quarta-feira, 13 de junho de 2012

Ary dos Santos (Poemas Escolhidos)


O SANGUE DAS PALAVRAS
1

O poeta que nasce é uma criança
parida pela água torturada
uma nave que surge uma nuvem que dança
ao mesmo tempo livre e condensada.
O poeta que nasce é a matança
da palavra demente e enjeitada
que o chicote do poema torna mansa
depois de possuída e mal amada.
Quando o poeta nasce a madrugada
aperta os versos num abraço rouco
até que a noite fique esvaziada.
E enquanto das palavras pouco a pouco
surge a forma perfeita ou agitada
no mundo morre um deus ou nasce um louco.

(...)

5

Versos? Paguei-os. Alegria e raiva.
As palavras por vezes impotentes
outras vezes escorrendo sangue e seiva
ao morderem a vida com os dentes.
Poesia que és uns dias minha noiva
com seios de palavras complacentes.
Poesia que outras vezes grita e uiva
fêmea capaz de fecundar sementes.
Poesia minha amiga minha irmã
mulher da minha vida que inventei
para fazermos filhos amanhã.
Poesia minha força e meu castigo
meu incesto tão puro que nem sei
se é verdade que faço amor contigo.

ORIGINAL É O POETA

Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutro pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse um abismo
e faz um filho ás palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever um sismo.

Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte faz
devorar um jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.

Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce á rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.

Original é o poeta
que chegar ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse uma mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.

O RELÓGIO

Pára-me um tempo por dentro
passa-me um tempo por fora.

O tempo que foi constante
no meu contra tempo estar
passa-me agora adiante
como se fosse parar.
Por cada relógio certo
no tempo que sou agora
há um tempo descoberto
no tempo que se demora.

Fica-me o tempo por dentro
passa-me o tempo por fora.

RETRATO DO HERÓI

Herói é quem num muro branco inscreve
O fogo da palavra que o liberta:
Sangue do homem novo que diz povo
e morre devagar  de morte certa.

Homem é quem anónimo por leve
lhe ser o nome próprio traz aberta
a alma à fome  fechado o corpo ao breve
instante em que a denúncia fica alerta.

Herói é quem morrendo perfilado
Não é santo  nem mártir  nem soldado
Mas apenas  por último  indefeso.

Homem é quem tombando apavorado
dá o sangue ao futuro  e fica ileso
pois lutando apagado  morre aceso.
CANTIGA DE AMIGO
Nem um poema nem um verso nem um canto
tudo raso de ausência tudo liso de espanto
e nem Camões Virgílio Shelley Dante
--- o meu amigo está longe
e a distância é bastante.

Nem um som nem um grito nem um ai
tudo calado todos sem mãe nem pai
Ah não Camões Virgílio Shelley Dante!

--- o meu amigo está longe
e a tristeza é bastante.

Nada a não ser este silêncio tenso
que faz do amor sozinho o amor imenso.
Calai Camões Virgílio Shelley Dante:
o meu amigo está longe
e a saudade é bastante!

AUTO-RETRATO

Poeta é certo mas de cetineta
fulgurante de mais para alguns olhos
bom artesão na arte da proveta
narciso de lombardas e repolhos.

Cozido à portuguesa mais as carnes
suculentas da auto-importância
com toicinho e talento ambas partes
do meu caldo entornado na infância.

Nos olhos uma folha de hortelã
que é verde como a esperança que amanhã
amanheça de vez a desventura.

Poeta de combate disparate
palavrão de machão no escaparate
porém morrendo aos poucos de ternura.

SONETO

Fecham-se os dedos donde corre a esperança,
Toldam-se os olhos donde corre a vida.
Porquê esperar, porquê, se não se alcança
Mais do que a angústia que nos é devida?

Antes aproveitar a nossa herança
De intenções e palavras proibidas.
Antes rirmos do anjo, cuja lança
Nos expulsa da terra prometida.

Antes sofrer a raiva e o sarcasmo,
Antes o olhar que peca, a mão que rouba,
O gesto que estrangula, a voz que grita.

Antes viver do que morrer no pasmo
Do nada que nos surge e nos devora,
Do monstro que inventámos e nos fita.

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