Quatro grunhidos, uma voz indignada perguntando por que
alguém não deixava em paz um chapéu, uma porta fechada com estrondo e o Sr.
Packington saiu para pegar o trem das oito e quarenta e cinco para a cidade. A
Sra. Packington sentou-se à mesa do café. Tinha o rosto ruborizado e os lábios
apertados: e só não chorava porque a mágoa tinha sido substituída pela raiva.
— Não agüento mais — disse
a Sra. Packington. — Não agüento mais! — ficou pensativa por alguns momentos e
depois murmurou: — Aquela sirigaita. Que mulherzinha hipócrita e indecente!
Como George pôde ser tão estúpido!
A raiva passou; voltou a
mágoa. As lágrimas encheram os olhos da Sra. Packington e rolaram lentamente
pelo seu rosto de mulher madura.
— É muito fácil dizer que
eu não agüento mais, mas o que é que eu posso fazer?
De repente, sentiu-se
sozinha e indefesa, completamente abandonada. Com gestos lentos, pegou o
jornal e leu — não pela primeira vez — um anúncio de primeira página:
CONFIDENCIAL
VOCÊ É FELIZ? SE NÃO FOR,
CONSULTE O SR. PARKER PYNE. RUA RICHMOND, 17.
— Absurdo! — disse a Sra.
Packington. — Completamente absurdo! — e depois: — Enfim, não custa tentar...
Eis por que, às onze horas
da manhã, a Sra. Packington, um pouco nervosa, entrou no escritório particular
do Sr. Parker Pyne.
A Sra. Packington estava
nervosa, sim, mas a simples visão do Sr. Parker Pyne lhe deu uma impressão de
segurança. Ele era forte, para não dizer gordo; tinha uma cabeça calva bem
proporcionada, óculos de lentes grossas e pequenos olhos brilhantes.
— Sente-se, por favor —
disse o Sr. Parker Pyne.
— Viu o meu anúncio? —
perguntou, para ajudá-la.
— Sim — disse a Sra.
Packington, e não disse mais nada.
— E não é feliz — disse o
Sr. Parker Pyne numa voz jovial e prática. — Muito poucas pessoas o são. A senhora
ficaria surpresa se soubesse que muito poucas pessoas são felizes.
— É mesmo? — perguntou a
Sra. Packington sem convicção e pouco se importando que as outras pessoas
fossem ou não infelizes.
— Eu sei que isso não lhe
interessa — disse o Sr. Parker Pyne, — mas a mim interessa muito. Veja a
senhora que durante trinta e cinco anos da minha vida eu só fiz compilar
estatísticas numa repartição do Governo. Agora que me aposentei, me ocorreu a
idéia de aproveitar de uma maneira diferente toda a experiência que adquiri. É
tudo muito simples. As desgraças todas podem ser classificadas em cinco categorias
principais — nem mais nem menos, posso lhe garantir. Uma vez conhecida a causa
de uma doença, a cura passa a ser perfeitamente possível. Eu me coloco no papel
de um médico. Primeiro o médico diagnostica o mal do paciente, depois
prescreve o tratamento. Há casos em que nenhum tratamento dá resultado. Quando
é assim, digo com toda a franqueza que não posso fazer nada. Mas lhe garanto,
Sra. Packington, que se eu tomar conta de seu caso, a cura é praticamente
garantida.
Seria possível? Seria uma
tolice ou seria verdade? A Sra. Packington olhou esperançosa para ele.
— Podemos diagnosticar o
seu caso? — disse o Sr. Parker Pyne sorrindo. Recostou-se em sua cadeira e
juntou as pontas dos dedos das mãos. — O problema diz respeito a seu marido. De
um modo geral a senhora teve um casamento feliz. Creio que seu marido
prosperou. Suponho que haja uma jovem neste caso... talvez uma moça que
trabalhe no escritório de seu marido.
— Uma datilografa — disse
a Sra. Packington. — Uma sirigaitazinha falsa e indecente, cheia de batom e
meias de seda e cachinhos. As palavras saíram aos borbotões. .
O Sr. Parker Pyne balançou
a cabeça de maneira apaziguadora. — Não há nada de mal nisso... certamente é
isso o que o seu marido diz...
— É exatamente isso.
— E por que não poderia
ele manter uma amizade pura com esta moça e proporcionar um pouquinho de
alegria e prazer a sua existência tão monótona? Pobre menina! Ela se diverte
tão pouco... Suponho que sejam estes os seus sentimentos.
A Sra. Packington fez que
sim com a cabeça, vigorosamente — Um embuste... tudo um embuste! Ele a leva ao
rio... eu também gosto muito de ir ao rio, mas há uns cinco ou seis anos ele me
disse que isso atrapalhava o golfe dele. Agora ele deixou o golfe de lado por
causa dela. Eu gosto de teatro, mas George vivia dizendo que estava
muito cansado para sair de noite. Agora sai com ela para dançar — dançar! E
volta às três da madrugada! Eu... eu...
— E sem dúvida ele lamenta
o fato de que as mulheres sejam tão ciumentas... tão injustificàvelmente
ciumentas, quando não há nenhum motivo para o ciúme?
Novamente a Sra.
Packington fez que sim com a cabeça — é isso
— perguntou secamente: — Como é que o senhor sabe disso?
— Estatísticas — disse o
Sr. Parker Pyne com simplicidade.
— Eu sou tão infeliz —
disse a Sra. Packington. — Sempre fui uma esposa dedicada para George. Gastei
as minhas unhas até o sabugo nos primeiros anos da nossa vida. Eu o ajudei a
vencer. Nunca olhei para outro homem. Suas roupas estão sempre em ordem, a
comida é boa, cuido muito bem da casa, e com economia. E agora que superamos as
dificuldades e poderíamos nos divertir, sair um pouco e fazer todas as coisas
que eu tinha vontade de fazer algum dia... vai acontecer isso! — ela engoliu
em seco.
O Sr. Parker Pyne
concordou gravemente — Pode ficar certa de que compreendo perfeitamente o seu
caso.
— E... pode fazer alguma
coisa? — ela quase sussurrou a pergunta.
— Certamente, minha cara
senhora. Há cura. Certamente que há cura.
— E qual é? — ela
aguardava ansiosa, os olhos arregalados.
O Sr. Parker Pyne falou
com uma voz calma e firme
— A senhora vai se colocar
em minhas mãos, e meus honorários serão de duzentos guinéus.
— Duzentos guinéus!
— Exatamente. A senhora
pode pagar isto, Sra. Packington. Pagaria por uma operação. A felicidade é tão
importante quanto a saúde do corpo.
— Suponho que vou pagar
depois.
— Pelo contrário — disse o
Sr. Parker Pyne. — A senhora vai me pagar adiantado.
A Sra. Packington se
levantou — Não vejo por que...
— A senhora teme comprar
gato por lebre? — disse o Sr. Pyne jovialmente. — Bem, talvez a senhora tenha
razão. É muito dinheiro para arriscar. A senhora tem que confiar em mim. Pagar
e correr o risco. São estas as minhas condições.
— Duzentos guinéus!
— Exatamente. Duzentos
guinéus. É muito dinheiro. Bom dia, Sra. Packington. Me avise se mudar de idéia
— apertou-lhe a mão, sorrindo, imperturbável.
Depois que ela saiu,
apertou um botão na sua mesa. Uma moça de óculos e ar severo respondeu ao
chamado.
— Um fichário, por favor,
Srta. Lemon. E pode também avisar a Claude que eu talvez vá precisar dele
brevemente.
— Uma nova cliente?
— Uma nova cliente. Por
enquanto ela está relutante, mas vai voltar. Provavelmente hoje à tarde, lá
pelas quatro horas. Pode deixar entrar.
— Esquema A?
— Esquema A, é lógico. É
engraçado como todo mundo pensa que o seu próprio caso é único. Bom, avise
Claude. Diga-lhe para não parecer muito exótico. Nada de perfume, e é melhor
ele cortar o cabelo.
Passavam quinze minutos
das quatro horas quando a Sra. Packington entrou de novo no escritório do Sr.
Parker Pyne. Tirou da bolsa um livro de cheques, preencheu um deles e o
entregou. Em troca obteve um recibo.
— E agora? — a Sra.
Packington olhou esperançosa para ele.
— Agora — disse o Sr. Pyne
sorrindo, — a senhora vai voltar para casa. Pelo primeiro correio de amanhã vai
receber algumas instruções que eu gostaria muito de ver cumpridas.
A Sra. Packington voltou
para casa num estado de alegria antecipada. O Sr. Packington voltou com ar defensivo,
pronto para discutir a situação, caso a cena da manhã fosse reaberta. Ficou
aliviado, entretanto, ao ver que a mulher não estava com espírito combativo.
Ela parecia estranhamente pensativa.
George ficou ouvindo
rádio, imaginando se aquela pobre e querida Nancy consentiria que ele lhe desse
um casaco de peles. Ele sabia que ela era muito orgulhosa. Não queria
ofendê-la. Apesar disso, ela se queixara do frio. Aquele casaco de lã era tão
ordinário; nem a protegia do frio. Talvez ele conseguisse convencê-la,
talvez...
Breve eles poderiam
novamente sair juntos à noite. Era um prazer sair com uma moça assim e levá-la
a um dos restaurantes da moda. Ele se sentia invejado por muitos rapazes. Ela
era extraordinariamente bonita. E gostava dele. Para ela — como já lhe dissera
— ele não era nem um pouquinho velho.
Levantou os olhos e
percebeu o olhar da mulher. Sentiu-se repentinamente culpado e isto o
aborreceu. Que mulher intolerante era Maria! Negava-lhe até um pinguinho de
felicidade.
Desligou o rádio e foi
para a cama.
A Sra. Packington recebeu
duas cartas inesperadas, na manhã seguinte. Uma delas era um impresso confirmando
uma hora marcada num conhecido especialista de beleza. A segunda marcava uma
hora com uma costureira. A terceira era do Sr. Parker Pyne, solicitando o
prazer de sua companhia para um almoço no Ritz naquele dia.
O Sr. Packington avisou
que talvez não pudesse vir jantar em casa, pois tinha que ver um homem de negócios.
A Sra. Packington abanou a cabeça distraidamente, e ele saiu de casa satisfeito
por ter escapado da tempestade.
O especialista de beleza
foi admirável: — Mas que negligência! Por quê? Por que, Madame? Há muito
tempo que a senhora devia ter feito alguma coisa. Felizmente, ainda não é
tarde!
Uma porção de coisas foram
aplicadas sobre o seu rosto; ele foi massageado, apertado e tratado a vapor.
Aplicaram-lhe uma máscara de lama. Aplicaram-lhe cremes diversos. Passaram
pó-de-arroz. E depois houve uma série de retoques finais.
Por fim lhe deram um
espelho. Acho que estou mesmo parecendo mais moça, pensou ela.
A hora com a costureira
foi igualmente excitante. Saiu de lá se sentindo elegante, atualizada, no rigor
da moda.
A uma e meia da tarde, a
Sra. Packington chegava ao Ritz. O Sr. Parker Pyne, impecàvelmente vestido, e
envolto numa aura de serena confiança, estava esperando por ela.
—Encantadora — disse, com
um olho experiente a examiná-la da cabeça aos pés. — Me antecipei e lhe encomendei
um White Lady.
A Sra. Packington não
tinha o hábito de tomar coquetéis, mas não disse nada. Enquanto bebia
cautelosamente o excitante líquido, ouvia o seu paciente instrutor.
— Seu marido, Sra.
Packington — disse o Sr. Pyne, —vai ser obrigado a ficar em guarda. Compreendeu?
Se interessar. Para ajudá-la, vou apresentá-la a um jovem amigo meu. A
senhora vai almoçar com ele hoje.
Neste instante entrou um
rapaz, olhando de um lado para outro. Ao avistar o Sr. Parker Pyne, caminhou em
sua direção, com elegância.
— O Sr. Claude Luttrell,
Sra. Packington.
O Sr. Claude Luttrell
talvez ainda não tivesse trinta anos. Era atraente, desembaraçado,
impecàvelmente vestido, extremamente bonito.
— Muito prazer em
conhecê-la — murmurou.
Três minutos depois, a
Sra. Packington estava frente a frente com seu novo mentor, numa pequena mesa
para dois.
Estava um pouco tímida no
início, mas o Sr. Luttrell logo a colocou à vontade. Ele conhecia Paris muito
bem e passara um bom tempo na Riviera. Perguntou à Sra. Packington se ela
gostava de dançar. Ela disse que gostava, mas quase não saía para dançar,
atualmente, porque o Sr. Packington não gostava muito de sair de noite.
— Mas ele não pode ser tão
cruel assim, a ponto de prendê-la em casa — disse Claude Luttrell,
sorrindo e mostrando uma deslumbrante fileira de dentes. — As mulheres não
devem mais tolerar o ciúme masculino, em nossos dias.
A Sra. Packington quase
disse que o problema não era o ciúme, mas as palavras não saíram. Apesar de
tudo, a idéia era agradável.
Claude Luttrell falou
superficialmente de boates. Ficou combinado que na noite seguinte a Sra.
Packington e o Sr. Luttrell iriam conhecer o popular Arcanjo Menor.
A Sra. Packington se
sentia um pouco nervosa ante a perspectiva de anunciar o fato ao marido.
Imaginou que George ia achar muito estranho e talvez ridículo. Mas teve sorte.
Estava muito nervosa para falar com ele durante o café da manhã, e lá pelas
duas horas da tarde um telefonema lhe informou que o Sr. Packington ia jantar
na cidade.
A noitada foi um sucesso.
A Sra. Packington dançava muito bem quando era moça, e, sob a sábia orientação
de Claude Luttrell, não demorou a aprender os passos modernos. Ele lhe deu os
parabéns pelo vestido e pelo penteado. (Tinham-lhe marcado uma hora naquela
manhã com um dos cabeleireiros da moda). Ao se despedir, ele beijou a sua mão
de uma maneira eletrizante. Há muitos anos que a Sra. Packington não passava
uma noite tão divertida.
Seguiram-se dez dias
fantásticos. A Sra. Packington almoçava, lanchava, dançava tango, jantava,
valsava e ceava. Ficou sabendo tudo sobre a triste infância de Claude Luttrell.
Conheceu as desafortunadas circunstâncias nas quais o pai perdera todo o seu
dinheiro. Ouviu a história do trágico romance que lhe amargurava os sentimentos
em relação às mulheres em geral.
No décimo primeiro dia, eles
foram dançar no Almirante Vermelho. A Sra. Packington viu seu marido antes que
ele a visse. George estava com a moça do escritório. Os dois casais estavam
dançando.
— Olá, George — disse
baixinho a Sra. Packington, quando passou por ele.
Foi com certa satisfação
que ela viu o rosto de seu marido ficar primeiro vermelho e depois roxo de
espanto. Além do espanto, havia uma expressão de quem descobre um erro.
A Sra. Packington se
sentiu divertidamente dona da situação. Coitado do George! De volta à sua mesa,
ela se pôs a observá-lo. Como estava gordo, como estava careca, como
cambaleava! Ele dançava como há uns vinte anos atrás. Coitado, que força estava
fazendo para parecer jovem! E aquela pobre moça que dançava com ele e fingia
que estava gostando. Ela agora parecia muito chateada, o rosto por cima do
ombro dele para que ele não pudesse vê-lo.
A Sra. Packington pensou
muito satisfeita que a sua situação era bem mais invejável. Olhou de relance
para o maravilhoso Claude, agora taticamente em silêncio. Como ele a
compreendia bem! Nunca discordava dela — os maridos sempre discordam depois de
alguns anos.
Tornou a olhar para ele.
Seus olhos se encontraram. Ele sorriu; seus lindos olhos escuros, tão
melancólicos, tão românticos, olharam ternamente dentro dos dela.
— Vamos dançar outra vez?
— murmurou ele.
Dançaram novamente. Era o
paraíso.
Ela sentia o olhar
apoplético de George a segui-los. A idéia tinha sido dela, ela se lembrava, de
provocar ciúmes em George. Há tanto tempo! Mas agora ela não queria mais despertar
os ciúmes de George. Poderia aborrecê-lo. Por que aborrecê-lo, afinal de
contas? Coitadinho! Todo mundo estava tão feliz...
O Sr. Packington já estava
em casa há uma hora quando a Sra. Packington entrou. Ele parecia confuso e
inseguro.
— Hum — resmungou. —
Afinal você chegou.
A Sra. Packington atirou
longe um xale que lhe tinha custado quarenta guinéus, naquela mesma manhã. — É
— disse sorrindo, — cheguei.
George tossiu — Er... foi
estranho encontrar você.
— Foi mesmo, não é? —
disse a Sra. Packington.
— Eu... bem, eu pensei que
seria um gesto delicado da minha parte levar aquela moça a algum lugar. Ela tem
tido tantos problemas em casa. Eu pensei. .. bem, delicadeza, você compreende.
A Sra. Packington fez que
sim com a cabeça. Pobre George — saltitando e se entusiasmando e tão satisfeito
consigo mesmo.
— Quem era aquele camarada
que estava com você? Eu não o conheço, conheço?
— Chama-se Luttrell.
Claude Luttrell.
— Como foi que você o
conheceu?
— Oh, alguém me apresentou
— disse a Sra. Packington vagamente.
— É esquisito você sair
dançando por aí... na sua idade. Não vá ficar ridícula, minha querida.
A Sra. Packington sorriu.
Ela estava se sentindo muito satisfeita, com o mundo inteiro paria dar a resposta
óbvia. — Uma mudança é sempre agradável — disse amistosamente.
— Você precisa ter
cuidado, sabe? Há uma porção destes dançarinos profissionais por aí. Mulheres
de meia-idade às vezes fazem papéis ridículos. Estou só lhe avisando, minha
cara. Não gostaria de ver você fazendo o que não deve.
— Acho muito bom o
exercício — disse a Sra. Packington.
— Hum. .. bom...
— Espero que você também
ache — disse simpática a Sra. Packington. — O importante mesmo é a gente se
sentir feliz, não é? Me lembro que você me disse isso há uns dez dias.
O marido olhou rapidamente
para ela, mas não havia nem uma ponta de sarcasmo na sua expressão. Ela
bocejou.
— Vou me deitar. Antes que
eu me esqueça, George, tenho sido horrivelmente extravagante neste últimos
dias. Algumas contas terríveis vão chegar. Você não se importa, não é?
— Contas? — perguntou o
Sr. Packington.
— É. Vestidos. E
massagens. E tratamento para os cabelos. Horrivelmente extravagante... mas eu
sei que você não se importa...
Ela subiu as escadas. O
Sr. Packington ficou de boca aberta. Maria tinha sido maravilhosamente gentil
em relação ao que acontecera aquela noite; parecia não ter dado a menor
importância. Mas era uma pena que de repente ela começasse a gastar dinheiro.
Maria — um modelo de economia!
Mulheres! George Packington
balançou a cabeça. As confusões em que os irmãos daquela garota se tinham
metido nos últimos dias... Bem, ele continuava disposto a ajudá-la. Apesar de
tudo... bolas! As coisas já não estavam indo assim tão bem lá pela cidade.
Suspirando, o Sr. Packington
subiu as escadas devagar.
Às vezes, só mais tarde
prestamos atenção a palavras que na hora não pareceram importantes. Só na manha
seguinte certas palavras que o Sr. Packington disse entraram realmente na
consciência de sua mulher.
Dançarinos profissionais;
mulheres de meia-idade; cair no ridículo.
A Sra. Packington era uma
mulher corajosa. Sentou-se e enfrentou os fatos. Um gigolô. Ela sempre leu
histórias de gigolôs nos jornais. Leu também a respeito de loucuras cometidas
por mulheres de meia-idade.
Claude seria um gigolô?
Ela calculou que sim. Mas então como é que os gigolôs eram sempre pagos e era
Claude quem pagava todas as despesas? Sim, mas era o Sr. Parker Pyne quem
pagava, não Claude — ou melhor, eram os seus próprios duzentos guinéus.
Seria ela uma estúpida
mulher de meia-idade? Será que Claude Luttrell ria dela pelas costas? A este
pensamento seu rosto ficou vermelho.
Bem, e se fosse mesmo?
Claude era um gigolô. Ela era uma ridícula mulher de meia-idade. Logo ela devia
lhe dar um presente. Uma cigarreira de ouro, qualquer coisa no gênero.
Um impulso excêntrico
levou-a até o Asprey's. Escolheu e comprou uma cigarreira. Ia se encontrar com
Claude para almoçar no Claridge.
Quando tomavam o café ela
mexeu na bolsa — Um presentinho — murmurou.
Ele olhou para ela,
franziu as sobrancelhas — Para mim?
— É. Eu... espero que você
goste. Ele pegou a cigarreira e a empurrou violentamente para o outro lado da
mesa — Por que você me deu isso?
Não quero. Leve de volta.
Leve de volta! — estava zangado. Seus olhos escuros faiscavam.
— Desculpe — murmurou ela,
e a colocou de volta na bolsa.
Houve um certo
constrangimento entre os dois naquele dia.
Na manhã seguinte ele
telefonou — Preciso ver você. Posso ir à sua casa hoje à tarde?
Ela marcou para as três da
tarde.
Claude chegou muito
pálido, muito tenso. Cumprimentaram-se. O constrangimento se tornou mais evidente.
De repente ele se pôs de
pé e ficou em frente dela — O que é que você pensa que eu sou? Foi isso que eu
vim lhe perguntar. Nós temos sido amigos, não é mesmo? Sim, amigos... Mas
apesar de tudo você pensa que eu sou... é, é isso mesmo, um gigolô. Uma
criatura que vive às custas de mulheres. É isso que você pensa, não é?
— Não, não!
Ele interrompeu seu
protesto. Seu rosto estava ainda mais pálido — É isso mesmo que você pensa!
Bom, é verdade. Foi isso que eu vim dizer. É verdade! Eu recebi ordens para
sair com você, para lhe fazer a corte, fazer você esquecer seu marido. É este
o meu emprego. Um emprego abjeto, não é?
— Por que você me contou
isso tudo? — perguntou ela.
— Porque eu estou cheio
dessa história toda. Não posso mais continuar. Não com você. Você é
diferente. Você é o tipo da mulher em quem eu pude confiar, acreditar, gostar.
Você vai pensar que eu estou dizendo isso porque é parte do negócio —
aproximou-se dela. — Vou lhe provar que não é verdade. Vou-me embora por sua
causa. Vou tentar ser um homem de verdade, em vez da criatura repulsiva que fui
até hoje.
De repente ele a tomou nos
braços. Seus lábios se apertaram contra os dela. Soltou-a e se afastou um
pouco.
— Adeus. Sempre fui
abjeto. Sempre. Mas juro que de hoje em diante vai ser diferente. Se lembra que
você falou uma vez que gostava de ler os Anúncios Pessoais? No dia de hoje,
todos os anos, você vai encontrar um recado meu dizendo que eu sempre me
lembro de você e que continuo no bom caminho. Você vai ver então o quanto
significou para mim. Mais uma coisa. Não quero nada de você. Mas quero que
guarde alguma coisa minha — tirou do dedo um anel de ouro. — Foi de minha mãe.
Quero que você fique com ele. Agora, adeus...
George Packington voltou
cedo para casa. Encontrou a mulher sentada em frente da lareira com um olhar
diferente. Falou gentilmente com ele, mas parecia estranha e alheia à sua
presença.
— Olhe aqui, Maria —
começou ele, aos arrancos. — Aquela moça.
— Sim, querido?
— Eu... eu nunca quis
aborrecer você, sabe. Com ela. Não há nada.
— Eu sei. Fui uma boba.
Pode vê-la quantas vezes quiser, se isto faz você ficar feliz.
Tais palavras deviam ter
alegrado George Packington, é lógico. Por mais estranho que possa parecer,
elas o aborreceram. Como podia ele se divertir saindo com a moça, se a sua
própria mulher praticamente o obrigava a isto? Francamente isso nem era
decente! Toda aquela sensação de poder, de homem forte que brincava com fogo,
se desvaneceu e morreu melancòlicamente. De repente, George Packington se
sentiu cansado, esvaziado. A garota era muito esperta...
— Nós podíamos sair um
pouco, se você quisesse, Maria — sugeriu timidamente.
— Não se preocupe comigo.
Estou muito feliz.
— Mas eu gostaria de levar
você para passear; podíamos ir para a Riviera.
A Sra. Packington sorriu
levemente.
Pobre George... Ela se
orgulhava dele. Era um velhinho tão terno! Não havia na vida um segredo tão lindo
quanto o dela. Ela sorriu ainda com mais ternura.
— Seria ótimo, querido —
disse.
O Sr. Parker Pyne estava
falando com a Srta. Lemon — Despesas com os divertimentos?
— Cento e duas libras,
quatorze shillings e seis pence.
A porta abriu e entrou
Claude Luttrell. Estava com um ar amuado.
— Bom dia, Claude — disse
Parker Pyne. — Foi tudo bem?
— Acho que sim.
— O anel? Qual foi o nome
que você mandou gravar, por falar nisso?
— Matilda — disse Claude
taciturno. — 1899.
— Ótimo. E as palavras do
anúncio?
— Continuo bem. Ainda me
lembro de você. Claude.
— Tome nota, por favor,
Srta. Lemon. Na coluna dos Anúncios Pessoais. No dia três de novembro... deixe
ver... despesas de cento e duas libras, quatorze shillings e seis pence.
Por dez anos, acho. Isto nos deixa um lucro liquido de noventa e duas libras,
dois shillings e quatro pence. Correto. Perfeitamente correto.
A secretária saiu.
— Olhe aqui — explodiu
Claude. — Não gosto disso. É um jogo sujo.
— Meu rapazinho!
— Jogo sujo. Uma mulher
decente... uma mulher direita. Contar todas estas mentiras. Enganá-la com estas
histórias sentimentais, que horror. Isso me deixou doente!
Parker Pyne endireitou os
óculos e olhou para Claude com uma espécie de interesse científico. — Meu caro
— disse secamente, — não me recordo de nenhum momento em que a sua consciência
o tenha preocupado em toda a sua... ahn... notória carreira... Seus negócios na
Riviera foram particularmente inescrupulosos, e a sua exploração da Sra. Hattie
West, mulher do Rei dos Pepinos da Califórnia, foi notável, pelo instinto mercenário
e empedernido que você demonstrou.
— Bem, estou começando a
me sentir diferente — resmungou Claude. — Não é direito... esse tipo de jogo.
Parker Pyne falou num tom
de voz como o do professor que repreende o aluno favorito — Claude, meu caro,
você praticou uma boa ação. Deu a uma mulher infeliz o que todas as mulheres
precisam — um romance. Uma mulher pode destruir uma paixão e não aproveitar
nada de bom dela, mas um romance pode ser guardado com carinho e relembrado por
muitos anos. Eu conheço a natureza humana, meu jovem, e posso lhe garantir que
uma mulher alimentará um romance por muitos anos — pigarreou. — Cumprimos com
pleno êxito nossa missão com a Sra. Packington.
— Bem — murmurou Claude. —
Mas isso não me agrada — e deixou a sala.
Parker Pyne apanhou um
fichário novo numa gaveta. Escreveu: Curiosos vestígios de consciência num
gigolô empedernido. Nota: acompanhar o desenvolvimento.
Fonte:
CHRISTIE, Agatha. O Detetive Parker Pyne.
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