sexta-feira, 8 de junho de 2012

Marie-Louise von Franz (O Problema da Sombra nos Contos de Fada) 2


O primeiro conto de fada que eu gostaria de abordar é alemão, relatado pelos Irmãos Grimm — os primeiros a coletar esse tipo de material, despertando o interesse de outros países de fazerem o mesmo. A estória é a seguinte:

OS DOIS ANDARILHOS

Montanha e vale não se encontram, mas às vezes seres humanos sim — sejam bons ou maus. Assim aconteceu de se encontrarem em suas andanças um alfaiate e um sapateiro. O alfaiate era um camarada pequeno, de boa aparência, divertido e alegre. Ele viu o sapateiro do outro lado da estrada e cumprimentou-o com um gracejo. 0 sapateiro não gostava de gracejos e fez uma cara azeda, parecendo querer brigar com o alfaiate, mas este começou a rir e ofereceu-lhe sua garrafa, dizendo: "Não se ofenda, beba um pouco e engula sua raiva". 0 sapateiro tomou um bom gole e sugeriu que poderiam caminhar juntos. "Muito bem", respondeu o alfaiate, "se você quiser ir até uma cidade onde existe muito trabalho..."

O alfaiate, sempre corado, alegre e bem disposto, não teve nenhum problema em arrumar emprego, nem em conseguir um beijo da filha do patrão por detrás da porta; e sempre que se encontrava com o sapateiro tinha mais dinheiro do que ele. Apesar de o sapateiro mal humorado nunca ter tanta sorte, o alfaiate ria e dividia o que tinha com seu companheiro. Quando já tinham andado um bom tempo na estrada, chegaram a uma enorme floresta onde existia um caminho que ia até a cidade do rei. Mas na verdade eram dois caminhos: um levava sete dias para chegar e o outro apenas dois; eles não sabiam qual era um e qual era outro, e nem a quantidade de pão que poderiam carregar e por isso ficaram discutindo. O sapateiro levava pão suficiente para sete dias, mas o alfaiate estava disposto a aceitar o risco e confiar em Deus. Era uma longa caminhada. No terceiro dia o pão do alfaiate já tinha terminado, mas o sapateiro não teve pena dele. No quinto dia o alfaiate sentiu tanta fome que pediu um pedaço de pão, pois já estava pálido e exausto. O sapateiro concordou, contanto que lhe arrancasse um dos olhos em troca. O infeliz alfaiate, que não queria morrer, só podia aceitar, e o sapateiro sem coração tirou fora seu olho direito. No dia seguinte o alfaiate sentiu fome de novo e no sétimo dia estava tão exausto que não conseguia ficar em pé. O sapateiro disse-lhe que teria piedade e lhe daria mais pão; mas, em troca, queria o outro olho.

Então o alfaiate implorou perdão a Deus pelo modo despreocupado com que tinha vivido até então e disse ao sapateiro que não merecia tal tratamento de sua parte, pois sempre tinha compartilhado tudo com ele e sem os olhos não seria capaz de costurar, só poderia mendigar. Daí o alfaiate lhe pediu que não o deixasse morrer ali, sozinho e cego. Mas o sapateiro, que tinha banido Deus de seu coração, pegou a faca e arrancou o olho esquerdo do alfaiate. Deu-lhe então um pedaço de pão, fez-lhe uma bengala e o conduziu. Quando o sol se pôs eles saíram da floresta e encontraram umas forcas. Lá o sapateiro abandonou o alfaiate cego. Este, extenuado de dor e raiva, caiu sonolento, dormindo a noite inteira. Quando acordou de manhã, não sabia mais onde se encontrava. De duas forcas pendiam dois pobres pecadores e na cabeça de cada um pousava uma gralha. As duas aves começaram a conversar e uma contou à outra que o orvalho da noite, que caíra da forca sobre os corpos, devolveria a visão a quem com ele lavasse os olhos. Quando o alfaiate ouviu isso, tirou o lenço do bolso, encharcando-o no orvalho da grama e, lavando a cavidade dos olhos, voltou a ver com ambos os olhos.

Logo o sol nasceu e na planície em frente se encontrava a cidade do rei, com seus belos portões e centenas de torres. Ele distinguia todas as folhas das árvores, via o vôo dos pássaros e a dança dos mosquitos no ar. Pegou uma agulha e quando percebeu que podia costurar tão bem como sempre, seu coração pulou de alegria e ajoelhando-se agradeceu a Deus. Então pegou sua trouxa e seguiu cantando e assobiando. Logo encontrou um potro marrom correndo pelo campo. Agarrou-o pela crina para montá-lo até a cidade. Mas o potro implorou--lhe a liberdade, dizendo que era muito jovem, que mesmo uma pessoa leve como o alfaiate lhe quebraria as costas, e pediu que o deixasse livre até que fosse bastante forte, e assim, talvez um dia, pudesse retribuir-lhe. Então o alfaiate libertou o potro.

Mas ele não tinha comido desde o dia anterior. Daí viu uma cegonha e prendeu-a por uma das pernas, pensando em cortar-lhe a cabeça para ter o que comer. Mas a cegonha lhe contou que era um pássaro sagrado que nunca prejudicava a ninguém, que era de grande utilidade para a raça humana e lhe implorou para continuar a viver. Disse ao alfaiate que um dia poderia lhe ser útil. Assim, deixou que ela voasse livremente. Depois o alfaiate avistou dois patos numa lagoa. Prendeu um deles, querendo torcer-lhe o pescoço para ter o que comer. Mas uma velha pata saiu nadando de trás de uns arbustos e lhe implorou piedade pelos queridos filhotes. "Pense", disse ela, "o que diria sua mãe se alguém quisesse acabar com você!" Assim o bem humorado alfaiate permitiu que ela ficasse com seus filhotes e colocou os patinhos de volta na água. Quando se voltou viu uma velha árvore oca em que as abelhas enxameavam. "Esta será minha recompensa por minhas boas ações", pensou o alfaiate, mas a abelha rainha aproximou-se e disse: "Se você tocar no meu povo e destruir minha colmeia, nós o picaremos com dez mil agulhas em brasa. Deixe-nos em paz, siga seu caminho e como recompensa lhe prestaremos algum serviço um dia". Assim o alfaiate foi-se embora, chegando esfomeado na cidade. Como era meio-dia entrou numa estalagem para comer; depois foi procurar emprego, achando um muito bom. Como era um ótimo alfaiate, logo tornou-se famoso e todos queriam um casaco confeccionado por ele — até que finalmente foi nomeado alfaiate da corte.

Mas, como acontece na vida, no mesmo dia seu antigo companheiro foi feito sapateiro da corte e quando este o viu com os olhos sãos, sentiu a consciência pesada e planejou destruí-lo antes que ele pudesse contar sua história. Assim, à tarde, tendo terminado seu trabalho foi procurar o rei, contando--lhe que o alfaiate era um camarada insolente que se vangloriara de poder encontrar a coroa de ouro, perdida nos tempos antigos. Na manhã seguinte o rei pediu para chamarem o alfaiate, ordenando-lhe que exibisse a coroa ou deixasse a cidade para sempre. O infeliz alfaiate arrumou sua trouxa e preparou-se para deixar a cidade, mas estava triste por ter que abandonar o lugar onde tudo tinha ido tão bem. Quando chegou à lagoa, onde tinha encontrado os patos, lá estava a velha pata limpando o bico na margem. 0 alfaiate contou o que lhe tinha aconte eido. "Só isso?", perguntou a pata. "A coroa caiu na água e jaz no fundo da lagoa. Deixe apenas um lenço na margem". Então ela mergulhou com seus doze filhotes; passados cinco minutos voltou com a coroa pousada nas asas e os doze patinhos à sua volta seguravam-na com o bico. Então o alfaiate, envolvendo-a com o lenço, levou-a ao rei que lhe deu uma corrente de ouro em recompensa.

Quando o sapateiro viu que a sua trama tinha fracassado, tornou a procurar o rei, dizendo que o alfaiate se vangloriara de poder construir um mo- delo do castelo real em cera, com tudo o que havia dentro. O rei ordenou ao alfaiate que realizasse essa façanha; e se faltasse um alfinete que fosse, ele seria aprisionado debaixo da terra pelo resto de seus dias. O alfaiate achou que as coisas iam de mal a pior, que ninguém poderia suportar isso, e mais uma vez ele se foi. Quando chegou à árvore oca, a abelha rainha voou para fora e lhe perguntou se estava com torcicolo, pois andava cabisbaixo. Aí o alfaiate lhe contou a história. Todas as abelhas começaram a zumbir e a rainha lhe disse que fosse para casa e voltasse no dia seguinte, na mesma hora, mas com um casaco bem grande. Quando voltou no dia seguinte, elas tinham construído um modelo perfeito. O rei ficou encantado e deu-lhe uma linda casa de pedra.

Pela terceira vez, a sapateiro contou ao rei que o alfaiate se vangloriara de poder fazer, no páteo real, um chafariz tão alto quanto um homem e tão claro como o cristal. Veio então a ordem de que o alfaiate teria que fazê-lo sob pena de ser decapitado. Mais uma vez ele se preparou para ir embora, com lágrimas caindo pela face. Mas o potro aproximou-se correndo, dizendo que sabia qual era o problema. Nem bem o alfaiate montou-o ele galopou até o páteo real, deu três voltas como um raio e na terceira jogou-se no chão. Nesse instante, ouviu-se um tremendo estrondo e uma imensa bola de terra voou pelos ares sobre o castelo; imediatamente depois, a água jorrou tão alta quanto um homem montado a cavalo e tão clara como o cristal. Quando o rei viu isso, abraçou o alfaiate na frente de todo mundo.

Porém, mais uma vez a sorte não durou. O rei tinha muitas filhas, cada uma mais bonita que a outra, mas nenhum filho, e o malvado sapateiro disse novamente ao rei que o alfaiate se vangloriara de poder trazer-lhe um filho através do ar. O rei chamou o alfaiate dizendo que se este lhe trouxesse um filho, poderia se casar com sua filha mais velha O alfaiate foi para casa imaginando o que poderia fazer para resolver o problema. Novamente pensando que nada poderia ser feito, arrumou sua trouxa e foi-se embora, dizendo: "Deixarei este lugar porque aqui não consigo viver em paz". Mas, chegando ao campo, encontrou sua velha amiga, a cegonha, que o saudou. Quando lhe contou sua história, a cegonha disse que não esquentasse a cabeça, pois há muito tempo trazia bebés para a cidade e dessa vez poderia tirar um príncipe do fundo de um poço. O alfaiate devia voltar para casa e ficar tranquilo. Dentro de nove dias deveria ir à corte onde também estaria a cegonha. 0 alfaiate foi para casa e, no dia marcado, dirigiu-se ao castelo e logo depois a cegonha chegou, batendo na janela. O alfaiate abriu-a e ela entrou, andando cuidadosamente com suas longas pernas no chão de mármore, carregando no bico uma criança que parecia um anjo. O bebé estendeu as pequeninas mãos para a rainha. A cegonha colocou-o no seu colo, deixando-a extasiada, e o alfaiate casou-se com a filha mais velha do rei.

E o sapateiro teve que fazer os sapatos para o alfaiate dançar na festa do casamento; depois ordenaram-lhe que abandonasse a cidade para sempre. Seu caminho através da floresta conduziu-o até a forca. Exausto de raiva e do calor do dia jogou-se no chão e quando fechou os olhos, querendo dormir, as duas gralhas pousaram e com grande alarido arrancaram-lhe os olhos. O sapateiro saiu vagando como um louco pela floresta e deve ter morrido lá, pois ninguém nunca mais o viu, nem ouviu falar dele.

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continua…

Fonte:
Marie-Louise Von Franz. A sombra e o mal nos contos de fada
[tradução Maria Christina Penteado Kujawski]. São Paulo : Paulus, 1985. Disponível em http://groups.google.com/group/digitalsource

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