sábado, 9 de junho de 2012

Wagner Marques Lopes / MG (Rio + 20) 3


Nilto Maciel (Com Unhas e Dentes)


Há uma semana Dalila virava a cara para Aleodoro. Se ele fazia pergunta, ela não dava resposta. Ou respondia “com quatro pedras nas mãos”. Por qualquer motivo mandava os cinco dedos na cara dos filhos. E deixava o arroz queimar, esquecia de descongelar a carne, quebrava pratos na pia.

Aleodoro não pedia explicações. Sabia muito bem a causa de tanta birra. Andava cansado, aborrecido, sem vontades. Tantos anos de trabalho, e nem uma casa onde morar. Tanta dedicação à família, e aqueles filhos vagabundos, idiotizados. Tantos sonhos, e só desilusões.

Poderia muito bem pedir desculpas pelas palavras ásperas, pela cerveja em excesso, pela falta de carinho. Mas não queria se render, se humilhar, virar cachorrinho.

Aleodoro lia pedaços do jornal, imaginava Dalila pintando unhas. Não, aquilo não eram horas para pintar unhas. Resolveu tomar uma cerveja. A goles lentos, passaria mais uma hora. Tempo para Dalila voltar.

Não, aquela mulher estava se excedendo. Melhor dar um basta naquilo. Ora, nem o almoço fizera! Um desaforo! “E já estou de saída. Vou ao salão de beleza”.

Os filhos, aqueles inúteis, não sabiam de nada. Talvez Dalila estivesse na cozinha. Ou na vizinha. Por que não batia à porta do vizinho?

Absurdo um homem não almoçar, depois de quatro horas de trabalho! “Então arranje uma cozinheira”.

Rasgou o jornal, desligou a televisão, bebeu um trago de conhaque. Onde andava Dalila? Não podia estar ainda no salão. E se tivesse sido atropelada na rua?

Apavorado, o homem tomou outra dose e saiu. Devia ir primeiro ao salão ou aos hospitais? Talvez à polícia. E apressou o passo. Não, a desgraçada de sua mulher com certeza pintava unhas e dentes. E ria dele, o cachorrinho faminto. Melhor tomar umas cervejas regadas a fumegantes bifes acebolados. E só voltar para casa de madrugada.

Decidido a vingar-se, parou diante do primeiro bar. Bêbados gritavam, gargalhavam, expandiam-se. Todos livres de suas megeras domésticas.

Aleodoro ia sentar-se, quando uma gargalhada medonha explodiu a seu lado. Olhou: a cena lhe pareceu impossível: Dalila, cercada de três senhores, afetava toda a alegria do mundo, os dentes luzindo na noite.

Fonte:
Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília:Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

Laércio Borsato /MG (Sonetos Avulsos)


MINHA VOVÓ MATERNA

 A MINHA memória vagueia na estrada,
 De nossa casa até a de vovó Suzana!
 Comumente, lá íamos, nos fins de semana;
 Só pensávamos na hora da chegada!

 Eufóricos, já na ultima subida,
 Ouvíamos o marulhar da cachoeira;
 Logo avistávamos, felizes da vida,
 No caramanchão da varanda, a videira!

 Uma vez chegamos com roupa molhada,
 Pés sujos, pela lama da estrada;
 Pois fomos surpreendidos pela chuva.

 Vovó subia vagarosamente do pomar,
 Com todo cuidado, o avental a segurar,
 Onde trazia lindíssimos cachos de uva!

POEMA DA NOITE SEM FIM

 AS HORAS não passam, noite infinda.
 A folha cai do ramo ainda umedecida.
 Do vento na vidraça a vibração não finda...
 A rosa vai se abrindo! Milagre da vida!

 Penso no espaço, cada hora vivida...
 Lembro-te com ternura: Te amo ainda!
 Quando partiste, tu choravas comovida,
 Naquele momento, como te achava linda!

 Minha alma esperou amanhecer o dia!
 No jardim mais uma rosa branca abria...
 Pensei presenteá-la, nalguma despedida!

 Comecei a entoar baixinho, um belo hino...
 Veio-me a lembrança os tempos de menino,
 Quando se desconhece, fases duras da vida!

Fonte:
Artigo publicado no site de Bernardo Trancoso, http://www.sonetos.com.br/sonetos.php  

Anibal Beça (Entre a Caça e o Caçador o Velho Soneto Resiste)


 Navegando dia desses pela Internet, aventura de capitão de primeiro-curso, dei de cara – dentre as formalidades mais ousadas do ponto de vista plástico-visual e de linguagem – com a página de um poeta cibernético. E na telinha do meu pentium, solenemente estampado, lá estava um velho soneto novo. Ou seria um novo soneto velho?

 As duas proposições fizeram com que eu saísse do momento sistêmico virtual para a minha realidade real: - Peraí, mas a poesia não morreu? E o velho álbum de poemas das normalistas do meu tempo ainda existe? Onde? E as moiçolas lânguidas dos saraus?

 As frases soavam como versos Foi aí que me dei conta, memória de declamador, de que eram versos mesmo, que ficaram bem guardados, do poeta Fernando Mendes Viana, pinçados do seu belíssimo "Alerta ecológico".

 Fernando, nesse poema, denuncia e questiona a nossa vida atual, programada em escala industrial, que dizima poetas e borboletas. Então o poeta seria um ser em extinção, sem lugar nessa Nova Ordem Mundial. Diante deste paradoxo, o poeta, começa a perguntar a si e aos outros, à procura dos culpados:

 "Afinal de contas não acabaram os domingos,
 nem acabaram as adolescentes, nem os piqueniques.
 Há menos ilusões, é bem verdade.
 E os jardins e as praças estão mais poluídos.
 Mas ainda há poetas e borboletas.
 Por que nos caçam em extermínio metódico?"

 A pergunta do poeta se encorpa com a deste que escreve a ti, leitor: Por que caçar Poetas? E borboletas? No poema, poeta e borboleta se confundem num só gênero do reino animal, mas com a ressalva de que

 "algumas variedades acabaram: o poeta romântico e
 a borboleta de lentas e grandes asas como leques azuis.
 Transformados de tuberculosos em burocratas e
 de malditos em bandejas, professores, críticos,
 homens de propaganda, pires, pratos, medalhões de souvenirs.
 Somos a esdrúxula atração de alunos e turistas.
 Espetados atrás de vitrines ou esmagados 
 - entre as páginas gordas de um dicionário ou
 Um vademecum de tabus e códigos –

 As asas do poeta e da borboleta viram pó.
 Mas para os poetas há mais esperança
 Do que para os lepidópteros:
 Vendemos menos".

 A sentença sardônica do poeta cai como um paradigma: não se edita mais poesia por que poesia não vende e, por conseguinte, se não vende, morreu. Bom, dessas mortes anunciadas, já estamos acostumados, aliás, desde que fomos expulsos da República de Platão. Por isso, continuamos mortos, redivivos.

 O surpreendente dessa discussão, o tema que nos interessa aqui, é mesmo a vitalidade desse poema de 14 versos, que desde a sua invenção (atribuída ao poeta siciliano Giacomo da Lentino, 1180-1190?) vem caminhando e construindo sua história com um charme irrefutável. É verdade que ele foi esnobado pelos românticos, mas logo os parnasianos fizeram dele seu tour-de force tão exacerbado, que os modernistas, em sua maioria, entre muxoxos e mugangas, deixaram-no à margem mas, imediatamente, a geração de 45 o entronizava de novo.

 Acredito que a perenidade da forma esteja ligada ao seu modo de propor o "claro enigma" com seu enunciado, passando pela mensagem até o chamado insight do poema ou como queriam os parnasianos: a chave de ouro. Seja na forma petrarquiana, estrambótica ou inglesa, o velho soneto vem reagindo e sendo experimentado até por correntes da vanguarda. Claro que a linguagem e sua sintaxe são outras.

 Mas a questão remete a um outro velho imbroglio. A poesia deve se voltar para as velhas formas ou abandoná-las por ousadias ditas modernas? Para ilustrar esse affaire tomo declarações de vários poetas, que não por acaso vêm de encontro ao que penso e professo. 

 Formalmente, a poesia não poderia chegar a ser mais livre do que já foi até hoje. Todas as experiências com a palavra organizada no conjunto poético já foram tentadas. Diante desse esgotamento estético, percebe-se uma volta, lenta e gradual, à poesia de forma fixa, à rima e à métrica, ou seja, o retorno àquela herança de mais de vinte séculos de prática poética ocidental e que não tem sentido ser esquecida e muito menos relegada.

 Para o poeta, ensaísta e tradutor (Baudelaire, Eliot, Dylan Thomas) Ivan Junqueira, um dos representantes mais respeitados dessa corrente de pensamento, as vanguardas, sobretudo as que se desenvolvem fora do sistema da língua, aquelas que necessitam das muletas de outras modalidades artísticas, "tornam-se autofágicas e epigônicas, em sua busca pirrônica do novo pelo novo, o que levou um poeta como Eliot a exaltar o velho para que o novo pudesse sobreviver. É por isso que costumo dizer que não se pode "make it new" sem, em certo sentido, "make it old" e arremata citando Eliot: "não há o novo sem o antigo, mesmo porque o "tempo presente e o tempo passado estão ambos talvez presentes no tempo futuro, e o tempo futuro contido no tempo passado. (In "O estado do Maranhão",22/08/99, entrevista concedida ao poeta Luis Augusto Cassas).

 O fato é que as vanguardas se exauriram na busca do novo, ao ponto de, pelo cansaço, retornarem com nova leitura, no afã de extrair de tais formas, novos efeitos poéticos.

 Carlos Drummond de Andrade, em certo momento, inquirido a respeito do assunto, preferiu sugerir outra tarefa: "a de disciplinar o chamado caos moderno, a de pesquisar e estabelecer as leis da poética moderna, leis de gosto, de psicologia, de filologia, de ritmo e de métrica".

 Manuel Bandeira, que iniciou sua carreira poética com um soneto, nos revela em seu "Itinerário de Pasárgada"(ele que havia pregado a licensiosidade contra o "lirismo-funcionário-público), surpreendendo críticos e leitores pelo seu gosto em poesia, das formas tradicionais: "gosto das formas fixas porque elas são padrões estróficos de raro equilíbrio, vivazes, mnemônicos, porque satisfazem o meu gosto de ordem, de disciplina".

 Para Mário de Andrade, a poesia "se tornará cada vez mais livre, mas no sentido de libertação de escolas e de definições exclusivistas. Não se trata de voltar a processos de poética que jamais foram abandonados. Trata-se apenas de adquirir maior equilíbrio entre a realidade de um determinado estado-de-poesia e os elementos de poética que lhes sejam mais adequados".

 Citei quatro opiniões de grandes poetas brasileiros como poderia ter trazido as de outros poetas cidadãos do mundo e de outras línguas. A recomendação que se entrega, principalmente para os que se iniciam agora, é, dentre outras coisas, a de que não importa a forma escolhida para o seu poema. O que importa são as suas idéias, imagens, ritmo, apresentadas a tribo numa linguagem do nosso tempo.

 Para finalizar, volto ao nosso velho soneto novo e àquele, especialmente, estampado no site do cyberpoeta visitado, que me deslumbrou motivando e me empurrando a escrever este artigo e a um soneto que se segue depois deste.

 PARA FAZER UM SONETO
 Carlos Pena Filho

 Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
 e espere pelo instante ocasional.
 Neste curto intervalo Deus prepara
 e lhe oferta a palavra inicial.

 Aí, adote uma atitude avara:
 se você preferir a cor local,
 não use mais que o sol de sua cara
 e um pedaço de fundo de quintal.

 Se não, procure a cinza e essa vagueza
 das lembranças da infância, e não se apresse,
 antes, deixe levá-lo a correnteza.

 Mas ao chegar ao ponto em que se tece
 Dentro da escuridão a vã certeza,
 Ponha tudo de lado e então comece.

 *Carlos Pena Filho, poeta do azul como ficou conhecido, era pernambucano do Recife, autor de "O tempo da busca", "Memórias do Boi Serapião". Foi um renovador do soneto na temática e, sobretudo, na linguagem, carregada de oralidade, essencialmente musical e de forte apelo pictórico.

 SIMPLES SONETO 
 Anibal Beça

 Desejado soneto este que é escrito
 sem as firulas graves do solene,
 que leva na palavra o simples rito
 da fala cotidiana. Não condene

 no entanto, a falta de um estro especioso,
 nem de brega rotule esse meu vezo.
 Apenas sinta o som oco e poroso
 do fundo mar de anêmonas, o peso

 rarefeito das algas nos peraus.
 Essa cantiga filtra nossos medos,
 as culpas e os tabus, e dá-me o aval
para buscar o simples e em querê-lo

 ornamento de estética espartana
 na faxina ao supérfluo que se espana.

Fonte:
Artigo publicado no site de Bernardo Trancoso, http://www.sonetos.com.br/velhosoneto.php

Nelson Rodrigues (Boca de Ouro)


Boca de ouro é uma tragédia carioca em três atos escrita por Nelson Rodrigues em 1959.

 O chofer de um ônibus que Nelson Rodrigues pegava para ir almoçar na casa mãe tinha todos os 27 dentes de ouro. Orgulhoso de seu xodó, dizia sempre que os dentes eram de ouro maciço, 24 quilates. Impressionado com a história, o dramaturgo resolveu escrever uma peça que combinasse a dentadura dourada do motorista com uma personagem real do submundo carioca, o bicheiro Arlindo Pimenta. 

 Assim nasceu Boca de Ouro, o bicheiro de Madureira que mandou trocar todos os dentes brancos e perfeitos de sua boca por pivôs de ouro puro. Malandro e cheio da legítima ginga carioca, Boca de Ouro nasceu numa pia de gafieira e seu primeiro banho foi com água de bica. Morre de complexo por causa da sua origem.

 Apesar da história tipicamente brasileira, a estréia de Boca de Ouro, em 19 de outubro de 60, não fez muito sucesso. Os motivos são muitos, mas certamente o principal deles foi a atuação do diretor, Ziembinski, no papel-título. Era praticamente impossível para a platéia enxergar no polonês a figura de um malandro banqueiro do bicho, repleto de swing e malícia. 

 Outro problema enfrentado pela produção da peça foi a estréia em São Paulo, pela primeira e única vez em toda a carreira do dramaturgo. O público paulista não era o mais apropriado para assistir, pela primeira vez, àquela tragédia tipicamente carioca. O marasmo foi tanto que a terceira tragédia de Nelson Rodrigues não segurou nem três semanas no Teatro Federação, chamado depois de Cacilda Becker.

 Em janeiro de 61, Boca de Ouro ressuscitou com pompa e circunstância no Rio de Janeiro. Depois da interdição da censura, trancando por alguns meses a peça, e da estréia frustrada em São Paulo, a história do bicheiro ganhou nova dimensão pelas mãos do diretor José Renato e do ator Milton Morais, no papel de título. 

 Nelson Rodrigues, em Boca de Ouro, faz implicitamente o processo metafísico da violência, da vontade de poder, e sua lição é construtiva. Ele mostra a impossibilidade do homem de, pelo furor destrutivo, chegar a salvar-se. O ressentimento, como paixão existencial, e a raiva cega que dele decorre arrastam o ser humano para o abismo do aniquilamento da morte. O homem, sem dúvida, traz consigo, no mais íntimo de sua substância ontológica, a vocação da alquimia, a sede de transfiguração, o instinto que o leva a tentar a transformação do barro em ouro. Mas este milagre só se opera na medida em que o homem se aceita e se ama na sua fragilidade, na argila perecível e corruptível que ele também é, para além de qualquer ressentimento. Nesse instante, sem o saber, eis que encontra em suas mãos a pedra filosofal que o transfigura e lhe abre as portas da luz que não se apaga.

Classificação da peça

 O crítico de teatro Sábato Magaldi classificou a peça Boca de Ouro como tragédia carioca. O próprio crítico, porém, ressalva que essa classificação tem caráter didático, não pode ser considerada rigidamente, sob pena de empobrecer o universo do ficcionista, já que as características nunca se mostram isoladas.

 Sábato conclui: "Poucos dramaturgos revelam, como Nelson Rodrigues, um imaginário tão coeso e original, e com um espectro tão amplo de preocupações psicológicas, existenciais, sociais e estilísticas."

Características

O comportamento obsessivo, paroxístico do protagonista. Nelson Rodrigues não teme o exagero: seus personagens são prisioneiros de paixões avassaladoras. Tornam-se protótipos, já que o autor ultrapassa as conveniências realistas e os constrói com um vigor desmedido.

A morbidez que, no seu teatro, serve para aguçar a sensibilidade, abrindo desvãos psicológicos que de outra forma continuariam vedados, escondidos. Ele é "nosso primeiro dramaturgo a sublinhar de forma sistemática os comportamentos mórbidos da personalidade, coexistindo com as facetas consideradas normais".

 Mais um traço que acompanha a obra inteira: a ironia feroz (...) Os prazeres são sempre efêmeros, as alegrias escondem apenas uma realidade que não se desvendou ainda. Os desfechos irônicos e trágicos das peças remetem biograficamente às tragédias familiares, de que Nelson nunca se recuperou (por exemplo: o assassinato de seu irmão Roberto).

 Nelson Rodrigues é um mestre do "diálogo". Isento de literatice, seu diálogo é direto, enxuto, preciso, funcional. A linguagem é predominantemente coloquial.

Família e sexo: o que é socialmente transmitido como proibição, na esfera sexual e das relações afetivas, é sistematicamente violado. Neste sentido, o seu teatro constitui uma abordagem crítica à estrutura social brasileira, cujo sistema de relações e cujos valores de base têm sua aparente segurança abalada. Neste contexto se inserem os comportamentos de incesto (relação sexual entre parentes) e outras formas de relacionamento sexual culturalmente proibidas (entre pessoas do mesmo sexo, entre pessoas de raças ou classes sociais diferentes...) Na família, predomina uma aura de pudor e de repressão na esfera sexual, e o autor vai explicando a quebra de tabus familiares e sexuais, tais como a virgindade, a fidelidade, a intocabilidade entre os membros da família, o papel do pai e da mãe, e assim por diante.

A violência marca as relações inter-pessoais através de três situações típicas: a traição, o antagonismo e a exploração.

Crítica à imprensa: O teatro rodriguiano apresenta forte crítica às instâncias formadoras da opinião pública, sobretudo a imprensa, mostrando como e por que são construídos os fatos supervalorizados socialmente e como é falsa a neutralidade desses órgãos.

Estrutura

 Por ser praticamente toda embasada nas lembranças de dona Guigui, Boca de Ouro dá margem a muitas interpretações. A desunidade da peça, porém, é apenas aparente; em essência não há nenhuma contradição. As três versões para um mesmo assunto, o bicheiro, podem ter vários significados, mas certamente estão ligadas à própria condição psicológica da narradora no momento. 

 Por causa da mágoa de ter sido abandonada, dona Guigui constrói, de início, um Boca de Ouro fascínora. Capaz de matar só porque lhe lembraram sua origem, numa pia de gafieira. Assim que fica sabendo da morte dele, pelos próprios repórteres que foram entrevistá-la, a paixão de dona Guigui explode novamente e ela chega a omitir que Boca de Ouro assassinou Leleco, na segunda versão. Seu atual marido, porém, fica chocado com a coragem da mulher em declarar segredos do homem mais poderoso da região e ameaça ir embora de casa se ela continuar falando. Para preservar o casamento, dona Guigui dita ao repórter a última versão sobre o bicheiro, agora retratado como um "assassino de mulheres" que sacrificou Celeste. A narrativa de dona Guigui se interrompe quando Maria Luísa e Boca de Ouro vão para o quarto, e se passou bastante tempo, no qual aconteceu o assassinato do bicheiro, até a hora em que a grã-fina relatou a história para os jornalistas. 

 Se no 1° ato Boca mata Leleco ao ouvir o insulto contra a mãe e no 2° é Celeste quem assassina o marido, no 3° o crime volta a ser praticado pelo bicheiro, com a cumplicidade da amante, que usa um punhal. A dúvida fica com a platéia no final da peça. Dona Guigui mentiu sempre, nunca, por causa das circunstâncias? Qual a verdadeira versão? Pelas questões sem resposta que suscita nos espectadores, Boca de Ouro pode ser caracterizada como uma obra aberta.

 Nelson Rodrigues, na estrutura de sua peca, mostra, sem qualquer dúvida, a sua intenção de universalizar certas realidades inconsciente fundamentais, que Boca de Ouro representa. Tanto é assim que o personagem só aparece, como presença autônoma, na primeira cena, no dentista, quando manda arrancar todos os dentes sadios para substituí-los por uma dentadura de ouro. Neste gesto o personagem define, desde logo, com um vigor absoluto, o cerne de seu projeto existencial. Boca de Ouro escolhe aí o caminho da potência onipotente da força desmesurada e agressiva através da qual espera agarrar a invulnerabilidade a que aspira. Os dentes naturais são perecíveis, envelhecem e morrem. Seu poder de domínio triturador está limitado pelas travas insuperáveis da condição humana. Boca de Ouro, ao optar pela dentadura que lhe deu o nome, busca transfigurar-se e imortalizar-se pelo caminho da agressão primitiva, aquém ou além do bem e do mal. Nesta medida, coroado rei por si mesmo (corado nos dentes), sentado no trono de seu despotismo sem limite, o personagem transcende o subúrbio e se configura como herói da espécie, violento e terrível.

 Em virtude desta dimensão mítica é que Boca de Ouro, como ser autônomo, individual e individuado, já não mais aparece na peça. Ele existirá pelos olhos dos outros, terá as múltiplas faces que os outros lhe atribuem, será, além de si próprio, a encarnação das fantasias de onipotência que os outros, através dele, buscam exprimir. Esta é a linha psicológica pela qual a peça ganha unidade e profundidade, uma vez que os personagens: D.Guigui, Agenor, os jornalistas, a comparsaria que faz fila no necrotério, o locutor de rádio ao falar de Boca de Ouro, falam também de si e, ao criar a sua imagem mítica, se revelam nos seus sonhos de poder e despotismo. Os demais personagens ligados ao Boca de Ouro, e trazidos à cena pela narrativa de D. Guigui ao repórter, participam deste mesmo, desdobramento de planos psicológicos e, sendo vivos e autônomos, também representam focos de clarificação que iluminam o herói da peça e são por ele iluminado, desvendando, por último, a realidade interna da narradora que os faz viver.

 Qual será, por fim, o significado profundo da peça de Nelson Rodrigues, e que alcance ético poderá ter? A chave da pergunta nos é dada pelo próprio autor, através da força intuitiva dos símbolos que cria. Boca de Ouro, nascido de mãe pândega, parido num reservado de gafieira, tendo perdido o paraíso uterino para defrontar-se com uma realidade hostil e inóspita, sentiu-se condenado à condição de excremento. Seu primeiro berço foi a pia de gafieira, onde a mãe, aberta a torneira, o abandonou num batismo cruel e pagão. Esta é a situação simbólica pela qual o autor, com um vigor de mestre, expressa o exílio e a angústia humana do nascimento, o traumatismo que nos causa, a todos, o fato de sermos expulsos do Éden e rojados ao mundo, para a aventura do medo, do risco e da morte. Boca de Ouro, frente a esta angústia existencial básica, escolheu o caminho da violência e do ressentimento para superá-la. Ele, excremento da mãe, desprezando-se na sua imensa inercidade de rejeitado, incapaz de curar-se desta ferida inaugural, pretendeu a transmutação das fezes em ouro, isto é, da sua própria humilhação e fraqueza em força e potência. Esta alquimia sublimatória ele a quis realizar através da violência, da embriaguez do poder destrutivo pelo qual chegaria à condição de deus pagão, cego no seu furor, belo e inviolável na pujança de sua fúria desencadeada. Ao útero materno mau, que o expulsou e o lançou na abjeção, preferiu ele, na sua fantasia onipotente, o caixão de ouro, o novo útero eterno e incorruptível onde, sem morrer, repousaria. Acabou mal esse Boca de Ouro, esse belo sinistro, terrível e ingênuo herói, tão grande e tão miserável na sua revolta contra a condição humana. Ele que, pela violência homicida, pretendeu realizar o velho sonho da alquimia, de transmutação dos elementos, transformando-se a si próprio em ouro imperecível, acabou lançado à sarjeta, com a cabeça no ralo, crivado de punhaladas, reduzido à matéria de que tinha horror.

 Depois de morto, roubaram-lhe a dentadura. Eis o nosso rei destronado, devolvido à sua solidão, fraco e pobre como o mais fraco e mais pobre dos seres.

Diálogos e personagens

"Mais uma vez, Nelson atribui pouca importância à realidade, mero respaldo da aventura interior. Além de fundamentar a figura mítica de Boca de Ouro, o dramaturgo empenha-se em seguir as flutuações da subjetividade. Em Pirandello, a personagem é múltipla, porque emite imagens diferentes para cada interlocutor. Mas, para o mesmo interlocutor, essa imagem se mantém inalterada. Nelson vai mais longe no processo de sondagem: dependendo sobretudo do estado emocional do contemplador, a personagens adquire para ele fisionomias diversas, freqüentemente contraditórias. A dimensão psicológica se enriquece, assim, até o infinito. Engrossando as fileiras de importante vertente da ficção contemporânea, Nelson traz à tona o sutil jogo de intersubjetividades". (Sábato Magaldi)

Boca de Ouro traz de volta à obra do dramaturgo alguns elementos de Vestido de Noiva. Nesta sua célebre peça, a ação dramática é, na verdade, a projeção exterior da mente de Alaíde, mulher que foi atropelada por um carro e acaba morrendo. O público fica informado dessa "aventura da subjetividade", nas palavras do crítico Sábato Magaldi, a partir da comunicação do acidente ao jornal e, depois, ao ouvir as manchetes gritadas pelos jornaleiros. Em Boca de Ouro, a ação é projeção da mente contraditória de dona Guigui, antiga amante do bicheiro. Os flashbacks, matéria dramática da peça, são frutos da confusão mental de dona Guigui e servem para desnudar Boca de Ouro aos olhos do público. A ação é toda manipulada por ela. 

Enredo

 Há, na obra de Nelson Rodrigues, duas fases distintas, embora complementares. em primeiro lugar, existe a fase mítica, em que o autor trabalha predominantemente com realidades arquetípicas, sem qualquer compromisso substancial com o mundo objetivo.

 Já na sua segunda fase, balzaquiana, por assim por dizer, Nelson Rodrigues faz com que seus personagens desçam do Olimpo e se plantem no chão do mundo, no chão do subúrbio carioca, de onde passam a brotar com um vigor e uma autenticidade admiráveis. Esta transição se processa, no entanto, sem prejuízo dos aspectos míticos da obra, que continuam encravados no coração do teatro de Nelson Rodrigues e lhe conferem a sua grandeza poética e a sua universalidade.

 Em Boca de Ouro, esse casamento entre o particular e o universal, entre o subúrbio, no que dele tem de mais peculiar, e a simbologia arcaica do inconsciente, no que esta possui de mais genérico, se faz de maneira psicológica e artisticamente perfeita. É claro que tal inserção de planos pode confundir e desorientar a crítica, mesmo avisada e experiente. Daí, por exemplo, a impressão de "salada", de desunidade, que um crítico da lucidez e da experiência de Paulo Francis denuncia em seu contato com a obra. Esta desunidade é, porém, aparente e não essencial. Ela decorre da perplexidade do espectador ante o encontro entre o mito e o subúrbio, e das surpresas e desdobramentos que surgem deste conúbio. Boca de Ouro, sendo um autêntico rei do jogo do bicho, brasileiríssimo e suburbano, é, ao mesmo tempo, o fulvo felino imemorial que nos habita a todos, o leão de Judo onipotente que cada um alimenta nas testas de sua fantasia profunda, todo músculo e toda força, além da morte, além do risco, além da solidão e do abandono.

Fonte:

Marie-Louise von Franz (O Problema da Sombra nos Contos de Fada) 3


Destruição ou renovação do rei

À primeira vista, vocês poderiam dizer que em "Os Dois Andarilhos" o alfaiate simpático e otimista representa o lado consciente e o sapateiro a sombra, o lado compensatório. Realmente, esta é uma interpretação dada até mesmo por pessoas que trabalham com contos de fada e com a psicologia junguiana, que a consideram uma estória típica de ego e sombra. Penso que de certa forma isto é verdade mas, pela minha experiência, se partirem dessa hipótese vocês empacam; consequentemente, gostaria de os prevenir quanto à identificação de conceitos junguianos com figuras mitológicas, dizendo isto é o ego, isto a sombra, isto a anima, porque, como verão, isto funciona por um tempo mas depois aparecem as contradições — e finalmente surgem as distorções, quando se tenta forçar as figuras da estória dentro de uma forma definida. É muito melhor, ao invés de saltar para conclusões, observar as duas figuras e seus aspectos funcionais na estória e o modo pelo qual estão consteladas com relação aos outros personagens, e seguir a regra de não interpretar nenhuma figura arquetípica antes de ver também o seu conteúdo. Então chegaremos a conclusões um pouco diferentes do que se as tomássemos arbitrariamente como ego e sombra.

O alfaiate é uma figura bem conhecida dos contos de fada. Na famosa estória "O pequeno alfaiate valente" existem certas similaridades, pois aí o alfaiate também é alegre, generoso, de pequena estatura e fisicamente não muito forte. Ele derrota um gigante e mais tarde engana um unicórnio furioso. Nessa estória o unicórnio se irrita e ataca o alfaiate, que pula para trás de uma árvore. O unicórnio enfia o chifre na árvore e não consegue se soltar. A partir desta amplificação, podemos concluir que o alfaiate tem algo a ver com o arquetípico do trapaceiro, que supera seus inimigos através da inteligência e do pensamento ligeiro.

Segundo as ideias medievais, o artesanato se ligava a certos planetas que protegiam determinados ofícios. O planeta Mercúrio protegia cozinheiros e alfaiates. Então aqui encontramos a ligação: o alfaiate pertence a Hermes, ou seja, Mercúrio, o deus trapaceiro, com todas as suas qualidades de inteligência versátil, pensamento rápido e capacidade de transformação. Naquele tempo o ofício de alfaiate era uma escolha inteligente para os homens pequenos e um tanto efeminados, que compensavam sua fraqueza por meio da esperteza e da habilidade. Além disso, o alfaiate faz roupas para os outros. Geralmente, interpretamos roupa como algo que tem a ver com a persona, o que até certo ponto é correto, pois vestimos a verdade crua de nossa personalidade e mostramos ao mundo exterior uma fachada mais decente e agradável do que realmente somos. A ideia de ligar roupa e persona está muito bem ilustrada no conto de fada de Hans Andersen "As roupas novas do imperador". O imperador oferece uma grande recompensa àquele que conseguir lhe fazer as melhores roupas e um esperto alfaiatezinho vai até ele, dizendo ser capaz de lhe fazer roupas muito especiais, delicadas e bonitas, dotadas da qualidade mágica de só serem visíveis a pessoas honestas e decentes. O imperador encomenda as roupas. Ele não consegue vê-las, mas não leva o fato em consideração; e na cidade, corre a notícia de que o rei vai aparecer com sua nova roupa mágica. Todo mundo o admira, até que uma criança grita: "Mas ele está nu!" E então todos começam a rir. Mais uma vez o alfaiate é o esperto que mostra a estupidez da persona do imperador.

Por outro lado, se pensarmos nos cultos dos mistérios na Antiguidade e nos ritos de iniciação de muitas civilizações, vemos que as pessoas vestiam roupas não apenas para representar a persona, mas para expressar uma atitude. Por exemplo, nas cerimónias de batismo da primitiva Igreja cristã as pessoas eram totalmente imersas e recebiam vestes brancas para manifestar sua re-cém-adquirida atitude de inocência, ou sua atitude cândida (candidus = branco). Também nas iniciações Mi-traicas e nos mistérios de ísis, os iniciados vestiam certas roupas para representar o deus sol e manifestar a transformação arquetípica interior às outras pessoas. Numa parábola alquímica, o espírito Mercúrio é descrito como alfaiate dos homens. Como possui tesoura e corta o homem no talhe certo, ele talha as próprias pessoas e não apenas suas roupas. Assim, Mercúrio é uma espécie de transformador do homem, um eventual psicoterapeu-ta que muda as pessoas revelando-lhes seu talhe verdadeiro e certo.

Podemos então dizer que o alfaiate tem a ver com o poder arquetípico de transformação do homem, dando-lhe uma nova atitude, uma força ligada à inteligência e à habilidade de lograr os outros. Os gigantes, conhecidos pelo tamanho e evidente estupidez, em geral representam emoções estúpidas. Tão logo invadidos por uma emoção, tornamo-nos estúpidos. Mitologicamente, os gigantes se relacionam aos terremotos. O unicórnio, com seu chifre agressivo, representa a atitude agressiva e o alfaiate sabe como lidar com isso. Ele também represen-Xg. as qualidades psicológicas, tipicamente humanas, de esperteza e inteligência, com as quais se supera a emoção primitiva e se alcança uma consciência mais elevada.

O alfaiate em "Os dois andarilhos" é sobretudo um homem muito piedoso, pois cada vez que se encontra em dificuldade roga a Deus, em quem tem grande fé e confiança, pois acredita com otimismo que a Divindade o ajudará a sair de suas dificuldades. Assim podemos concluir que o caminho humano de superar uma emoção pela inteligência e esperteza é aqui combinado com uma atitude religiosa cristã, a cosmovisão cristã.

O sapateiro também tem a ver com roupas, mas apenas para os pés — e assim a diferença entre roupas em geral e sapatos tem de ser especificada. Se roupa representa atitude, então sua interpretação deve variar de acordo com a parte do corpo que cobre. Vocês poderiam dizer que calças tem a ver com a atitude sexual, sutiã com uma atitude maternal — a mulher frequentemente sonha com sutiã representando uma crítica a essa atitude. Um provérbio alemão diz que a camisa do homem está mais perto dele do que o casaco; está mais perto da pele e portanto representa uma atitude íntima. 

Se partirmos da hipótese de que o sapato é simplesmente um artigo do vestuário para cobrir o pé e que com ele nos mantemos de pé na terra, então ele é o ponto de vista ou a atitude da realidade. Há bastante evidência disto. Os alemães dizem que quando alguém se torna adulto "descalça seus sapatos de criança" e nós dizemos que o filho "calça os sapatos do pai" ou "segue as pegadas do pai" — ele assume a mesma atitude. Existe também uma ligação com o complexo de poder, quando alguém "pisa em cima do outro" se deseja afirmar seu poder, como o soldado vitorioso mostrando que agora está por cima, colocando o pé sobre o pescoço do inimigo conquistado. Em alemão existe a expressão "herói de chinelo", referindo-se ao homem dominado pela esposa. Ela pisa em cima dele e ele fica submisso em casa. Portanto, vocês podem dizer que nosso ponto de vista com relação à realidade concreta sempre se vincula ao poder, pois não podemos assumir o ponto de vista da realidade sem até certo ponto nos afirmarmos; quando se trata da realidade é preciso fazer uma escolha, tornando um lado decisivo. Assim o sapateiro representaria uma figura arquetípica semelhante a do alfaiate, mas que tem a ver com o ponto de vista frente à realidade.

O ofício de sapateiro é visto como uma das profissões simples, até mesmo mais simples do que a do alfaiate, apesar de nenhum ocupar uma posição social elevada nos termos burgueses desses contos de fada. Existem muitas lendas e estórias que tem a ver com o nível simples do sapateiro. Uma lenda conta que Santo An-tão, vendo um anjo de Deus, convenceu-se de ter atingido algo importante e com isso se tornado um grande santo, mas um dia um anjo lhe contou que existia um homem ainda mais santo em Alexandria. Santo Antão, com ciúme, quis conhecê-lo e o anjo o levou a um bairro muito pobre de Alexandria, onde num miserável casebre um velho sapateiro com sua pobre esposa estava sentado fazendo sapatos. Santo Antão ficou surpreso mas começou a conversar com ele; e querendo descobrir por que o sapateiro era mais santo do que ele, perguntou-lhe sobre seus pontos de vista religiosos e sua atitude diante da religião. O sapateiro apenas olhou para ele, dizendo que só fazia sapatos para sustentar a mulher e os filhos. Nesse instante, Santo Antão ficou iluminado. A estória mostra como o sapateiro se relaciona com o ponto de vista frente à realidade, em contraste com o Santo que se empenhava apenas em se tornar cada vez mais santo. O sapateiro possuía uma atitude totalmente simples e humana em relação à realidade, o que muitas vezes falta aos santos, e foi isto que o Anjo de Deus falou a Santo Antão. Existe um provérbio que diz: "sapateiro, fique com suas ferramentas", pois se ele as deixa, tudo dá errado. Isso significa manter a relação com a realidade — devemos ser totalmente realistas, permanecendo dentro de nossos próprios limites. É o que o sapateiro faz e, de acordo com o provérbio, ele está certo.

Agora que já estabelecemos os dois aspectos de nossas duas figuras, eu gostaria de falar a respeito do método de interpretação de contos de fada, coisa que acho importante, porque o hábito de adivinhar o que cada figura significa deve ser substituído por uma abordagem mais científica.

Depois de muito vaguearem, o sapateiro e o alfaiate chegaram a um ponto decisivo quando se tornam servos do rei e o primeiro começa suas intrigas, casando-se por fim o alfaiate com a princesa, o que não é comum. Em outros contos de fada, quando um homem simples se casa com a princesa está implícito que através desse casamento ele se torna o novo rei; mas aqui a cegonha traz um filho ao rei e provavelmente este é que será o futuro herdeiro (não o alfaiate), a menos que a criança morra — o que não combina com a atmosfera dos contos de fada. Talvez fosse bom nos perguntarmos o que significa, em geral, o fato de um simples homem como um camponês, um simplório, um alfaiate ou sapateiro, ou o filho único de uma viúva, se casar com a princesa tornando-se então o futuro rei. Para compreender esse ponto, devemos entrar no simbolismo do rei.

Dizer que o alfaiate representa o lado consciente e o sapateiro a sombra, é chegar depressa demais a uma conclusão — vocês poderiam igualmente dizer que ambos são sombras do rei. Todo mundo é sombra de todo mundo nos contos de fada; as figuras são todas comparáveis entre si e possuem uma função compensatória. Portanto, deve-se usar a palavra "sombra" cum grano salis.

No que se refere ao simbolismo do rei, recomendo o livro Mysterium Conjunctionis, de Jung, onde existe um capítulo inteiro a esse respeito. Num nível primitivo, o rei personifica o poder vital místico de uma nação ou iribo, por isso em muitas civilizações primitivas, como vocês podem ler em The Dying God, de Frazer, a saúde e o poder físico e espiritual do rei garantem o poder da tribo, e o rei deve morrer se ficar doente ou impotente. Ele é sempre deposto depois de um certo tempo, pois o portador desse poder deve sempre ser jovem. Ele é a encarnação da Divindade, a força viva da tribo. Entre os Shilluks do alto Nilo branco, isto é expresso claramente pelo fato de que, quando deve morrer, o velho rei é fechado numa cabana junto com uma virgem, morrendo de fome com ela. O "trono" (uma pequena cadeira primitiva) é colocado em frente à cabana e nele senta-se seu sucessor: no momento da morte o espírito vital do velho rei entra pelo corpo do novo. Daí em diante, este é o rei e o portador desse princípio.

Mais uma vez, querendo chegar depressa a uma conclusão, vocês podem dizer que o rei possui todos os aspectos do simbolismo do Self, mas na verdade isto é geral e impreciso demais, pois o rei é o princípio vital, a imagem de Deus e o centro da organização física e espiritual; dessa forma, é o portador da projeção do Self, é o centro regente e dominante do aspecto da totalidade. Mas isto não está certo na medida em que o arquétipo do Self não se deixa confinar pelo tempo. Nós também temos a imagem do rei às portas da morte, o rei doente ou velho que tem que ser deposto, e isso não combina com a ideia do Self, como centro regulador da psique, que não deve ser deposto. Assim, em que sentido ele é ou não o Self? A resposta está no ritual dos Shilluks que lhes contei. 0 rei não é o Self, mas a manifestação simbólica desse arquétipo. Isto é, o rei de nossa civilização é Cristo, ele é o símbolo do Self, ele é o aspecto específico do Self que domina nossa civilização, o Rei dos Reis, o conteúdo dominante. Eu diria que Buda é o aspecto formulado do simbolismo do Self nas civilizações budistas. Assim, o rei não é o arquétipo mas o símbolo do Self que se tornou a representação central dominante numa civilização.

Parece ser uma lei arquetípica de validade geral o fato de que todo simbolismo moldado e formado na consciência coletiva se desgasta depois de certo tempo e resiste à renovação devido a uma certa inércia da cons- ciência. Muitas experiências interiores perdem um pouco de sua força depois de dez ou vinte anos, principalmente para a coletividade; em grande parte, a forma dos símbolos religiosos tende a se desgastar. Imaginem todas as crianças que deveriam se relacionar com o simbolismo de Cristo e ser cristãos e que aos seis anos já não se interessam mais e fecham seu ouvido interior, porque para elas aquilo se tornou um tipo de "slogan" que não faz mais sentido, que perdeu suas qualidades numinosas e seu valor. Vários ministros e padres me contam que é praticamente impossível escrever sempre um sermão no qual possam colocar algo de si mesmos, pois inevitavelmente há dias em que o homem está cansado ou discutiu com a esposa e este efeito desgastante será visível. Se para eles Cristo fosse totalmente numinoso isto não aconteceria. Parece-me trágico o fato de que a consciência humana tenda a ser unilateral e veja um só caminho, nem sempre adequado ao processo interior, de modo que certas verdades são formuladas e aceitas por muito tempo.

O mesmo acontece na evolução interior de um indivíduo — alguém tem uma experiência interior e a vive por um tempo, depois a vida muda e a atitude deveria também mudar; mas isto só é percebido quando os sonhos mostram que uma readaptação é necessária. Na metade da vida, a consciência insiste em permanecer presa a certas atitudes e não percebe com suficiente rapidez que o mundo interior mudou e que ela também deve mudar para poder lidar com a morte. Da mesma forma, tão logo se tornam conscientes e verbalizados, os conteúdos religiosos perdem seu frescor original e sua numinosidade, razão pela qual os grandes sistemas religiosos sofrem movimentos de renovação, de mudança completa ou reinterpretação, para que possam readquirir seu sentido imediato e original. O rei idoso que tem de ser substituído por um novo rei, expressa essa lei psicológica geral. Tudo o que alcança reconhecimento geral está, de certo modo, condenado; o mais sábio seria reconhecê-lo e estar sempre pronto a uma mudança de atitude. Da mesma forma que o indivíduo, a coletivida-de também persevera em sua antiga atitude, num grau ainda maior. Devemos portanto confrontar a inércia que ameaça o novo conteúdo. É a isso que se refere o mistério da renovação do rei.

O rei tem ainda outro aspecto: ele não é apenas a esperança profunda de uma civilização, mas também seu representante religioso. Para evitar a enorme tragédia da morte do rei, surgiu uma duplicação do poder, ou seja, a sociedade passava a contar com um curandeiro e um rei. O primeiro não se envolve quase nas atividades terrenas de organização, pois sua tarefa é lidar com as experiências religiosas imediatas. Assim sendo, em muitas tribos primitivas há discórdia entre o rei e o curandeiro, sendo este a "Eminência Parda" por trás do rei, ou dominado pelo poder absoluto do chefe. Este conflito se manteve em nossa própria História quando a Igreja católica tentou superar o poder do rei, ou quando certos reis tentaram substituir o papa ou governá-lo, regulamentando a vida religiosa da Igreja. A ideia por detrás da divisão de poderes era manter os dois separados, de modo que o aspecto religioso tivesse possibilidade de renovação, mantendo-se a organização limitada aos seus próprios deveres. Dessa forma era possível manter o equilíbrio dos opostos: a tendência de continuidade da consciência e a necessidade de sua constante renovação interior. O inconveniente é o perigo de conflito e cisão entre os dois poderes, que na verdade encontram-se unidos na psique.

Nos contos de fada frequentemente é uma pessoa simples que se torna o novo rei, depois de muitas peripécias e processos interiores. Devemos investigar o que isto significa. Se o príncipe torna-se rei ele é a pessoa certa por hereditariedade e podemos chamar a isto de renovação no interior do mesmo princípio dominante, como o que aconteceu com a Ordem de São Francisco de Assis na Igreja católica. Houve um momento perigoso para a Igreja quando a Ordem de São Francisco ameaçou tornar-se um movimento próprio; mas este aca- bou sendo para a Igreja um movimento de rejuvenesci-mento da vida espiritual sob o mesmo signo dominante — isso é análogo à transformação do príncipe em rei.

Por outro lado, se o conto de fada diz que é uma pessoa anónima e inesperada que se torna rei, então a renovação do dominante da consciência coletiva provém do ângulo menos previsível, tanto em termos arquetípicos como sociológicos. O dogma da Assunção da Virgem Maria é um bom exemplo, pois em alguns círculos teológicos esse dogma era desprezado. O papa enfatizou o fato de que era o desejo popular que contava, mas ele enfrentou grande oposição. Referiu-se inclusive às visões de Fátima em Portugal, pois a Assunção da Virgem Maria baseia-se mais no sentimento das pessoas simples do que no pensamento teológico. Dizem também que o próprio papa teve visões (o que não foi confirmado oficialmente) — e de um reduto tão inesperado como seu inconsciente é que tal renovação veio à luz. Vê-se assim que a renovação vem de onde menos se espera.

De uma maneira geral, podemos concluir que se num conto de fada um homem simples se torna rei, isso reflete um processo de renovação da consciência coletiva a partir de uma parte da psique, inesperada e oficialmente desprezada, e de pessoas simples que sofrem mais as correntes subterrâneas do desenvolvimento arquetípico do que as instruídas. Por exemplo, argumenta-se nas universidades e em todos os círculos instruídos que existe técnica demais na vida do homem moderno e uma relação insuficiente com a natureza. As classes dominantes sabem disso, mas um simples rapaz camponês que deixa sua pequena cidade para trabalhar numa fábrica não sabe e, assim, sofre por isso de modo mais imediato, podendo se desesperar e talvez odiar seus companheiros sem compreender que está sofrendo de uma doença de sua época. Em sua psique o desejo de mudança de atitude pode se constelar e se expressar simbolicamente. Talvez ele tente superar seus problemas indo a encontros religiosos de renovação, pois percebe os latos de modo primitivo e tenta se curar desse modo.

–––––––––
continua…

Fonte:
Marie-Louise Von Franz. A sombra e o mal nos contos de fada
[tradução Maria Christina Penteado Kujawski]. São Paulo : Paulus, 1985. Disponível em http://groups.google.com/group/digitalsource

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Versos dos Meus Poemas)


Eu já fiz verso de amor,
De dor, de felicidade,
Fiz poema para a flor,
Para a angústia e a saudade.

Já viajei pelos prados,
Pelos montes e cidades,
Confessei os meus pecados
Nas rimas que fiz um dia,
Já cantei em um poema
Minha grande travessia.

Falei com a voz da razão
De capela e campanário,
Já cantei o bem-te-vi,
O curió e o canário.
Contemplei o colibri,
Num ambiente de calma
Voando pelo jardim
Que plantei dentro da alma.

Revelei minha conquista,
Falei de amor e paixão,
Abasteci o celeiro,
No meu mundo de ilusão,
Fiz verso de pão dormido,
De arroz, de soja e feijão,
Levei ao homem do campo
Toda minha gratidão!

Escrevi no meu diário
A rota, o rumo da vida,
Cantei a nossa canção
Enfrentando a minha lida,
Rezei naquela capela
Da minha infância querida.

Proseei coisas da roça,
Revelei a minha crença,
Caí no fundo do poço,
Vi na fé a diferença,
Curti só a minha fossa,
Falei do velho e do moço.

Lancei meu velho pião,
Fiz minha pipa voar...
E num surto de paixão
Conjuguei o verbo amar.
Busquei o beijo perdido
Que você não quis me dar.

Contemplei as suas mãos,
Delirei com seu olhar...
Vi meu mundo de ilusão
Naufragando em alto mar
Quando senti nosso abraço
Atado com num laço
Tão de repente afundar.

Embarquei no trem da vida,
Contemplei o sol poente,
Na primavera florida
Senti o sopro da brisa
Roçando o corpo da gente.

Falei também do verão
Que tanta lembrança me traz
Do meu tempo de rapaz
Que jamais vou esquecer...
Fiz poema pra você,
Implorei em verso a paz!

Cantei com garra e amor
O futuro da nação
Que pra mim está nas mãos
Do aguerrido professor.

Falei da beleza do céu,
Da estrela cintilante,
Versejei sobre o andante
Que vive perdido ao léu,
Vi o contraste da vida,
No poema Mel e Fel.

Falei, também, de procuras,
Desejo, alucinação,
Confessei minhas loucuras,
Libertei meu coração... 

Falei, enfim, da mulher
Em versos e poeminhas,
Que, pra mim, foi um dilema,
A mais cruel agonia:
Ousei fazer um poema,
Para a própria poesia!

Fonte:
O Autor

António Zumaia (Jornalista da Noite de Lisboa)


O jornalista. 

Era hoje o centro das atenções na redacção de um grande Jornal diário onde trabalhava, o seu artigo sobre os meninos escravos da África, tinha sido galardoado e todos o queriam felicitar pelo feito alcançado com brilhantismo. 

O seu gosto pela aventura fizera dele um viajante do mundo à cata das mais variadas notícias e temas de interesse, era algo que o fascinava saber o sentir de certas pessoas, pelo que diversas vezes vestira a pele das personagens para lhe dar um cunho de realidade, difícil de outro modo. 

Madalena, uma amiga muito querida e sua colega de profissão abeirara-se dele para o felicitar, era uma morena esbelta e atractiva pelo que Lúcio nutria por ela um carinho desmedido, roçando quase o amor, mas negava-se a admiti-lo, porquanto isso seria o fim das suas aventuras. 

- Meu querido mais uma vitória na tua carreira, os meu sinceros parabéns. Logo vais jantar a minha casa para comemorarmos. 

Lúcio sabia bem como terminavam esses jantares e agradou-lhe. 

- Claro que vou, minha querida. 

- Então está combinado. 

- Sim! 

Olhou Madalena a afastar-se, era na verdade uma bela mulher e já o fizera delirar varias vezes. 

Luís um seu colega também, sorria deixando escapar uma critica ao amigo. 

- Ainda a vais perder Lúcio, com a tua mania do deixar para amanhã. 

- Amigo não se perde o que se não tem. 

- Não tens porque não queres. Sempre estás decidido a fazer a tal reportagem sobre a noite do Porto? Na minha opinião acho que vais correr sérios riscos. 

- Vou nada, já ando no ginásio a tratar dos músculos para ser um segurança. 

- Esses gajos não são para brincadeiras, tem cuidado. 

- Amigo já fui Palestiniano na faixa de Gaza, já fui esclavagista na África, já fui arrumador de carros em Lisboa, já fui infiltrado numa rede de tráfico de droga, já fui assaltante de caixas Multibanco, é apenas e só mais uma experiência. Vou sentir e descrever o que é ser segurança da noite num Bar e escrever sobre essas experiências. 

- Espero que tenhas sorte amigo, o chefe está de acordo? 

- Sim! Já falei com ele sobre esta ideia. 

- Prefiro continuar a escrever sobre a sociedade Lisboeta, há muita merda e é divertido. 

Lúcio sorriu, conhecia bem este seu amigo e sabia como ele se divertia com a palhaçada dos colunáveis. 

O suor escorria-lhe pela face de executar o mesmo exercício, mas os músculos dos braços vincavam-se de forma bem visível, quando o gerente do Ginásio se abeirou. 

- Amigo Dias, sempre quer emprego como segurança? Posso arranjar-lhe um aqui num Bar de Lisboa. 

- Quero ir para o Porto senhor Manuel. Aqui em Lisboa não me interessa, a minha miúda trabalha lá e quero estar ao pé dela. 

- Olhe amigo, eu conheço bastante gente no Porto relacionada com a noite, mas eles são exigentes, querem homens com experiência e para adquiri-la tem de trabalhar primeiro aqui em Lisboa. 

- Quando começo? 

- Pode ser na semana que vem. Vai para uma discoteca das melhores de Lisboa é frequentada por gente muito fina mas que gosta do pó para agilizar a sua prestação e é você que os fornece. 

- Droga? 

- Claro que havia de ser?      

- Tudo bem! Por mim estou-me nas tintas para eles. 

- Claro! O cliente quer nós damos, aliás vendemos. 

Sorriram ambos, Lúcio pondo a toalha turca pelos ombros foi para o duche. 

Já preparara tudo com mil cuidados, deixara a sua casa entregue à empregada e alugara um quarto numa Pensão das mais baratas de Lisboa, mas esta noite tinha de comemorar com Madalena. 

  

- Minha querida aqui está o vinho que gostas. 

- O que preparei para o jantar, vais gostar também. 

Madalena recebera-o com uma simples bata de seda bastante transparente, o que deixava antever facilmente as delicias daquele corpo. 

- Vamos ao aperitivo então. 

Madalena sorriu, na verdade era sempre assim quando o convidava para jantar. Gostava de desfrutar aquele homem que sabia nunca ser dela, mas que a deliciava com seus carinhos. 

Já exaustos, foram para um duche revigorante que em nada os relaxou, mas antes os excitou para mais. As mãos de Lúcio percorriam aquele corpo dando-lhe o perfume do gel de banho, ela imitava-o e em breve eram um só, numa inebriante doçura. 

- Já vestidos, sentaram-se à mesa e iniciaram a refeição. 

  

Lúcio foi ao jornal para avisar o Chefe de Redacção da sua ausência em trabalho. 

- Tenha cuidado Lúcio, pode mexer com gente importante e isso paga-se caro e o artigo que vai escrever pode não ter essa importância. 

- Terei! – Disse descuidado. 

Caminhou para a saída do Jornal com a firme convicção de que mais uma vez cumpriria a sua missão de Jornalista. 

O ambiente que foi encontrar agradava-lhe, muitas mulheres ensaiavam os seus números eróticos dando ao Estabelecimento nocturno bastante movimento embora de porta fechada. Foi recebido pelo dono, não lhe agradou o ar untuoso do fulano, mas reparou que a sua voz era autoritária e dura. 

- Onde é que trabalhou? 

- Em lado nenhum, mas conheço bem a noite. 

- Tem cadastro na polícia? 

- Não! – Respondeu. 

- Conhece as suas obrigações à porta? 

- O senhor Manuel falou-me. 

- Vai ficar com o Luís à porta até conhecer os clientes, depois ele vem para o interior e você ocupa o lugar. Os clientes que lhe pedirem material tem de os atender, depois ao fim da noite fazemos contas. Muito cuidado, porque vem aqui gente muito importante e o principal é não conhecer ninguém nem dar com a língua nos dentes. 

- Pode estar descansado senhor. 

- Estou descansado sim! Se algo transpirar você simplesmente desaparece. 

  

Deram-lhe roupa apropriada e foi apresentado a seu agora camarada Luís. 

- Então tu és o novato? Lá físico tens tu, vamos ver como te portas, isto não é brincadeira de meninos. 

- Eu não sou menino nenhum. 

- Veremos! Aqui precisas de punhos de ferro e de veludo. 

- Como assim? 

- Tratas com gente importante e tens de ser veludo, tratas com feras e precisas de punhos de ferro, aqui vem de tudo. Um conselho, não te envolvas com gaja nenhuma da casa ou vais ter problemas. 

- Não tenho ideias disso. 

- Veremos. 

Nos primeiros dois dias, muita coisa aprendeu e muita coisa viu, assim como muitas pastilhas de Ecstasy ele vendeu. 

Um cliente pediu-lhe “Lucy in the Sky”, ficou por momentos confuso mas lembrou-se dos Beatles e da sua ligação à geração hippie e logo viu o que o cliente queria LSD. 

Foi para ele uma surpresa, embora já muitas Discotecas e Bares tivesse frequentado, nunca como agora pudera verificar como se divertia a classe media alta de Lisboa. Os vícios e gostos de gente que sempre lhe parecera impoluta. Via agora no seu modesto quarto em profunda reflexão que o artigo “Noites de Lisboa” era escaldante e perigoso, mas tinha de o fazer, para depois caminhar para as “Noites do Porto”. 

Começaram a aglomerar-se jovens na ânsia de uma entrada, Lúcio procurava dar-lha mas por selecção; Uma loirinha procurava com um lindo sorriso que ele lha facultasse, estava neste impasse quando um carro parou à entrada da Discoteca, Luís foi abrir a porta da viatura e para espanto seu verificou ser um indivíduo calvo e já velho, que conhecia bem, de muito ser noticiado por irregularidades e fraudes, mais espantado ficou ao verificar quem o acompanhava, era Madalena a sua colega do Jornal. Uma nota escorregou para o bolso de Luís, que em troca forneceu os comprimidos milagrosos de uma noite plena de energia. Procurara esconder o rosto para que o não reconhecesse, pois nunca a colocara a par das suas aventuras. Entraram a par com alguns jovens a quem deu passagem, conseguindo assim que ela o não visse. 

A meio da noite uma briga obrigou a que Luís o viesse chamar para lhe prestar ajuda, o que fez contrariado. Pegou em dois miúdos e levou-os para a rua. 

Madalena reconheceu-o espantada, afinal era o trabalho que tinha anunciado no jornal que iria fazer. Não era bom para ela porque de certeza a tinha reconhecido, era uma situação incómoda pelo que falou com o seu acompanhante. 

- Sabes que esse tipo que está à porta é meu colega e jornalista? 

- Não pode ser. 

- Mas é. 

- Como é que este estúpido admitiu um jornalista para porteiro? Tenho de falar com ele. 

Já quase o dia clareava, quando a campainha do telefone dos Bombeiros de Cascais retiniu aflitiva, um carro caíra ao mar numa das arribas do Guincho e era preciso socorros. 
  
Mais um artigo que não se chegara a escrever… “As noites de Lisboa” e seus protagonistas.

Fonte:
http://zumaia5.wordpress.com/2009/01/13/jornalista-da-noite-de-lisboa/