Esse tipo indefinido de sofrimento pode ser superado através de uma forma expressa simbolicamente, ou talvez o rapaz acabe achando sua vida sem sentido e beba até morrer. Assim, podemos dizer que os estados de espírito, os anseios secretos e as necessidades das pessoas simples do povo expressam de maneira clara as necessidades do nosso tempo. Quando analiso pessoas desse nível sempre fico surpreendida com o material ar-quetípico de seus sonhos, os quais parecem estar muito mais ligados aos problemas de nosso tempo do que os sonhos de pessoas instruídas. Uma moça pobre, cheia de medos e com um horizonte nublado não percebe que talvez seja vítima de sua época e eventualmente sonha com nosso problema atual de forma clara e surpreendente. Podemos chamar tais sonhos de visões de nosso tempo operando na alma da pessoa. Quanta coisa podemos aprender analisando uma faxineira ou um joão-ninguém! Durante o intervalo me fizeram duas perguntas: uma delas é por que uma pessoa simples pode ter tais visões tão claras a respeito dos problemas de nosso tempo. Nós concluímos que esses indivíduos estão muito mais desamparados do que os das classes mais altas que podem construir uma casa de campo e assim encontrar uma forma de fugir e compensar a situação. Além disso, as pessoas instruídas percebem a situação em que se encontram e procuram tratar-se, não sentindo o problema do mesmo modo. Por exemplo, eles não são obrigados a viver miseravelmente numa rua barulhenta de onde não podem sair. As pessoas pobres estão mais expostas ao problema e, como sofrem mais, sua reação instintiva de cura é mais intensa.
Pediram-me que exemplificasse. Uma professora teve a seguinte visão: um dia ela foi a um encontro antropossófico numa catedral mundialmente famosa, numa cidade vizinha. Ao sair da casa onde um pastor fazia uma conferência ela viu nuvens escuras e um terremoto, como se fosse o fim do mundo. No topo da torre da catedral, em seu ponto mais alto, ela avistou a figura da morte a cavalo, de bronze, e uma voz disse: "A morte está descendo e começa a cavalgar sobre o mundo". A torre começou a contrair-se como uma mulher dando à luz e a figura da morte estremeceu. A mulher voltou correndo para o lugar do encontro dizendo: "Venham ver, a morte está se soltando". A amplificação era que haveria muitas mortes por doença e guerra; mas quando ela se voltou viu que a torre estava restaurada depois da morte ter descido. Agora, no lugar mais alto via-se uma figura feminina de pedra que lhe deu mais confiança.
Podemos compreender o sonho por um ângulo pessoal. Essa mulher sempre teve uma atitude muito cristã, com ideias de auto-mortificação, nunca se permitindo nada e alimentando um desejo secreto de morrer. Como achasse que não valia nada, decidiu ajudar os outros, desistindo completamente de sua própria vida, reconstruindo-a sobre o princípio da morte — em consequência, ela se arruinou psíquica e fisicamente com a atitude cristã de auto-mortificação. Este foi o aspecto pessoal da visão, sendo o princípio supremo a atitude cristã que servia mais à morte do que à vida. Ela vivia segundo os princípios da Imitatio Christi, que implica na morte aos 30 ou 32 anos, o que lhe causou as mais amargas consequências. Além disso, ela estava possuída pelo ânimus e excluía por completo o lado feminino da vida, ausência esta que corresponde também ao princípio cristão.
Num caso desses, o princípio da morte deve ser substituído por uma divindade feminina. Assim, a visão tinha uma conotação pessoal. Além do mais, nessa época ela achava que estava com um começo de câncer. Por outro lado, sua visão mostra o problema de nosso tempo com todas as suas implicações, inclusive o dogma da Assunção da Virgem Maria. Ela vivia um destino coletivo e o inconsciente coletivo aparece completamente nu no seu inconsciente. Essa mesma pessoa sonhou que um dia estava sentada ao ar livre quando ouviu um zumbido e viu um enorme disco redondo voando no céu — era uma aranha de metal cheia de seres humanos. Do interior da aranha uma voz repetia um hino ou oração: "Ponha-nos sobre a terra e guie-nos até o céu"; e o objeto ficou pairando sobre um prédio do parlamento, algo assim como um objeto não identificado; as pessoas lá dentro ficaram com tanto medo que rapidamente assinaram um tratado de paz e então a mulher percebeu que estava sem roupa. Ela tinha uma certa disposição es-quizóide, mas além disso pode-se perceber aqui a situação de nossa época. Estes seriam exemplos de sonhos e visões ingénuos.
Analisei também uma faxineira com acentuadas tendências suicidas totalmente convencida de que suas visões eram revelações religiosas que deveriam ser difundidas pelo mundo. Decidiu escrever um livrete e mandá-lo para Walt Disney; a julgar pelos esboços o livrete não era nada estúpido. O plano não era tão negativo quanto parece e Walt Disney seria capaz de reescrevê-lo, pois suas visões pretendiam claramente curar nossas dificuldades atuais. O problema foi que a mulher não tinha instrução suficiente para elaborar adequadamente os elementos que lhe surgiam e por isso empacava, tornando-se mórbida. Essas pessoas precisam ser ajudadas de uma forma concreta e a grande questão é se existe ou não suficiente vitalidade. Se ela tivesse tal vitalidade — o que de fato não acontecia — eu lhe teria dito para fazer um curso no Migros, ** aprender algo adequado e daí dedicar-se à sua visão, dessa forma encontrando uma ocupação e um objetivo. Infelizmente, um tipo esquizói-de quase nunca tem vitalidade suficiente, de modo que só podemos ajudar com a nossa própria vitalidade ou a de outrem; geralmente essas pessoas se encontram num estado físico miserável e por isso não conseguem dar forma ao seu conteúdo. No decorrer da História houve pessoas desse tipo que conseguiram realizar essa tarefa, como Jakob Boehme, um sapateiro que escreveu revelações religiosas baseadas em suas visões, muito embora não tivesse instrução suficiente para formulá-las de modo mais adequado. Mas ele teve um grande impacto em seu tempo e suas experiências interiores adquiriram significado para os outros. Tais "Jakob Boehmes" latentes existem em maior número do que se imagina. Assim sendo, se essas constelações forem suficientemente fortes na sociedade tudo pode acontecer, como se deu com a religião cristã que por assim dizer da noite para o dia produziu uma atitude religiosa completamen-te nova com base nos estratos inferiores da população. 0 cristianismo não atingiu de imediato as classes mais altas da sociedade romana, mas começou entre os escravos. Naquele tempo as pessoas tinham visões de Cristo e uma relação muito pessoal que se alastrava como fogo entre as pessoas simples do povo, expressando sua necessidade de livrar-se da escravidão e encontrar um novo objetivo: isso seria a renovação vinda de baixo. 0 rei foi substituído por um trabalhador ou escravo e isto se tornou o símbolo dominante, literalmente expresso na descrição de Cristo como Rei dos Reis e ao mesmo tempo servo dos homens.
Em nossa estória o rei ainda não foi deposto. O alfaiate não se torna príncipe mas casa-se com um membro da família real, tendo sido, juntamente com o sapateiro, servo da corte por algum tempo. Assim, encarando a estrutura como um todo, temos um rei, nem bom nem mau, mas meio decadente — o que se conclui pelo fato de precisar de ajuda para assumir um filho e de ter perdido a coroa. Ele portanto já está se aproximando do estado de rei decadente, mas ainda com força suficiente para manter sua posição e sua corte. Na esfera da consciência coletiva e suas representações dominantes dois fatores opostos vêm à tona, ficando o rei dividido entre um e outro. Primeiro o sapateiro ganha a confiança do rei, depois o alfaiate. O primeiro desempenha o papel do Diabo ou de Lúcifer, como Satã no Livro de Jó que critica Jó dizendo que ele é rico e também Piedoso mas somente enquanto na posse de seus bens. sapateiro, numa escala menor, funciona exatamente da mesma maneira nessa estória: ele ganha a confiança do rei e o alfaiate se vê sob tremenda pressão.
Eu afirmaria que o rei representa o símbolo coletivo dominante de nossa era, isto é, do cristianismo, embora não possa dizer exatamente em que época, se nos séculos XVI, XVII ou XVIII. Nos contos de fada é difícil definir os períodos, mesmo possuindo algumas dicas exteriores; se há menção de pistolas tem-se uma indicação, mas isso não é uma prova definitiva. O fato de termos um tipo de conto de fada similar a "Amor e Psique" mostra que sua estrutura básica deve ter dois mil anos ou mais, de forma que a data pode talvez ser comprovada pela situação arquetípica, por evidências interiores ou até mesmo exteriores. Pode-se dizer que o rei representaria o aspecto da atitude cristã dominante que ainda não atingiu o ponto de ser completamente deposto ou renovado, mas que já não possui a antiga força. Surgem dois fatores arquetípicos, dois deuses, Mercúrio e Saturno; constelaram-se na corte e a questão é qual deles vencerá. Nos contos de fada quando não existe a sombra, ocorre a duplicação de uma figura arquetípica, uma parte sendo a sombra da outra. O mesmo acontece quando a sombra individual não se constela em termos pessoais. Todos os complexos e estruturas gerais, isto é, complexos com uma base coletiva, possuem um lado sombrio e outro luminoso num sistema polarizado. Pode-se dizer que o modelo de um arquétipo compõe-se de duas esferas, uma luminosa e outra sombria. No arquétipo da Grande Mãe temos a bruxa, a mãe diabólica, a velha sábia e a deusa que representa a fertilidade. No arquétipo do espírito há o velho sábio e o mágico destrutivo ou demoníaco, representado em muitos mitos. O arquétipo do rei pode tanto indicar a fertilidade e a força da tribo ou nação como o velho que sufoca a vida nova e deve ser deposto. O herói pode ser a renovação da vida, o grande destruidor, ou ambos. Cada figura arquetípica possui sua própria sombra. Será esta sombra um fenómeno genuíno ou será que resulta de nossa maneira de encará-la? Não sabemos como é o arquétipo no inconsciente, mas quando ele toca a orla da consciência, como nos sonhos, que são fenómenos semi-conscientes, ele manifesta sua duplicidade. Somente quando a luz atinge um objeto é que aparece sua sombra.
Provavelmente os complexos no inconsciente são neutros — uma complexio oppositorum — tendendo a duplicar-se em Sim e Não, em mais e em menos, quando a consciência focaliza o objeto. O tema dos gémeos na mitologia mostra-nos que sempre existe um par, um mais introvertido e outro extrovertido, um macho e outro fêmea, um mais espírito e outro mais animal — entretanto um não é moralmente melhor do que o outro; e há também mitos onde um é bom e outro mau. Acho que quando existe uma atitude ética na consciência, a atitude do par é eticamente diferenciada, mas se não houver consciência ética isto não acontece. Em nossa estória existe uma diferença entre bem e mal. A atitude judaico--cristã aguçou o conflito ético no homem, e há portanto em nossa civilização uma tendência a julgar de acordo com esse princípio ético, sem deixar lugar às coisas mal definidas. Se uma figura arquetípica se desdobra, então ela se desdobra também moralmente, aparecendo não apenas como o bem e o mal mas como luminosa e menos luminosa — é esse o refinamento da resposta ética produzido por nosso sistema religioso.
O contraste entre extrovertido e introvertido se aplica entre o alfaiate e o sapateiro. O último leva pão para sete dias pensando na fome, enquanto o alfaiate tem a atitude despreocupada do extrovertido que passa de uma situação para outra sem premeditação; é neste sentido específico que ambos se opõem mutuamente. Se relacionarmos esse aspecto ao simbolismo do rei enquanto dominante cristão, duas figuras são consteladas, uma tendendo a uma introversão desagradável e a outra a uma despreocupada extroversão. Será que estamos fantasiando ou o cristianismo apresentou de fato tal problema?
Eu acho que sim. O simbolismo cristão, especialmente se servarmos suas ramificações na América (caracterizada por um certo ímpeto extrovertido), possui uma visão otimista da vida, uma grande confiança em Deus, o otimismo cristão básico — e isto é um tipo de atitude cristã porque o cristianismo julga Deus como sendo o bem, e o mal apenas como ausência do bem, o que cria uma atitude de confiança em si mesmo e em Deus, uma tendência a ignorar e a não enfatizar seja a realidade do mal em si mesmo e nos outros, seja a atitude de ajuda. Temos o desenvolvimento oposto no calvinismo e em outras facções pessimistas do cristianismo que apresentam uma atitude específica, marcada pelo espírito mercantil, um rigor ético totalmente não cristão e não caridoso, com um temperamento de pesada melancolia encontrado em certas ramificações do pensamento cristão. Isso corresponderia ao tipo do sapateiro, sempre com o olho pregado no lado duro e difícil da vida. Se estudarmos esses movimentos austeros na religião cristã veremos que não existe alegria na vida. As pessoas devem ser tristes, devem se arrepender de seus pecados, não devem gostar de boa comida pois isso desagradaria a Jesus Cristo. E esse tipo se encontra em toda parte, bem como esta tradição. Essas pessoas são ricas, elas têm o "pé na terra", são céticas, realistas, desconfiadas, e estão mais enraizadas do que as outras no lado sombrio deste mundo por se prevenirem tanto contra o mal e o lado obscuro da vida. As pessoas otimistas tendem a não ver as dificuldades e são atingidas por elas pelas costas, tanto pelos outros como por si mesmas, quando sua sombra destrutiva vem à tona.
Podemos portanto dizer que o alfaiate representa um tipo simples de atitude ingénua dentro do mundo cristão, com uma visão esperançosa e confiante em Deus, sendo o sapateiro o oposto, a sombra dessa atitude. Ambas são tendências da civilização cristã de uma certa época.
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continua…
Fonte:
Marie-Louise Von Franz. A sombra e o mal nos contos de fada
[tradução Maria Christina Penteado Kujawski]. São Paulo : Paulus, 1985. Disponível em http://groups.google.com/group/digitalsource
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