a seu modo aquela excentricidade de velha romântica. O verdadeiro motivo, porém, consistia em ser a neta mais velha extraordinariamente parecida com a família Henriques, enquanto que a mais moça pertencia toda à família do pai, um provinciano feio.

Ângela, que era a primeira, recebia continuamente presentes da avó; a outra, a Inês, olhava com melancolia para aquelas doces manifestações de amor, perguntando mentalmente em que desmereceria ela da ternura da mãe de sua mãe?

Acostumaram-se todos com aquela injustiça, menos a pobre Inezinha, que chorava muitas vezes às ocultas, chamando-se desgraçada!...

Com o tempo veio a necessidade de Ângela entrar para um colégio. A avó lamentou-se, tornando-se ainda mais indiferente para a pobre Inês e atirando-lhe para cima todas as culpas; era ela quem quebrava a louça que se sumia do armário; era ela que fazia enxaquecas à mãe com a bulha dos seus sapatos insuportáveis; era ela quem arrancava as plantas do jardim e quem roubava os doces do guarda–prata; era ela quem batia nos animais, quem riscava os móveis, quem enchia de trapos e de papéis o chão, quem impacientava as criadas e pedia dinheiro às visitas.

Ela era o demônio! e, na sua opinião, seria muito mais sensato mandá-la de preferência para o colégio, como pensionista, e deixar em casa a Ângela, a quem se oferecia para pagar os mestres.

O alvitre não foi bem recebido. E Ângela teve de partir para Itu, lugar escolhido para a sua educação.

Na véspera, à noite, recaindo a conversa sobre assuntos de pressentimentos e de superstições, Ângela teve a fantasia de dizer à avó:

– Olhe, vovó, todas as manhãs há de ver no seu oratório uma rosa branca. Será o meu pensamento que há de vir visitá-la. No dia em que a rosa estiver meio murcha, será um sinal de que eu estou doente; e se ela não aparecer, será porque eu morri!

– Deixa-te de tolices! Não quero que minha filha leve de casa semelhantes ideias! Acreditarás por acaso nisso?

– Não, mamãe... eu estava brincando... Descanse que a rosa branca não há de vir!

Do seu canto, a pobre Inês observou que o olhar da avó se tornara angustioso, turvo como a água onde se refletisse uma nuvem negra. A pobre senhora acreditava em sonhos e em fantasmas; sabia histórias complicadas e extravagantes; coisas extraordinárias que ela queria impor à fé ou à incredulidade dos outros! Já agora, se a rosa branca não surgisse todas as madrugadas aos pés da Virgem das Dores, ela havia de supor que a sua Angelita tinha ido fazer companhia aos querubins.

E enquanto a sua preferida dizia descuidada e risonha: “Eu estava brincando...” a outra lia-lhe no olhar toda a inquietação e tristeza!

A despedida de Ângela foi dolorosa para o coração da avó; a pobre senhora levou o dia inteiro a chorar, encerrada no quarto, e, quando consentiu em ir ao chá, notaram todos a extraordinária alteração da sua fisionomia. Estava impaciente, frenética, olhando de soslaio para a pobre Inês, com quem várias vezes ralhou sob qualquer pretexto:

– Menina, isso são modos? Tire a mão da mesa!

E continuava depois, voltando-se para uma visita:

– Tanto tem a Angelita de ajuizada e de boa quanto esta tem de insensatez e mau gênio! Pudera! fazem-lhe todas as vontades! Eu nunca vi!

A mãe acudiu em defesa da filha, e a questão prolongou-se, até que a avó, desesperada, exclamou:

– A outra foi aos onze anos de pensionista para o colégio; pois bem, esta tem nove, e aposto em como nem daqui a três anos irá acompanhar a irmã! Injustiças é que me revoltam.

Inês ouvia humilhada e triste aquela troca de palavras, consolando--se com a doçura do olhar da mãe, que caía sobre ela como uma bênção.

No seu pequeno quarto, em frente à cama vazia da irmã, Inezinha procurava em vão adormecer. Revolvia-se entre os lençóis, olhava para o teto, onde a luz da lamparina punha sombras, e lembrava-se do olhar da avó, quando a Ângela falara na rosa branca! Ah! por que lhe quereria tanto mal a sua avó? No entanto, procurava fazer-lhe as vontades, e tinha-lhe até muita amizade! Realmente, a Ângela era tão boa! e tão bonita!

Sim, ela também achava natural que a velhinha preferisse a outra... Mas seria razoável que a deprimisse sempre, e assim... diante de gente de fora? Tentava dormir: fechava os olhos e punha-se a rezar:

– Ave, Maria, cheia de graça!... E a rosa branca? ah! se a vovó não a encontra no oratório... é capaz de chorar! Fazei, virgem Maria, com que nasça uma rosa branca a vossos pés!

"Se fosse eu que estivesse no colégio, a vovó estaria contente! Por que será que não gosta de mim? É verdade que eu lhe tenho feito mal, mas sem ser por vontade... entornei-lhe chá quente na mão... quebrei o seu espelho novo; mas o que com certeza ela não me perdoa é eu ter batido na Ângela! Coitadinha da Ângela! ela não se queixou... quem teria visto? mas se eu não lhe batesse, ela matava o gato da vizinha, e depois? Sim! a vovó tem-me raiva desde esse dia... mas eu tenho dado tantos beijos na Ângela! Pobre da minha irmã, que saudade ela hoje terá da sua caminha!

Apesar dos meus beijos, a amizade da vovó não voltou. Mamãe sempre me diz que não julgue eu isso, que a vovó adora-me! como o saberá? Mas a mamãe não mente; logo que diz, é porque é."

Com as mãozinhas cruzadas sobre o peito, toda envolvida na sua longa camisa de dormir, Inês lutava com a insônia, e, para afastar os pensamentos, recomeçava a dizer: "Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco..."

No entanto, antevia as mãos trêmulas da avó, procurando em vão a rosa branca entre as dobras do veludo azul do manto de Nossa Senhora. Depois as lágrimas caindo-lhe às duas pela face engelhada... E tinha pena, e tornava, cheia de fé, a suplicar:

– Virgem Maria! fazei com que nasça uma rosa branca a vossos pés!

A luz da lamparina foi-se tornando pálida à proporção que os vidros da janela se iam iluminando pela claridade exterior. Inês ergueu--se. Nunca tinha visto amanhecer, mas o seu fito era outro; foi cautelosamente à janela, abriu-a e olhou. Nuvens cor-de-rosa enovelavam-se sob o céu azul; no alto, mostrava-se a lua, estreita como um fio de luz arqueado, e um pouco abaixo entrebrilhava uma grande estrela esbranquiçada e fria. Os pássaros cantavam; havia uma frescura leve toda embalsamada de aromas.

Inês espreitou o oratório.

Nada! A lâmpada acesa, bruxuleante, difundia a sua tênue chama sobre um ramo de flores artificiais! Voltou à janela do seu quarto, ao rés do chão; vacilou um momento, mas, armando-se de coragem, saltou-a, e correu para um recanto do jardim, onde várias roseiras ostentavam as suas belíssimas flores.

À hora do almoço, a avó apareceu risonha e tranquila, com o olhar abrandado por uma misteriosa doçura d’alma. Passaram-se dias, durante os quais a pobre senhora achou sempre no seu oratório a prometida rosa branca, que era, a seu ver, a visita do pensamento da adorada netinha! Cada vez mais terna para a ausente, tornava-se mais ríspida para a Inês. A pequenita andava agora mais abatida e magra, chegando a inspirar cuidados à família.

A história da rosa era ignorada por todos; a avó guardava o segredo da visita de Ângela, egoisticamente, conservando as rosas, mesmo depois de murchas, num cofrezinho dourado!

Um dia, estavam todos à mesa, quando o jardineiro se foi queixar de que todas as noites ia alguém roubar uma rosa branca a uma das roseiras de mais estimação do jardim!

Da rua não entrava ninguém; aquilo era coisa de gente da casa; pedia providências.

Inês tornou-se rubra; a avó estremeceu, e o dono da casa, um colecionador fanático, prometeu um tiro a quem, sem seu consentimento, lhe arrancasse as rosas do jardim. À noite verificou a existência de um formoso botão. No dia seguinte o botão havia desaparecido!

Aquela persistência exasperou-o. Começaram as indagações. A avó julgou de seu dever intervir, contando o fato que se passava consigo, e aconselhando paciência. Era a mão invisível de um ente sobrenatural e piedoso, que vinha, mensageiro da sua Angelita, trazer-lhe a flor prometida!

Essa revelação desorientou-os. A pessoa era então, evidentemente, de casa, e tão íntima que entrava nos quartos da família! Houve ameaças... Entretanto, a doce rosa branca, aquietadora dos sustos da avó, aparecia todas as manhãs, fresca e orvalhada, sob o manto estrelado da mãe de Deus!

As criadas começaram a supor fantasmas, a asseverar que os viam, e de tal forma que a própria Inês entrou de ter medo!

Uma noite deitou-se resolvida a faltar à sua caridosa lembrança; a avó que tivesse paciência e apreensões e lágrimas – ela não se arriscaria nunca mais para poupar-lhe esses desgostos! E ficou, como na primeira noite, nervosa, imaginando a decepção da velha! Passou por fim ligeiramente pelo sono; acordando, viu tamanha claridade na janela, que supôs ser já dia. Saltou do leito, e, sem meditar, levada pelo hábito, ainda quase a dormir, pulou para o jardim, arrastando na areia a sua camisola branca e magoando no chão os pezinhos descalços.

A lua, em todo o esplendor, espalhava a sua luz aveludada; estava tudo silencioso, silencioso!

Inês, no meio do caminho, ao ar fresco, compreendeu o seu engano: levantara-se alta noite! A bulha dos seus passos naquela solidão horrorizou-a. Ah! era a hora dos fantasmas, e ela não ousava olhar para trás! caminhava sempre, com os lábios secos e os olhos muito abertos! Foi com um movimento nervoso que arrancou da haste a triste flor piedosa, não ousando observá-la, porque, quando à violência do puxão a roseira balançou os seus botões nevados, afigurou-se-lhe ver uma dança macabra improvisada no ar por estranhos e pequeninos espectros! Correu então alucinada para casa, saltou para dentro, e, sem tomar as precauções do costume, entrou no oratório precipitadamente e atirou aos pés da Virgem a doce rosa branca, murmurando ao mesmo tempo, com a voz alterada pelo medo:

“Salve, Rainha... Mãe de misericórdia... vida e doçura... esperança nossa!”

Não acabou. Transida de medo e de frio, cairia no chão... se dois braços não a amparassem meigamente.

Eram os braços da avó, que a cobria de beijos, repetindo-lhe:

– Como tu és boa, minha adorada Inês! como tu és boa!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília: Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Concurso de Crônicas Lygia Lopes dos Santos (Prazo: 25 de Junho)


Com as pedras desiguais da vida,
Lygia Lopes dos Santos compõe
seu notável mosaico literário.”
Helena Kolody


A Academia Feminina de Letras do Paraná (AFLP) e o Centro de Letras do Paraná (CLP) convidam a comunidade paranaense a participar do Concurso de Crônicas Lygia Lopes dos Santos. A iniciativa compõe as atividades comemorativas dos 50 anos de fundação da AFLP. Associando-se nessa comemoração, o CLP presta merecida homenagem à Academia e oferece sua contribuição ao objetivo de aproximar letras e comunidade.

AUTORA HOMENAGEADA

Lygia Lopes dos Santos, a autora que dá nome a este Concurso, presidiu a Academia Feminina de Letras do Paraná no período de 2004 a 2016 e participou da Diretoria do Centro de Letras do Paraná em várias gestões, frequentando, assiduamente, suas atividades.

Filha da fundadora da AFLP, professora Pompília Lopes dos Santos, e do professor, escritor e membro da Academia Paranaense de Letras Dario Nogueira dos Santos, Lygia fez licenciatura na PUC. Na educação, foi proprietária e diretora de escola, além de professora em várias instituições de ensino. Trabalhou na Fundação Cultural de Curitiba, de 1973 a 2000, ocupando cargos de coordenação e chefia, vindo a fundar (1982) e coordenar a Livraria Dario Vellozo durante cinco anos. À disposição da Universidade Federal do Paraná, lotada na Editora Scientia et Labor, criou a Livraria da Universidade Federal do Paraná, em 1988. Em 1978 veio à luz seu livro de contos “Dança do Caos”, com apreciações de Helena Kolody e Denise Guimarães* e prefácio de Valfrido Piloto. Tem várias publicações em revistas, livros, jornais e coletâneas. Mas sua grande satisfação era escrever crônicas.

REGULAMENTO

1. OBJETIVOS

O Concurso tem como principais objetivos: incentivar o leitor a escrever, estimular a produção literária, identificar novos escritores e oferecer oportunidade para revelação de talentos.

Sendo a crônica porta-voz de opiniões e reflexões sobre questões do cotidiano, as entidades promotoras convidam o leitor a opinar e refletir ao escrever sobre o que vê, lê e pensa, de modo a, por meio da escrita, ampliar o sentido dos fatos e coisas que permeiam sua realidade.

2. TEMA

A crônica deverá se referir ao seguinte tema: Vamos falar de amor?

O tema convida a uma releitura da presença do amor nas situações simples ou complexas, alegres ou tristes, mas sempre impactantes no dia a dia das pessoas.

3. PERÍODO DE INSCRIÇÕES

As inscrições serão gratuitas e estarão abertas de 26 de janeiro de 2021 a 25 de junho de 2021.

4. CONDIÇÕES DE PARTICIPAÇÃO

4.1. A participação é aberta a autores paranaenses, ou residentes no Estado do Paraná maiores de 18 anos.

4.2. Não poderão participar os membros da comissão organizadora e julgadora, as acadêmicas da AFLP e os membros da Diretoria, das Comissões de Assessoramento e dos Conselhos do CLP.

4.3. Serão aceitas obras redigidas exclusivamente em língua portuguesa, desde que não publicadas em jornais, revistas e periódicos impressos, não sendo impedimento à inscrição a simples divulgação anterior em blogs e sites pessoais, além de redes sociais.

4.4. Cada participante pode se inscrever com uma crônica, que deverá atender ao limite máximo de 4.200 caracteres (com espaços e título incluídos), apresentação em formato A4, fonte Times New Roman tamanho 14, espaçamento entre linhas 1,5 e margens 2,5cm, em formato PDF. O título, o pseudônimo do autor e o conteúdo da crônica devem ser as únicas informações junto ao corpo do anexo.

4.5. Trabalhos que não atendam as especificações detalhadas no item 4.4 serão desclassificados.

4.6. Trabalhos que não aludam ao tema (Vamos falar de amor?) serão desclassificados.

5. ENCAMINHAMENTO DO TRABALHO

5.1.  O trabalho deverá ser enviado em arquivo formato PDF para o endereço concursodecronicas@hotmail.com. O assunto do email deve ser “Concurso Crônicas + pseudônimo do participante”.

5.2. No e-mail devem constar dois anexos: a ficha de inscrição, conforme modelo disponível ao final do presente Regulamento, devidamente preenchida e salva como “Inscrição”, e o arquivo PDF contendo a crônica e salvo com o nome da crônica.

5.3. Não será enviado e-mail de confirmação de recebimento por parte da comissão organizadora.

6. PREMIAÇÃO

6.1. O primeiro, segundo e terceiro colocados receberão troféu e certificado; o quarto, quinto e sexto colocados receberão medalha e certificado; o sétimo, oitavo, nono e décimo colocados receberão certificado.

6.2. Todos os textos classificados serão publicados nas redes sociais da AFLP e do CLP, bem como em jornais, blogs literários e podcasts apoiadores dessa iniciativa.

6.3. Os textos premiados ficarão à disposição da Academia Feminina de Letras do Paraná e do Centro de Letras do Paraná para serem veiculados (divulgados) em diferentes mídias, respeitando sempre a menção ao nome do autor que, desde logo, autoriza sua ampla veiculação.

7. ETAPAS DO CONCURSO

7.1. O processo de seleção dos trabalhos e condução do Concurso terá as seguintes etapas:

1ª) recebimento das inscrições e triagem, a ser realizada pela Comissão Organizadora, no intuito de verificar obediência aos termos do presente Regulamento e consequente desclassificação daqueles que descumpram qualquer dos itens dispostos;

2ª) envio dos trabalhos que estejam de acordo com o presente Regulamento à Comissão Julgadora, formada por 05 (cinco) membros, especialmente convidados pelas entidades promotoras, os quais avaliarão as obras (pontuação de 0 a 10), em caráter de decisão irrevogável, de acordo com os critérios de domínio da linguagem, criatividade, coesão/coerência, desde já estabelecidos;

3ª) divulgação dos resultados nas redes sociais da AFLP e CLP, no site https://academiafemininade7.wixsite.com/concurso;

4ª) comunicação dos primeiros 10 (dez) colocados via e-mail até o dia 27 de agosto de 2021;

5ª) entrega dos prêmios aos 10 (dez) primeiros colocados em setembro de 2021, em modalidade presencial ou digital, a ser definida e divulgada naquela data.

8. ORGANIZAÇÃO

8.1. Cabe à Academia Feminina de Letras do Paraná e ao Centro de Letras do Paraná, em conjunto, solucionar quaisquer controvérsias, casos omissos ou pendências advindas do Concurso, bem como realizar de modo exclusivo quaisquer comunicados aos participantes e interessados, que deverão sanar suas dúvidas e levar suas questões ao email concursodecronicas@hotmail.com.

8.2. O trabalho da organização encerra-se a partir da entrega dos prêmios aos vencedores.

9. COMISSÃO JULGADORA

9.1. As decisões da comissão além de irrevogáveis são irrecorríveis.

9.2. A composição da comissão julgadora será divulgada junto aos resultados.

10. DISPOSIÇÕES GERAIS


10.1. Efetivada a inscrição, não serão aceitas quaisquer alterações nos trabalhos entregues.

10.2. Não serão aceitos trabalhos que possuam conteúdo racista, machista, homofóbico ou de qualquer forma preconceituoso, ou que expresse propaganda política ou conotação religiosa.

10.3. Ao realizar a inscrição, o candidato manifesta pleno acordo com o Regulamento e autoriza, para todos os fins, a divulgação e publicação de seu nome e trabalho inscrito, a critério da organização, em quantos e quais veículos sejam considerados adequados, podendo vir a compor uma antologia a critério exclusivo dos organizadores.

10.4. Os textos serão publicados com o nome do autor (indicado na ficha de inscrição), exceto quando o autor manifestar expressamente a intenção de ser identificado apenas por pseudônimo.

10.5. Os participantes são integralmente responsáveis pela veracidade das informações prestadas e pelas consequências jurídicas decorrentes de eventual prática de plágio (total ou parcial), respondendo perante terceiros em todas as esferas pelos conteúdos que caracterizem a obra.

10.6. Fica eleito o foro da Comarca de Curitiba para dirimir quaisquer dúvidas constantes do presente Regulamento.

Ficha de Inscrição clique em
https://drive.google.com/file/d/1lIgQXZlGft9JxXe0I6ibC0gF3jqGrfGM/view

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 472

 


Luís da Câmara Cascudo (Cobra Norato)


No paranã* do Cachoeiri, entre o Amazonas e o Trombetas, nasceram Honorato e sua irmã Maria, Maria Caninana.

A mãe sentiu-se grávida quando se banhava no rio Claro. Os filhos eram gêmeos e vieram ao mundo na forma de duas serpentes escuras.
 
A tapuia batizou-os com os nomes cristãos de Honorato e Maria. E sacudiu-os nas águas do Paranã porque não podiam viver em terra.

Criaram-se livremente, revirando ao sol os dorsos negros, mergulhando nas marolas e bufando de alegria selvagem. O povo chamava-os: Cobra Norato e Maria Caninana.

Cobra Norato era forte e bom. Nunca fez mal a ninguém. Vez por outra vinha visitar a tapuia velha, no tejupar* do Cachoeiri. Nadava para a margem esperando a noite.

Quando apareciam as estrelas e o aracuã* deixava de cantar, Honorato saía da água, arrastando o corpo enorme pela areia que rangia. Vinha coleando, subindo até a barranca. Sacudia-se todo, brilhando as escamas na luz das estrelas. E deixava o couro monstruoso da cobra, erguendo-se um rapaz bonito, todo de branco. Ia cear e dormir no tejupar materno. O corpo da cobra ficava estirado junto do paranã*. Pela madrugada, antes do último cantar do galo, Honorato descia a barranca, metia-se dentro da cobra que estava imóvel. Sacudia-se. E a cobra, viva e feia, remergulhava nas águas do paranã.

Voltava a ser a Cobra Norato.

Salvou muita gente de morrer afogada. Direitou montarias e venceu peixes grandes e ferozes. Por causa dele a piraíba* do rio Trombetas abandonou a região, depois de uma luta de três dias e três noites.

Maria Caninana era violenta e má. Alagava as embarcações, matava os náufragos, atacava os mariscadores que pescavam, feria os peixes pequenos. Nunca procurou a velha tapuia que morava no tejupar do Cachoeiri.

No porto da Cidade de Óbidos, no Pará, vive uma serpente encantadora, dormindo, escondida na terra, com a cabeça debaixo do altar da Senhora Sant'Ana, na Igreja que é da mãe de Nossa Senhora.

A cauda está no fundo do rio. Se a serpente acordar, a Igreja cairá. Maria Caninana mordeu a serpente para ver a Igreja cair. A serpente não acordou mas se mexeu. A terra rachou, desde o mercado até a Matriz de Óbidos.

Cobra Norato matou Maria Caninana porque ela era violenta e má. E ficou sozinho, nadando nos igarapés, nos rios, no silêncio dos paranãs.

Quando havia putirão* de farinha, dabacuri* de frutas nas povoações plantadas à beira-rio, Cobra Norato desencantava, na hora em que os aracuãs deixam de cantar, e subia, todo de branco, para dançar e ver as moças, conversar com os rapazes, agradar os velhos.

Todo mundo ficava contente. Depois, ouviam o rumor da cobra mergulhando. Era madrugada e Cobra Norato ia cumprir seu destino.

Uma vez por ano Cobra Norato convidava um amigo para desencantá-lo. Amigo ou amiga. Podia ir na beira do paranã, encontrar a cobra dormindo como morta, boca aberta, dentes finos, riscando de prata o escuro da noite: sacudir na boca aberta três pingos de leite de mulher e dar uma cutilada com ferro virgem na cabeça da cobra, estirada no areião.

Cobra fecharia a boca e a ferida daria três gotas de sangue. Honorato ficava só homem, para o resto da vida. O corpo da cobra seria queimado. Não fazia mal. Bastava que alguém tivesse coragem.

Muita gente, com pena de Honorato, foi, com aço virgem e frasquinho de leite de mulher, ver a cobra dormindo no barranco. Era tão grande e tão feia que, dormindo como morta, assombrava. A velha tapuia do Cachoeiri, ela mesma, foi e teve medo. Cobra Honorato continuou nadando e assobiando nas águas grandes, do Amazonas ao Trombetas, indo e vindo, como um desesperado sem remissão.

Num putirão famoso, Cobra Norato nadou pelo rio Tocantins, subindo para Cametá. Deixou o corpo na beira do rio e foi dançar, beber, conversar. Fez amizade com um soldado e pediu que o desencantasse. O soldado foi, com o vidrinho de leite e um machado que não cortara pau, aço virgem. Viu a cobra estirada, dormindo como morta. Boca aberta. Sacudiu três pingos de leite entre os dentes. Desceu o machado, com Vontade, no cocuruto da cabeça. O sangue marejou. A cobra sacudiu-se e parou.

Honorato deu um suspiro de descanso. Veio ajudar a queimar a cobra onde vivera tantos anos. As cinzas voaram. Honorato ficou homem. E morreu, anos e anos depois, na cidade do Cametá, no Pará.

Não há nesse rio e terras do Pará quem ignore a vida da Cobra Norato. São aventuras e batalhas.

Canoeiros, batendo a jacumã*, apontam os cantos, indicando as paragens inesquecidas:

- Ali passava, todo o dia, a Cobra Norato...
* * * * * * * * * * * * * * * *  
Vocabulário:
Aracuã – ave trepadora.
Dabacuri - festa oferecida por uma aldeia a outra.
Jacumã – leme, remo.
Paranã – pequeno braço de rio.
Piraíba – espécie de peixe.
Putirão – trabalho comum, gratuito, (mutirão) em proveito de um indivíduo que oferece alimentação e bebidas e depois um baile.
Tejupar – casa de palha, palhoça.


Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas Brasileiras para Jovens. Projeto LpT (Livro para Todos).

A. A. de Assis (Era um tempo e tanto) Parte 2


24.
Mindim, seu-vizim,
pai-de-todos, fura-bolo.
Ao sobrante, o piolho.

25.
Tão longe, tão ontem.
Era uma vez eu menino
ensaiando a vida.

26.
Salgados, refrescos.
Lá ia alegre a moçada
para o piquenique.

27.
Baile na penumbra.
Pares de rostos colados
e um bolero ao fundo.

28.
Moradas sem muros,
simbólicas taramelas.
Cidade sem medo.

29.
Bença mãe, bom dia,
por favor, me dá licença.
Os belos bons modos.

30.
A pasta da escola.
Cartilha, papel manilha,
e o mata-borrão.

31.
De nublar a vista.
Vestida de azul e branco
passa a normalista.

32.
Meninas de tranças
cantando canções de roda.
Voltarão à moda?

33.
As artes da infância,
a turma da escola, o rio.
A terra natal.

34.
Namoro na praça.
Quanta história teve início
num flerte no footing.

35.
Tal e qual nos filmes.
No restaurante do trem
o jantar a dois.

36.
Pião, bilboquê,
bolinha de gude, ioiô.
Não tem mais por quê?

37.
Dou um Superman
por um Marvel e um Tarzan.
Troca de gibis.

38.
A santa saída.
Na porta da igreja os moços
esperando as moças.

39.
Ridentes passeios.
Vovô leva o neto ao bosque
para ouvir gorjeios.

40.
Bibibi-fonfom.
Carangos e calhambeques
na hora do rush.

41.
De repente o choque.
Eu da geração da valsa
vi nascer o rock.

42.
Outrora cantavam
de tardezinha as cigarras.
Onde mora o outrora?

43.
Moça na janela.
Na rua em frente um violino
sola o Autumn Leaves.

44.
Em nobre moldura
o retrato oval do avô.
Gratidão da prole.

45.
Um homem na rua
assobia o Hino à Alegria.
Obrigado, irmão.

46.
Abaixo o estilingue.
O pito da professora
na molecadinha.

Fonte:
A. A. de Assis. Era um tempo e tanto. (triversos). Ed. Do Autor, 2021.
Ebook enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 30) Invenção de espanto

Vila Velha/ES

PENSEM NUM SUJEITO trabalhador e honesto, cumpridor de seus deveres até debaixo d'água. O Alpheu! Este mesmo, escrito assim, desta forma arcaica, Alpheu com ‘PH’. E ele, por seu turno, fazia questão de deixar pontificado, o ‘PH’. Sem dúvida alguma, este era o cara, apesar de não gostar da melodia do Roberto Carlos, onde o cantor de Cachoeiro de Itapemirim, filho de dona Laura e seu Robertino, dava conta de um indivíduo que exaltava a figura auspiciosa de um craque, o dono do pedaço e da cocada preta, sobretudo, que fazia as honras em todos os sentidos, inclusive e, principalmente, se abrindo feito paraquedas às princesas de todas as idades, o que tornou o bendito fruto amável e benquisto entre as beldades do sexo oposto, Brasil e desvãos além fronteiras.

Mas o nosso Alpheu com ‘PH’, sem tirar nem pôr, fora o escolhido. Homem sério, até seu relógio interno seguia as regras do excelente. Sem nenhuma mancha que tornasse seu passado obscuro, servia de chacota e de gozação para os amigos. Na verdade, um espectador inocente, figura ridícula pela maneira por que se deixava, sobretudo, escravizar com as barbáries e investidas dos idiotas que se diziam e se proclamavam ‘seus chegados’: ‘Você é o cara, mano —, afirmava um’. Este ‘cara é você’ —, ajuntava outro. Por conta deste ‘cara sou eu’, o homenzarrão queria morrer. Tirando esta particularidade, Alpheu com ‘PH’, um santo. Do pau oco, mas santo. Bom pai, ótimo marido e seleto companheiro, principalmente com os colegas de trabalho. O patrão o adorava. Seu trajeto, nos trezentos e sessenta e cinco dias do ano... Apenas um. Com uma variante.

De casa para o trabalho e do trabalho para casa. Nada mudava a sua rota. A vida, para ele, se fazia mais obsessiva que as liquidações das Lojas Renner, anunciando seus auspiciosos e chamativos Black Friday. Alpheu com ‘PH’, como todo ser humano perfeitamente imperfeito, claro, exatamente por ser humano, tinha (apesar dos pesares e da vidinha reta e sem nódoas), cinco defeitos inquestionáveis. Primeiro deles. Gostava de fazer filhos. Por conta desta vida desregrada, no escuro de quatro paredes, enrodilhado com a sua metade gostosa do casamento, a Belinha, e gozando, com ela, os prazeres das fogosidades calientes, trouxera, à luz, em consequência das viradas de olhinhos, nove boquinhas para dar de beber e comer. Nove. Imaginem só! O segundo defeito. Ao sair do trabalho (pegava às cinco da manhã, na padaria do português Manuel Joaquim, parava uma hora para almoçar e, quinze minutos, para engolir o café servido como lanche).

Largava, o batente, às dezessete horas. Todo santo dia esta rotina enervante. O terceiro defeito. O pior deles. Antes de chegar em casa, vinha a variante acima citada. Alpheu com ‘PH’, passava, impreterivelmente, pelo boteco do Aristeu da Conceição (duas quadras de onde morava) e, uma vez ali, alagava os bofes, tomando todas as purinhas com seus amigos de copos. Ficava enraivecido, porque, nesta hora, os falsos amigos das garrafadas zoavam da sua vida certinha, cantando ‘Este cara sou eu’, do Roberto Carlos. Alpheu com ‘PH’, ficava pra morrer. Odiava, com todas as forças, esta canção e, se tivesse poder, pegava seus parceiros e os mandava para verem Papai do céu antes da hora marcada. Um suplício mal parido de que não cogitou, em nenhum momento, a sua postura de cidadão de bem.

Quarto defeito. Chegava, em casa, por volta das vinte e uma e o fazia, aos tropeços, chamando urubu de Nego do Burel e confundindo os postes com os mourões das cercas de arame ao longo da avenida. Morava quase no final dela, num bonito sobrado de alvenaria que lhe fora deixado de herança pelos pais falecidos. Ainda no jardim, ao ouvir o som das crianças jogando em frente à televisão, ato contínuo, pintava o quinto defeito. A criatura então soltava a âncora, deixando, à mostra, um temperamento virulento. Em nome deste drástico frenético, se fazia acessível aos desastres do horror. Arrancava o cinto da calça e pulava, num gingado à Jackie Chan, metendo sem dó nem piedade, um punhado de pancadas nos costados dos pobrezinhos. Neste pega pra capar, os quatro garotos com as idades de sete, nove, treze, e quinze anos, bem ainda, em igual número, as meninas, com dez, onze, quatorze, e dezessete, debandavam, em solitários impulsos, cada um para seu quadrado, os respectivos fundilhos pegando fogo, além das pernas e braços em carne viva. Coisa de meio minuto. O bastante para a gurizada dispersar, se escondendo, entre choros e atropelos, fora do real, todavia, em uma asselvajada realidade adentro.

Este sistema abrupto não mudava nunca. Bastava por os pés no alpendre, o couro começava a comer e se esparramar solto nas oito crianças. Alto lá: não somavam nove? Sim, isto mesmo, nove. A mais nova, a Aninha, de cinco anos, não alimentava o hábito de ficar jogando com os irmãos. Dava oito horas, a lindinha saia de cena e partia para a horizontal. Por certo, se estivesse entre os consanguíneos, não escaparia das perversidades do Alpheu com ‘PH’. Belinha, coitada, a esposa aflita, vinha lá de dentro correndo, apavorada (às vezes, com uma tigela cheia de pipocas nas mãos ou uma garrafa de refrigerante) e, ao se deparar com o bafafá, se intrometia às cegas para cima do marido, pedindo a ele, aos gritos vociferados que não agisse daquela forma com seus rebentos.

Afinal de contas, eles não tinham culpa de terem sido postos no mundo:

— Alpheu, pelo amor de Deus — separava, ou tentava. – Pare de tratar as suas crias deste jeito. Eles não estavam fazendo nada, só jogando. Deixe de ser violento. Respeite a sua família, em nome do Senhor Jesus. Que loucura! Todo santo dia este perrengue... Olhe pela janela. Nossos vizinhos, boquiabertos e pasmos, presenciando os descalabros das suas malditas biritas.

Alpheu com ‘PH’, no seu intenso sentimento de ódio descomedido, na danação de distribuir cintadas, às vezes acertava a pobre mulher onde não devia.

Mesmo ferida, braços e pernas, ou onde pegasse as correadas, a piedosa e santa mãe não deixava de se impor. Alpheu com ‘PH’, sequer dava ouvidos aos seus clamores e lamúrias. Cansado de distribuir porradas, o pinguço saía cambaleando, segurando aqui e acolá e acorria para o banheiro. Antes de fechar a porta, deixava sintetizado à esposa ultrajada:

— Não se esqueça: Alpheu, sua vadia... Alpheu com ‘PH’.

Belinha, ofendida e insultada na sua moral, apesar dos safanões e arranhões, não abria a guarda. Resmungava, xingava, chorava e para extravasar as suas inquietações, geralmente mandava junto com seus derrotismos alguma coisa pesada, jogada com força em direção ao embriagado:

— Vai para os quintos, cão sarnento.

O tinhoso, duro na queda, não arredava. Seguia sempre assim, sem nenhuma mudança. Em parte, culpa da mulher. Ora, convenhamos. Sabendo que o marido não mudava seus modos em relação aos jogos, por que não exigia que as crianças jantassem e subissem para dormir antes que o tresloucado desse o ar da graça? Se tivesse se precavido... Aconteceu, entretanto, que num final de semana os meninos haviam acabado de chegar de uma festinha de aniversário de um vizinho parede-meiado. Todos os nove. Por algum motivo, até o presente momento não esclarecido devidamente, Alpheu com ‘PH’, saiu mais cedo da padaria. Passou pelo boteco antes da hora prevista e se empanturrou, em rodadas à gostos apurados, com os amigos de sempre. Em seguida pegou o rumo de seu barraco. Ao chegar no portão, dali mesmo, ao ouvir as risadas barulhentas vindas do interior da residência não se fez de rogado. Arrancou da cinta e...

...Meteu os pés na porta e escancarou partindo para o ataque. Aos estropigaitados* de ‘eu mato’, pegou o primeiro, agarrou o segundo, esbofeteou o terceiro, socou o quarto... Belinha, em contrapartida, se armou de uma cadeira e investiu contra o desmiolado. Ele não se deteve. Seguiu mandando correadas e bordoadas no quinto, no sexto... Belinha, braba (pensem numa fêmea endiabrada), quebrou uma cadeira nas pernas dele. Entretanto, esta medida não se fez objetiva pelo menos para fazê-lo parar. Alpheu com ‘PH’, não se intimidou. Correu para o sétimo, grudou nos peitos do oitavo, derrubou o quinto...

Voltou para o segundo... Aplicou uma rasteira no oitavo... Quando, avistou num canto, a nona, ou seja, a Aninha, a coitadinha agachada, chorosa e assustadíssima, as mãozinhas cobrindo suas estremeções, Alpheu com ‘PH’, voou feito um leão faminto para deitar o sarrafo na brejeira:

— Até que enfim, esta maldita, hoje, está no bolo. Saiba, praguinha dos infernos, que de agora você não me escapa. Vai apanhar dobrado. Faz tempo que não boto os sentidos em seu magérrimo esqueleto...

Belinha, ao ouvir estas palavras, chegou ao ápice do seu desespero. Alcançou os píncaros do seu furor. Galgou às cumeadas das contrariedades que a dominavam e a fizeram crescer na sua cólera interior. Como um raio, passou as mãos num vaso de flores enorme e pesado (mais robusto que a consciência de Rodrigo Maia), que descansava, solitário sobre uma mesinha de centro, e mandou direto nos cornos de sua parte podre da maçã. Alpheu com ‘PH’, titubeou. Tentou ir em frente. Qual o quê! Ensaiou alguns passos. Inútil. Desabou, caindo de joelhos, o sangue jorrando abundantemente em meio à sua testa.

Antes de sair do ar, de vez, ouviu estas palavras da sua linda consorte:

— Na minha caçulinha, seu verme peçonhento, você não encosta as patas. Esta ai, seu corno safado, não é sua filha.
* * * * * * * * * * * * * * * *  
Vocabulário:
Estropigaitados
– atrapalhados, embaraçados, confusos.


Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (“A Ferro e Fogo”, de Josué Guimarães)


A saga da colonização alemã, particularizada na luta pela sobrevivência e na identificação com as condições históricas rio-grandenses por parte da família Schneider, lembra como processo narrativo O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Porém o sopro épico que anima as páginas do escritor de Cruz Alta é substituído por uma preocupação maior com o prosaico, com a mesquinha luta cotidiana, com a tarefa inglória de resistência em meio a uma terra estranha.

Local e época:

A narrativa se passa no Rio Grande do Sul [abrangendo as terra que hoje correspondem ao Chuí, Santa Vitória do Palmar, São Leopoldo, Porto Alegre, Rio Grande e Portão], no tempo do Império, num ambiente hostil, pobre e violento durante e após a guerra da Cisplatina, onde os personagens principais vivem em meio a bugres, negros, castelhanos, gaúchos, soldados e alemães.

Caracterização dos personagens:

Catarina - era uma mulher de rosto redondo e forte. Uma mulher decidida, batalhadora, humilde e mãe de três filhos. Apesar das dificuldades que passou, era solidária, carinhosa, cristã, corajosa e paciente. Ela era esperta, pois sabia lidar com os negócios, e trabalhadora. Não tinha preconceitos e tomava as iniciativas pois possuía uma personalidade forte.

Daniel Abrahão - era indeciso, covarde, queria preservar sua vida, não enfrentando as situações e acabou ficando alheio a tudo e obcecado pela religião. Era um homem sem iniciativa que acabou sendo comandado por sua mulher.

Grundling - era um homem perspicaz, ganancioso, preconceituoso, fazia de tudo para realizar os seus objetivos, gostava de ostentação, de mostrar sua riqueza. Ele apreciava beber e frequentar casas de prostituição. Embora gostasse muito da esposa com a qual teve dois filhos.

Resumo:

O governo brasileiro estava trazendo imigrantes da Alemanha para o Rio Grande do Sul, com a promessa de que eles receberiam terras, sementes, animais,... Dentre esses imigrantes estava a família de Daniel Abrahão Lauer Schneider, que se instalou na Real Feitoria de Linho Cânhamo [atual São Leopoldo]. Ele, sua mulher Catarina e seu filho Phillip viviam em condições miseráveis.

Daniel e um grupo de amigos se reuniam para beber e Grundling era quem pagava essas bebedeiras. Um dia, Grundling propôs um negócio para Abrahão, ele daria todas as condições para uma viagem ao sul do estado, forneceria um casal de escravos, um índio chamado Juanito e terras, mas Grundling não especificou qual era o negócio, disse apenas que iriam armazenar mercadorias. Daniel estava indeciso, quem optou por ir foi Catarina, pensando no futuro de seus filhos. Depois de alguns dias de viagem, chegaram ao local e começaram a realizar as reformas necessárias. Apareceu por lá Harwether, uma amigo das antigas bebedeiras, trazendo as mercadorias que deveriam ficar guardadas ali até Mayer ir buscá-las.

Já estavam há algum tempo no negócio, quando se iniciou a Guerra da Cisplatina, e Daniel descobriu que as mercadorias armazenadas por ele eram armas e os castelhanos já estavam desconfiados do contrabando. Certa vez, Juanito viu uma tropa aproximando-se, avisou Catarina que ordenou a Daniel que se escondesse em um poço e ela mentiu para os soldados castelhanos que o marido não estava. Eles descobriram as armas e as levaram. O movimento de soldados era contínuo, não só de castelhanos com também de brasileiros, por isso Daniel permaneceu vários meses no poço que ate já estava mais estruturado. Catarina foi violentada por soldados e Juanito ficou coxo por causa das surras. Mayer mentiu em São Leopoldo que Daniel contrabandeava armas para os castelhanos, por isso os soldados brasileiros também estava atrás de Daniel.

Enquanto os Schneider passavam dificuldades, Grundling e seu amigo Major Schaeffer, amigo da Imperatriz Leopoldina, se divertiam com bebedeiras e prostitutas. Grundling, a pedido do doutor Hillebrand, decide ajudar uma moça deixada por bugres na cidade. Com o passar do tempo ele se apaixona pela moça chamada Sofia, casa com ela e tem filhos.

Aparece na estância dos Schneider um soldado chamado Ostereich, um alemão convocado para lutar na guerra, informa Catarina sobre o fim da guerra da Cisplatina e que ele voltava para São Leopoldo. Catarina menciona o desejo de deixar aquelas terras e ir para São Leopoldo. Então eles entram em um acordo, ela trocaria as terras pelas propriedades de Ostereich.

Os Schneider foram para lá e Catarina decidiu que Daniel voltaria a exercer sua profissão de origem, a de seleiro. Além disso, abriu vários empórios, e já estava fazendo concorrência aos empórios de Grundling. Daniel ficou traumatizado com a guerra e constrói um alçapão para permanecer durante a noite.

Grundling descobriu que Catarina estava na cidade e foi falar com ela. Foi recebido hostilmente com uma arma empunhada por ela, sendo inviável a comunicação ele retornou para casa. Enquanto isso, havia uma conspiração por parte dos alemães que reclamavam da demora na entrega das terras prometidas, houve algumas mortes de alemães o que aumentava ainda mais a revolta.

Grundling não permitia que a esposa saísse às ruas pois eram sujas e ele não gostaria que ela tomasse sol e queimasse sua pele branca. Sofia acabou ficando anêmica e morreu. Catarina resolve ir acertar as contas com Grundling, em quem ela colocava toda a culpa pelas desgraças que aconteceram em sua vida. Quando chega ao local, Grundling pensa que ela vem em solidariedade por causa da morte da esposa. Ao olhar a profunda tristeza que invade Grundling, ela desiste do seu objetivo [matar], esquece seu velho ódio e segue junto a ele o cortejo, contendo o choro.

Fonte:
Algo Sobre.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Mia Couto (O Menino no Sapatinho)


Era uma vez o menino pequenito, tão minimozito* que todos seus dedos eram mindinhos. Dito assim, fino modo, ele, quando nasceu, nem foi dado à luz mas a uma simples fresta de claridade.

De tão miserenta, a mãe se alegrou com o destamanho do rebento — assim pediria apenas os menores alimentos. A mulher, em si, deu graças: que é bom a criança nascer assim desprovida de peso que é para não chamar os maus espíritos. E suspirava, enquanto contemplava a diminuta criatura. Olhar de mãe, quem mais pode apagar as feiuras e defeitos nos viventes?

Ao menino nem se lhe ouvia o choro. Sabia-se de sua tristeza pelas lágrimas. Mas estas, de tão leves, nem lhe desciam pelo rosto. As lagriminhas subiam pelo ar e vogavam suspensas. Depois, se fixavam no teto e ali se grudavam, missangas tremeluzentes.

Ela pegava no menino, com uma só mão. E falava, mansinho, para essa concha. Na realidade, não falava: assobiava, feito uma ave. Dizia que o filho não tinha entendimento para palavra. Só língua de pássaro lhe tocaria o reduzido coração. Quem podia entender? Ele há dessas coisas tão sutis, incapazes mesmo de existir.

Como essas estrelas que chegam até nós mesmo depois de terem morrido. A senhora não se importava com os diz-que-diz. Ela mesmo tinha aprendido a ser de outra dimensão, florindo como o capim: sem cor nem cheiro.

A mãe só tinha fala na igreja. No resto, pouco falava.

O marido, descrente de tudo, nem tinha tempo para ser desempregado. O homem era um farrapo, bêbado, entorna garrafas. Do bar para o quarto, de casa para a cervejaria.

Pois, aconteceu o seguinte: dadas as dimensões de sua vida e não havendo berço à medida, a mãe colocou o menininho num sapato. E o cujo era o esquerdo do único par, o do marido. De então em diante, o homem passou a calçar um só pé. Só na ida isso o incomodava. Na volta, ele nem se percebia de ter pés, dois na mesma direção.

Em casa, no calor da palmilha, o miúdo aprendia já o lugar do pobre: nos embaixos do mundo. Junto ao chão, tão rés e rasteiro que, em morrendo, dispensaria quase o ser enterrado. Uma peúga* desirmanada lhe fazia de cobertor. Se o frio lhe estreitasse, a mulher se levantava de noite para repuxar a trança dos atacadores*. Assim lhe calçava um aconchego. Todas as manhãs, de prevenção, ela avisava os demais e demasiados:

— Cuidado, já adentrei o menino no sapato.

Que ninguém, por descuido, o calçasse. Quando‑muito, o marido quando voltava bêbado e queria sair uma vez mais, desnoitado, sem distinguir o esquerdo do menos esquerdo. A mulher não deixava que o berço fugisse do vislumbre dela. Porque o marido já se outorgava, cheio de queixa:

— Então, ando para aqui improvisar um coxinho?

— É seu filho, pois não?

— O diabo que te carregue!

E apontava o filhote: o individuozito interrompia o seu calçado? Pois que, sendo aqueles seus exclusivos e únicos sapatos, ele se despromoveria* para um chinelado?

— Sim — respondeu a mulher. — Eu já lhe dei os meus chinelos.

Mas não dava jeito naqueles areais do bairro. Ela devia saber: a pessoa pisa o chão e não sabe se há mais areia em baixo que em cima do pé.

— Além disso, eu é que paguei os tais sapatos.

Palavras. Porque a mãe respondia com sentimentos:

— Veja o seu filho, parece o Jesuzinho empalhado, todo embrulhadinho nos bichos de cabedal.

Ainda o filho estava melhor que Cristo — ao menos um sapato já não é bicho em bruto. Era o argumento dela mas ele, nem querendo saber, subia de tom:

— Cá se fazem, cá se apagam!

O marido azedava e começou a ameaçar: se era para lhe desalojar o definitivo pé, então, o melhor seria desfazerem-se do vindouro. A mãe, estarrecida, como se fosse o fim de todos os mundos:

— Vai o quê fazer?

— Vou é desfazer.

Ela prometia‑lhe um tempo, na espera que o bebê graúdasse. Mas o assunto azedava e até degenerou em soco, punhos ciscando o escuro. Os olhos dela, amendoados ainda, continuaram espreitando o improvisado berço. Ela sabia que os anjos da guarda estão a preços que os pobres nem ousam.

Até que o ano findou, esgotada a última folha do calendário. Vinda da igreja, a mãe descobriu-se do véu e anunciou que iria compor a árvore de Natal. Sem despesa, nem sobrepeso. Tirou à lenha um tosco arbusto. Os enfeites eram tampinhas de cerveja, sobras da bebedeira do homem. Junto à árvore ela rezou com devoção de Eva antes de haver a macieira. Pediu a Deus que fosse dado ao seu menino o tamanho que lhe era devido. Só isso, mais nada. Talvez, depois, um adequado berço. Ou quem sabe, um calçado novo para o seu homem. Que aquele sapato já espreitava pelo umbigo, o buraco na frente autorizando o frio.

Na sagrada noite anterior, a mulher fez como aprendera dos brancos: deixou o sapatinho na árvore para uma qualquer improbabilíssima oferta que lhe miraculasse o lar.

No escuro dessa noite, a mãe não dormiu, seus ouvidos não esmoreceram. Despontavam as primeiras horas quando lhe pareceu escutar passos na sala. E depois, o silêncio. Tão espesso que tudo se afundou e a mãe foi engolida pelo cansaço.

Acordou cedo e foi direta ao arbusto de Natal. Dentro do sapato, porém, só o vago vazio, a redonda concavidade do nada. O filho desaparecera? Não para os olhos da mãe. Que ele tinha sido levado por Jesus, rumo aos céus, onde há um mundo apto para crianças. Descida em seus joelhos, agradeceu a bondade divina. De relance, ainda notou que lá no teto já não brilhavam as lágrimas do seu menino. Mas ela desviou o olhar, que essa é a competência de mãe: o não enxergar nunca a curva onde o escuro faz extinguir o mundo.
* * * * * * * * * * * * * * * * 
Vocabulário:
Atacadores – Cordão que se enfia em ilhós para amarrar espartilhos, calçados.
Despromoveria – reduziria, rebaixaria.
Minimozito – muito pequeno.
Peúga – meia curta.


Fonte:
Mia Couto. O menino no sapatinho. Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2013.

A. A. de Assis (Era um tempo e tanto) Parte 1


01.
Ouço ainda o canto
de um velho carro de boi.
Era um tempo e tanto.

02.
Memórias, memórias.
Volta e meia volta a minha
me contando histórias.

03.
Passeio ao passado.
Passe livre pra quem curte
recurtir saudade.

04.
Suave chegava
o som de uma serenata.
O luar luava.

05.
Ouvi gramofone,
ouvi discos de vinil.
Ouvi sabiás.

06.
Bem-traçadas linhas,
acanhadas confissões.
As cartas de amor.

07.
Eram tão mamães
as cantigas de ninar.
Tão mamães os colos.

08.
Jipe, jardineira,
teco-teco, DC-3.
Pioneiros chegando.

09.
Semente na mão.
O pai plantando o futuro
do filho doutor.

10.
O pilão de milho,
o moinho de café.
Chuveiro de balde.

11.
Prosa na cozinha.
Requentando a canja,
recontando casos.

12.
A Páscoa, o Natal,
a festa do Padroeiro.
Famílias à mesa.

13.
Tardes de verão.
Vizinhança na calçada
pondo o assunto em dia.

14.
Será que ainda contam
histórias de era uma vez?
Conta mais, Dindinha.

15.
Hoje o hoje é hoje,
amanhã já será ontem.
Tudo assim, num zás.

16.
Do vapor ao jato.
Súbito o mundo virou
de ponta-cabeça.

17.
Voar era o sonho,
até que o sonho voou.
O céu é das asas.

18.
Chaplin, Pavarotti,
Gandhi, Churchill, Luther King.
Riquíssimo século.

19.
Garrincha e Pelé.
Depois deles nunca mais
houve igual olé.

20.
Faz tempo houve um tempo
em que a gente olhava o céu.
Via e ouvia estrelas.

21.
Repicam os sinos.
Os mesmos que os meus ouvidos
de menino ouviram.

22.
Ele na primeira,
eu na derradeira infância.
O bisneto e o biso.

23.
Dedão destroncado,
braço preso na tipoia.
Garoto levado.
-----------------------------------
Continua...

Fonte:
A. A. de Assis. Era um tempo e tanto. (triversos). Ed. Do Autor, 2021.
Ebook enviado pelo autor.

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita) A ambientação em textos históricos


Textos históricos, ficcionais ou não, são dos mais procurados pelos leitores, afinal a História com “H” maiúsculo nos oferece algumas das mais interessantes histórias de amor, poder, traição, ódio. Julio Cesar, Cleópatra, Arthur, Napoleão, Joana D’Arc, reis, papas e lendas são personagens extremamente ricos e conhecidos do público leitor, convertendo-se em personagens muito produtivos para a literatura contemporânea.

Entretanto, quem se aventura a escrever um texto histórico deve ter alguns cuidados com o enredo e a ambientação, pelo bem da verossimilhança. O curioso é que em relação ao enredo alguns artistas fazem o que se chama metaficção historiográfica, combinando de modo irreal os fatos da história e por vezes inclusive modificando-os (Jô Soares, Tarantino). Se isso no começo espantou os leitores e espectadores, hoje é considerado característica da cultura pós-moderna.

Mesmo nesses casos, porém, é fundamental que a ambientação seja verossímil. Por mais que o artista esteja recriando os fatos da segunda guerra, por exemplo (como Tarantino em Bastardos Inglórios), não pode de uma hora para outra aparecer alguém com um telefone celular, ou alguém ouvindo Lady Gaga, ou alguém comentando sobre Barack Obama, ou alguém de minissaia.

Nesse sentido, para escrever um texto histórico procure se informar sobre a cultura da época que seu texto quer retratar: os costumes, a moda, o turismo, a gastronomia. Mas procure se informar com textos e documentos da época, não a partir de textos de outros escritores sobre a época, pois sempre que um autor contemporâneo resgata o passado, ele o faz com o olhar contemporâneo.

Claro que alguns se esforçam para tornar a ambientação mais realistas, outros não se preocupam nada com isso (como os blockbusters históricos de Hollywood, em que as mulheres têm cabelos bem cortados, sobrancelhas aparadas e axilas depiladas), mas a verdade é que é impossível dissociarmos totalmente o tempo que vivemos, seus valores, seu passado, seus aprendizados, do tempo representado.

Lembre-se, por fim, de que a língua também é parte da cultura e também se modifica com o tempo. O próprio vocabulário das personagens precisa ser adequado à época: tenha cuidado com gírias, regionalismos ou construções comuns hoje, mas não utilizadas na época de ambientação do texto.

Textos históricos contemporâneos e textos históricos clássicos A literatura tem uma tradição milenar, então podemos ler textos escritos em épocas históricas, como as revoluções francesas, a formação das nações, das repúblicas, etc. Esses textos são clássicos de Balzac, Stendhal, Walter Scott, Goethe, Machado, e são excelentes fontes de aprendizado para quem deseja reconstruir determinada cultura de época.

Mais comuns, porém, são textos escritos em uma época e que retomam épocas anteriores. Eça de Queirós, por exemplo, escreveu o ótimo Ilustre Casa de Ramires, sobre a formação de Portugal, voltando aos anos 1100. Embora seja um texto antigo (escrito nos anos 1800), ele não é autêntico na representação do passado.
* * * * * * * * * * * * * * * *  
Este material é parte da Oficina de Criação Literária Online.  
Inscrições abertas.
http://www.oficinaliterariaonline.com.br

Fonte:
Texto enviado por Marcelo Spalding.

Coletânea A Lágrima e o Tempo (Participe!!! Prazo: 15 de fevereiro)


Queremos convidar você e seus amigos a participarem de nossa Coletânea A Lágrima e o Tempo (Tema sugerido por: Francisco Guilherme Torres da Silva, Marcelo de Azevedo Oliveira e Maria Luiza).

As inscrições, que já estão abertas, podem ser feitas até o dia 15 de fevereiro. Veja mais informações abaixo!

Para esta Coletânea buscamos textos sobre o Amor e o Desamor. Amores atuais e amores passados que causam lágrimas de Felicidade e/ou de Dor; amores de primavera; amores correspondidos; amores perversos; amores de vidas opostas; amores que viraram saudades ou raiva/ódio. Amores que causaram lágrimas que o tempo se incumbiu de secar.

Os textos poderão ser de qualquer gênero (Poesia, Cordel, Trova, Haikai, Conto, Crônica, Roteiro, etc.), pois o objetivo é termos uma obra “monotemática e multiestilo”.

Poderão participar Escritores, Poetas, Contistas e Cronistas maiores de 18 anos de qualquer nacionalidade, residentes no Brasil ou no exterior com documentação brasileira, e seus trabalhos deverão ser obrigatoriamente escritos em língua portuguesa (o que não impede o uso de termos estrangeiros no texto).

Conheça todos os detalhes no link https://bit.ly/3abN843 , onde há o formulário de inscrição.

Nessa Coletânea os Artistas Plásticos e Designers de capa, também podem participar, enviando sugestões de Capa para a Coletânea.

Conheça todos os detalhes no link https://bit.ly/3qWR8fk

Já recebemos várias inscrições e ainda estamos aguardando ansiosamente a sua!

Importante lembrar que sua participação é Gratuita.

Após recebermos os Textos, faremos uma seleção/avaliação dos melhores e publicaremos um livro com eles. Essa Coletânea ficará à venda na Loja Online da PerSe, com impressão sob demanda, para quem quiser adquiri-la.

Como dissemos, sua participação não terá nenhum custo!

Você encontra todos os detalhes para sua inscrição nos links abaixo:

1) Quero enviar meu texto: https://bit.ly/3abN843​

2) Quero enviar sugestão de capa: https://bit.ly/3qWR8fk

Compartilhe com o mundo as histórias de Amor ou Desamor que você viveu ou presenciou. Inscreva-se já!

Ah... se quiser convidar seus conhecidos para participar também, fique à vontade... basta repassar esse e-mail.

Forte abraço,
Equipe Apparere

Fonte:
Projeto Apparere (www.apparere.com.br)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 471

 


Gregório Duvivier (Ter amigos demais é quase igual a não ter amigo nenhum)


Tem poucos, raros amigos  — o homem atrás dos óculos e do bigode.” O verso sempre me apavorou. Sempre quis ter muitos, vastos amigos, inúmeros, incontáveis, 1 milhão de amigos, como Roberto Carlos, pra bem mais forte poder cantar.

Poucos, raros amigos”, reitera Drummond, e eu imaginava um pobre homem preso eternamente àquele início de festa em que só chegou um casal ou àquele fim de festa em que só sobrou um casal.

O inferno são os outros”, diz o personagem de Sartre sobre a companhia obrigatória de duas pessoas, e entendo a agonia dele, não porque fosse melhor ficar só, mas porque eram só duas pessoas. “O inferno são poucos outros”, deveria ter concluído o personagem.

Não há solidão pior que a companhia de apenas um vizinho no elevador, de dois primos distantes no Natal, de só três espectadores numa peça. Poucos outros são o inferno, muitos outros são o Carnaval.

Lembro a história de uma amiga que foi estudar na Alemanha. Depois de algumas semanas solitárias em que seus olhares cúmplices davam n’água, finalmente conseguiu se aproximar de uma colega local, com quem trocou um lápis, um comentário maldoso e, finalmente, algumas risadas.

Acho que esse é o começo de uma bela amizade”, pensou ela, como Bogart. Mas “Casablanca” se passa num bar no Marrocos, e não numa faculdade alemã — onde tiveram início poucas, raras amizades.

No dia seguinte, aos sorrisos, a suposta amiga alemã passou a evitá-la. Trocou de lugar na sala, parou de trocar olhares e, ao encontrá-la na rua, chegou a trocar de calçada. “O que foi que fiz de errado?”, pensou nossa conterrânea. Depois de algum tempo, tomou coragem para interpelar a colega.

A gente estava se aproximando e você sumiu”, ela disse. “Desculpe”, explicou a alemã, “é que já tenho amigos o bastante”. E prosseguiu. “Você parece legal, mas a gente estava quase ficando amiga, e, se isso acontecesse, teria que ir à sua festa de aniversário, ao lançamento do livro da sua mãe. Fiz as contas e descobri que não tenho tempo para mais nenhum amigo.

Na época achei cruel, uma história de terror alemã. Hoje entendo a amiga. O inferno é ter amigos demais, que é quase igual a não ter amigo nenhum.

Nos últimos meses, tenho gostado de falar apenas com os amigos de que gosto muito. “Tem poucos, raros amigos — o homem atrás da máscara e do face shield.” É bom também.

Fonte:
Folha de São Paulo. Opinião. 11 de agosto de 2020.

Edy Soares (Cristais Poéticos) VII

EPÍLOGO

Já sem querer mudar o mundo,
Sinto-me apenas um sentinela,
Um simples vigia.

Arrisco olhares pela janela.
É imenso, é profundo
O abismo da cidade fria.

Nem frestas, nem lampejos,
Nem luz no fim do túnel.
Até me fraquejo!
Nada vejo; nada espero!

Ao que me parece,
No intervalo de cada prece,
Assim como as mentes,
As ruas ficaram vazias.

Sem luta, sem luto,
Sem recompensa,
Se finda a história.

Não há música,
Ninguém toca,
Ninguém mais escuta,
Não há mais, sequer,
Quem movimente a batuta.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

JANGADEIRO

Jangadeiro na noite escura,
Sem vela, sem armadura,
Sem remo, perdeu o norte.
Tá entregue ao acaso e à sorte.

Jangada que sob os pés se desfaz,
Socorro que não chega mais,
Pois a esquadra perdeu seu dono,
E os fuzileiros caíram no sono.

Tempestades que trazem medo,
Mares de céu cinzento,
Jangadeiro pede socorro,
À deriva vai noite adentro.

Na terra, ficou sem chão;
No mar, quase sem jangada
à procura de peixe ou pão,
Perdeu-se da enseada.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O SILÊNCIO

Silenciaram-se os sinos e buzinas,
O trem não mais saiu da estação.
Folhas vagam sopradas nas calçadas,
Faz algum tempo...
Muito tempo, desde aquele último clarão.

Da janela, nunca mais trancada,
A vista da rua gélida, fantasma.
Nada que tenha vida ou movimento,
A não ser coisas que o vento ainda sopra.

Imagens na memória, longínquas,
De pessoas sentadas na praça,
E gritos infantis nunca mais ouvidos,
Somente o ruído do vento que passa.

A lua...
Ah! A lua parada no céu,
Até o sol, não mais movimenta,
Parece que a terra agarrou em sua órbita,
Nem sei se é ela, ainda um planeta.

Apalpo nas coisas, me apalpo a toa,
Que susto!...
Nada sinto! Nada sinto!
Estou abstrato, não toco nem grito,
Não tenho um formato, tá tudo esquisito.

Pouco a pouco arisco, arrisco um grito,
Nada sai da garganta, me vem um arrepio!
Não há marcação de tempo, só ouço o vento,
Não há mais dia ou noite... Ficou infinito.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

QUANDO A ALMA SE VAI

Um dia a alma acorda,
Bate asas e vai-se embora.
Aqui ela deixa apenas
Saudades nos olhos que choram.

Se vai pra lugar distante,
Repousar em outras esferas,
Preparar, talvez, lugares
Pra outras que aqui esperara.

De onde veio é incógnita,
Aonde vai não se sabe.
Se encontra lugar melhor,
Em nosso pensar não se cabe.

Se aonde vai é eterno,
A alma não é pequena,
Mas grande se prende ao fato
De que a vida aqui vale à pena.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

RECOMEÇO

 Eu só queria
Colher a alegria
Que têm as crianças
E guardar... Pra se um dia
Faltar esperança
Por onde eu passar.

Eu só queria
Colher, da flor,
O perfume que exala
E levá-lo na mala,
Pra entregar a quem for,
Onde o amor faltar.

Eu só queria
Colher, dos passarinhos,
O canto que alegra
E espalhá-lo na terra,
Quando o homem não tiver
Mais ânimo pra cantar.

Eu só queria
Colher, dos anciãos,
A paz e a sabedoria,
Pra se algum dia
Aos que, por ganância,
O coração se fechar.

Eu só queria
Mostrar pra esse povo,

Que quando acabar
O que Deus criou,
Por que o homem não cuidou,
Quem colheu a semente
Fará novamente
Brotar, desse chão,
Uma nova estação
E um recomeço, de novo.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

REBANHO PERDIDO

Estourada boiada, sem rumo,
Berrante que não ecoa,
Manada que, sem um norte,
Se perde correndo à toa.

Sem um campeiro nobre,
Condutor que conhece a trilha,
Tem lugar, tantos errantes,
Que entregam o rebanho à matilha.

Não andam mais, perfilados,
Dispersos e em desatino,
Pisoteia-se toda a manada.

Qual rebanho que, sem campeiro,
Em trote, vão sem destino
Ou perdidos em disparada.

Fonte:
Edy Soares. Flores no deserto. Vila Velha/ES: Ed. do Autor, 2015.
Livro enviado pelo poeta.

Katherine Mansfield (A Aula de canto)


Com o desespero – um desespero frio e cortante – cravado no fundo do coração como uma faca cruel, a srta. Meadows, de beca e capelo e portando uma pequena batuta, percorreu os corredores frios que levavam ao salão de música. Garotas de todas as idades, coradas pelo ar e transbordando aquela alegre animação que se sente ao disparar para a escola numa bela manhã de outono, corriam, saltavam, esvoaçavam; das salas de aula vazias vinham vozes matraqueando velozes; um sino tocou; uma voz como de pássaro gritou "Muriel". E então da escada veio um tremendo bum-bum-trabum, Alguém tinha deixado cair os halteres.

A professora de Ciências deteve a srta. Meadows.

- Bom diii-a - exclamou com sua fala arrastada, suave e afetada. - Não está frio? Parece até inverno.

A srta. Meadows, comprimindo a faca, fitou com ódio a professora de Ciências. Tudo nela era doce, pálido, como mel. Não seria surpresa ver uma abelha presa no emaranhado daquele cabelo louro,

- Cortante - respondeu a srta. Meadows carrancuda,

A outra abriu seu sorriso meloso.

- Você parece gelaaaa-da - disse. Seus olhos azuis se abriram muito; tinham um brilho zombeteiro. (Teria notado alguma coisa?)

Ora, nem tanto assim - a srta. Meadow disse – respondeu ao sorriso da professora de Ciências com uma rápida careta e seguiu adiante...

As Turmas Quatro, Cinco e Seis estavam reunidas no salão. O barulho era ensurdecedor. No estrado, junto ao piano, estava Mary Beazley, a favorita da srta, Meadows, que tocava o acompanhamento. Estava girando a banqueta do piano. Quando viu a srta, Meadows, soltou um sonoro "Pssss, meninas!" de advertência, e a srta, Meadows, as mãos enfiadas nas mangas, a batuta debaixo do braço, desceu pela passagem central, subiu os degraus, virou-se bruscamente, pegou o suporte metálico da partitura, plantou-o diante de si e deu duas batidas secas com a batuta, exigindo silêncio.

- Silêncio, por favor! Já!

E, sem se deter pra ninguém, seu olhar passeou por aquele oceano de blusas de flanela colorida, onde se agitavam mãos e faces rosadas, tremulavam tiaras de borboleta e se espalhavam pautas musicais. Ela sabia muito bem o que estavam pensando. "Meady está brava," Ora, que pensassem! Suas pálpebras estremeceram; empinou a cabeça, em desafio. Que importância tinha o que aquelas criaturas pensavam para quem estava ali sangrando até a morte, ferida no coração, no fundo do coração, por uma carta assim -... "Sinto cada vez mais que nosso casamento seria um erro. Não que eu não ame você. Amo até onde me é possível amar uma mulher, mas, para dizer a verdade, cheguei à conclusão de que não sou homem de casar e a ideia de ter um lar me enche apenas de..." - e a palavra "aversão" estava levemente apagada e por cima estava escrito "pesar".

Basil! A srta. Meadows avançou empertigada até o piano. E Mary Beazley, que aguardava por esse momento, curvou-se, os cachos lhe caíram na face enquanto murmurava "Bom dia, Srta. Meadows" e, mais do que estender, fez avançar até sua professora um belo crisântemo amarelo. Esse pequeno ritual da flor vinha se passando fazia uma eternidade, pelo menos um semestre e meio. Fazia parte da aula, tanto quanto abrir o piano. Mas nesta manhã, em vez de pegá-lo, em vez de colocá-lo no cinto enquanto se inclinava para Mary e dizia "Obrigada, Mary. Quanta gentileza! Vire na página 32", qual não foi o horror de Mary quando a srta. Meadows ignorou totalmente o crisântemo, não respondeu à saudação e disse numa voz fria como gelo "Página 14, por favor, e marque bem os acentos".

Momento desconcertante! Mary enrubesceu até lhe virem lágrimas aos olhos, mas a srta. Meadows voltara ao pedestal da partitura; sua voz ressoou por todo o salão.

- Página catorze. Vamos começar com a página catorze. "Um lamento." Agora, meninas, vocês já devem conhecê-lo. Vamos a ele todas juntas, não por partes, mas todas juntas. E sem expressão. Mas cantem com muita simplicidade, marcando o tempo com a mão esquerda.

Ergueu a batuta; bateu no pedestal duas vezes. Então entrou Mary com a nota de abertura; então entraram todas aquelas mãos esquerdas, marcando no ar, e entoaram aquelas vozes jovens e lamentosas:

Logo! Ah, logo murcham as rosas do prazer;
E breve se rende o outono à tristeza invernal.
Veloz! Ah, veloz o alegre compasso musical
Passa pelo ouvinte e vai desaparecer.

Bons céus, o que podia ser mais trágico do que esse lamento! Cada nota era um suspiro, um soluço, um gemido de imensa dor. A srta. Meadows ergueu os braços em sua beca larga e começou a reger com as duas mãos. "Sinto cada vez mais que nosso casamento seria um erro...", marcava ela. E as vozes gritavam: Veloz! Ah, veloz. O que se apoderara dele para escrever uma carta assim! O que levara a isso! Saiu do nada. A carta anterior tinha sido, toda ela, sobre uma estante de carvalho escurecido que ele comprara para "nossos" livros e um "belo aparadorzinho" que tinha visto, "muito alinhado, com uma coruja entalhada num suporte, segurando nas garras três escovas de chapéu". Como ela sorrira àquilo! Tão coisa de homem achar que alguém precisaria de três escovas de chapéu! Passa pelo ouvinte, cantavam as vozes.

- Mais uma vez - disse a srta. Meadows. - Mas agora era partes. Ainda sem expressão.

Logo! Ah, logo. Somando-se a tristeza dos contraltos, era até difícil evitar um estremecimento. Murcham as rosas do prazer. Na última vez em que veio vê-la, Basil trazia uma rosa na lapela. Como estava bonito naquele temo azul-vivo, com aquela rosa vermelho--escuro! E ele sabia disso. Não tinha como não saber. Primeiro alisou o cabelo, depois o bigode; ao sorrir, os dentes faiscaram.

- A esposa do diretor vive me convidando para jantar. Uma amolação. Nunca tenho uma noite só para mim naquele lugar.

- Mas você não pode recusar?

- Oh, para um homem em minha posição isso cairia bem ser antipático.

O alegre compasso musical, lamentavam as vozes. Os salgueiros, do lado de fora das janelas altas e estreitas, ondulavam ao vento. Tinham perdido metade das folhas. As pequeninas ainda restantes se retorciam como peixes num anzol. "... Não sou homem de casar..." As vozes tinham se calado; o piano aguardava.

- Muito bom - disse a srta, Meadows, mas ainda num tom tão frio e estranho que as meninas mais novas começaram a se sentir realmente assustadas.

- Mas, agora que já conhecemos, vamos cantar com expressão. Pensem nas palavras, meninas. Usem a imaginação. Logo! Ah, logo - exclamou a srta. Meadows. - Deve irromper - um forte alto, vigoroso - um lamento. E então, no segundo verso, tristeza invernal, a tristeza tem de soar como se soprasse um vento gelado. Tristee-eeza - falou de maneira tão sinistra que Mary Beazley em seu banquinho contorceu as costas.

- O terceiro verso deve ser um crescendo só. Veloz! Ah, veloz o alegre compasso musical. Quebrando na primeira palavra do último verso. Passa. E então na palavra pelo vocês começam a morrer... a se extinguir… até que vai desaparecer não passe de um sussurro bem fraquinho... Podem ir devagar o quanto quiserem no último verso. Agora, por favor.

De novo as duas leves batidinhas; ergueu novamente os braços. Logo! Ah, logo. "... e a ideia de ter um lar me enche apenas de aversão –”  Era aversão o que ele tinha escrito. Era igual a dizer que o noivado deles estava definitivamente rompido. Rompido! O malvado! As pessoas já tinham se surpreendido quando levou noiva. A professora de Ciências no começo não acreditou. Mas ninguém se surpreendera mais do que ela. Estava com trinta anos. Basil, com vinte e cinco. Tinha sido um milagre, um verdadeiro milagre, ouvi-lo dizer voltando da igreja naquela noite muito escura: "Sabe, de alguma maneira eu me apaixonei por você".

E pegara a ponta de seu boá de plumas de avestruz. Passa pelo ouvinte e vai desaparecer.

- Repitam! Repitam! - disse a srta. Meadows. – Mais expressão, meninas! Outra vez!

Logo! Ah, logo. As mais velhas estavam de cor escarlate; algumas das mais novas começaram a chorar. Grandes pingos de chuva se arremessavam contra as janelas e dava para ouvir os salgueiros sussurrando "...não que eu não ame você...".

"Mas, meu querido, se você me ama", pensou a srta. Meadows, "não me interessa o quanto, Pode ser bem pouquinho". Mas sabia que ele não a amava. Nem se deu ao trabalho de apagar totalmente aquela palavra "aversão", para que ela não visse! E breve se rende o outono à tristeza invernal. Teria de deixar a escola também. Jamais conseguiria encarar a professora de Ciências nem as meninas, depois que soubessem. Teria de sumir em algum lugar. Passa. As vozes começaram a morrer, a se extinguir, a sussurrar... a desaparecer.

De repente a porta se abriu, uma menina de azul veio alvoroçada pela passagem, baixando a cabeça, mordendo os lábios e girando a pulseira prateada em seu pulsinho vermelho. Subiu os degraus e parou diante da srta. Meadows.

- Bem, Mônica, o que é?

- Oh, por favor, srta. Meadows - disse a menina ofegante. - A srta. Wyatt quer vê-la na sala da diretoria.

- Muito bem - respondeu a srta, Meadows e se dirigiu às meninas. –  Deixarei a cargo de vocês que falem baixo enquanto eu estiver fora.

Mas elas estavam abatidas demais para fazer qualquer outra coisa. A maioria assoava o nariz.

Os corredores estavam frios e silenciosos; os passos da srta. Meadows faziam eco. A diretora estava sentada à escrivaninha. Não ergueu os olhos de imediato. Estava como sempre desembaraçando os óculos, que haviam ficado presos no laçarote rendado.

- Sente-se, srta. Meadows - disse muito gentil. E então pegou um envelope cor-de-rosa de sob o mata-borrão. - Mandei chamá-la porque acabou de chegar este telegrama para você.

- Um telegrama para mim, srta, Wyatt?

Basil! Ele tinha se suicidado, concluiu a srta. Meadows. Estendeu ligeiro a mão, mas a srta. Wyatt reteve o telegrama por um instante.

- Espero que não sejam más notícias - disse mais do que gentil.

E a srta. Meadows abriu de um rasgão.

"Desconsidere carta, devia estar louco, comprei chapeleira hoje - Basil", leu ela. Não conseguia desgrudar os olhos do telegrama.

- Espero que não seja nada muito grave - disse a srta. Wyalt inclinando-se para ela.

- Oh, não, obrigada, srta. Wyatt - corou a srta. Meadows. - Não é nada de ruim. É... - e soltou um risinho com ar de desculpa - é de meu noivo dizendo que... dizendo que...

Houve uma pausa.

- Entendo - disse a srta. Wyatt.

E outra pausa. Então:

- Você ainda tem quinze minutos de aula, não, srta. Meadows?

- Sim, srta. Wyatt.

Levantou-se. Quase correu para a porta.

- Oh, mais um minutinho, srta. Meadows - disse a srta. Wyatt. - Devo dizer que não aprovo que meus professores recebam telegramas no horário das aulas, exceto em casos de notícias muito graves, como uma morte - explicou a srta. Wyatt - ou um acidente muito sério ou algo assim. Como sabe, srta. Meadows, as boas notícias sempre podem esperar.

Voando nas asas da esperança, do amor, da alegria, a srta. Meadows se apressou de volta ao salão, percorreu a passagem, subiu os degraus, acercou-se do piano.

- Página 32, Mary - disse página 32 ~ e, pegando o crisântemo amarelo, segurou-o diante dos lábios para ocultar o sorriso.

Então virou-se para as meninas e deu uma batida seca com a batuta;

- Página trinta e dois, meninas. Página trinta e dois.

Aqui viemos hoje cobertas de flores,
Com cestos repletos de frutas e fitas,
Para celebraaaar...

- Parem! Parem! - gritou a srta. Meadows. - Está horrível. Está pavoroso.

Olhou radiante para suas meninas.

- O que há com vocês? Pensem, meninas, pensem no que estão cantando. Usem a imaginação. Cobertas de flores. Cestos repletos de frutas e fitas. E celebrar.

A srta. Meadows se interrompeu.

- Não fiquem com ar tão triste, meninas. É para soar alegre, caloroso, exultante. Celebrar. Mais uma  vez. Rápido. Todas juntas. Agora!

E nesse momento a voz da srta. Meadows se sobrepôs a todas as outras - cheia, profunda, resplandecendo de expressão.

Fonte:
Os melhores contos de Katherine Mansfield. Porto Alegre/RS: LP&M, 2016.