RESUMO: Durante
séculos a mulher foi vista como ―o outro‖, contra o qual o homem impunha seu
poder, devendo ser subserviente nas sociedades patriarcais e detentoras do
poder, o que descreve a nossa e as sociedades de modelo eurocêntrico em geral.
Simone de Beauvoir, em Segundo Sexo, teoriza sobre as origens desse
fenômeno, numa obra fundamental para entender a situação feminina. E sua
estereotipação se transfere também para o campo literário, onde podemos ver personagens
femininas que são dominadas pelas prerrogativas masculinas. Far-se-á uma
pequena explanação dessas representações femininas no campo literário. Em
seguida, focaremos três romances de José Saramago, Ensaio Sobre a Cegueira,
Jangada de Pedra e Memorial do Convento, centrando o foco em
personagens que, no universo desse autor, são representadas de forma pouco
convencional em seus fazeres e poderes e saber se elas mantém a imagem
cristalizada de mulher ou se, ao contrário, elas rompem com tais estereótipos.
PALAVRAS-CHAVE: Crítica
Feminista, Personagem Feminina, Gênero, José Saramago.
1 - A condição feminina e crítica
feminista
É comum mesmo em uma época que se
auto-intitula moderna ouvir frases como ― lugar de mulher é na cozinha‖, ―ser
mãe é padecer no paraíso‖, ―tem coisas que só os homens podem fazer‖ etc. O
rompimento de muitas barreiras nos campos econômico, tecnológico e medicinal –
só para citar alguns – parece não ter tido muito reflexo no que tange à
condição feminina.
Claro está que nos tempos atuais as
mulheres conseguiram uma certa independência financeira: hoje podem trabalhar,
serem bem remuneradas e serem as responsáveis por manter financeiramente um
lar. Contudo, há um eco que não cessa de incomodar os ouvidos, herança de um
legado patriarcal que assolou as mulheres durante séculos. A mulher sempre foi
tida como ―o outro‖ e ainda o é.
Há tempos que a mulher luta pela
melhoria de suas condições, e por muito tempo não conseguiram muito avanço. De
fato, a questão feminista passou a ter uma voz - talvez ―rouca‖, no entanto uma
voz - nos últimos dois séculos. Vem em busca do direito de igualdade de
remuneração salarial, direto a voto, entre outros. na segunda metade do século
XIX o feminismo político começou a se organizar como movimento, mais especificamente
na Inglaterra e nos Estados Unidos. Através de documentos e petições, esse
movimento foi em busca da igualdade legislativa, ou seja, do voto, já que o
mesmo significava a maior bandeira feminista, pois, a partir dele, outros
objetivos poderiam ser alcançados. Contudo, foi exatamente nesta época que, na
Inglaterra, durante a Era Vitoriana, a mulher foi majoritariamente
discriminada, como se vê nas palavras de Zolin:
A mulher que tentasse usar seu
intelecto, ao invés de explorar sua delicadeza, compreensão, submissão, afeição
ao lar, inocência e ausência de ambição, estaria violando a ordem natural das
coisas, bem como a tradição religiosa [...] a condição de subjugada da mulher
deve ser tomada como sendo de vontade divina (ZOLIN in BONICCI & ZOLIN, p.
164).
Vê-se que se utilizou ao longo da
história, e porque não dizer, utiliza-se até os dias de hoje, vários meios para
manter a mulher como submissa, e um dos mais fortes é a tradição religiosa, que
―obriga‖ a mulher a manter-se como subjugada em relação ao sexo masculino
dominante. Segundo Pierre Bourdieu, o estado e o clero seriam os responsáveis
pela perpetuação desses valores, como ele diz em seu livro A Dominação
Masculina (2005):
Teríamos que levar em consideração o
papel do estado, que veio ratificar e reforçar as prescrições e proscrições do
patriarcado privado [...] Sem falar no caso extremo dos estados paternalistas,
realizações acabadas da visão ultraconservadora que faz da família patriarcal o
principio e o modelo da ordem social como moral, fundamentada na preeminência
absoluta dos homens em relação às mulheres [...] (BOURDIEU, 2005, p. 105).
A perpetuação de todos esses valores foi
feita por meio de fortes estruturas, que, por conta de seus próprios interesses
fixaram a mulher como submissa e inferior. Tanto a sociedade quanto a igreja,
fixavam suas justificavas em um ponto principal: família. Segundo o autor,
essas instituições pregavam a ―pureza‖ feminina em prol da constituição da
família. Uma mulher revolucionária, que fugisse aos padrões, tanto de esposa
fiel quanto na utilização de trajes mais ousados atingiria a moral e os bons
costumes, não sendo apta, assim, a constituir família.
É, sem dúvida, à família que cabe o
papel principal na reprodução da dominação e da visão masculinas; é na família
que se impõe a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da
representação legítima dessa divisão [...] Quanto à Igreja, marcada pelo
antifeminismo profundo de um clero pronto a condenar todas as faltas femininas
à decência, sobretudo em matéria de trajes, e a reproduzir, do alto de sua
sabedoria, uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade (BOURDIEU, 2005,
p. 103).
Em outras palavras, perpetuando a
família baseada na religião, perpetuava-se, então, a submissão feminina.
Inclusive criam-se mitos. Vê-se o exemplo da gênese bíblica judaico/cristã que
conta o nascimento de Eva, a primeira mulher, a partir de uma parte da costela
de Adão, seu homem. Ela não foi criada juntamente com Adão, foi moldada a
partir de uma parte do seu corpo. Deus não a criou por sua vontade
simplesmente, mas por ver Adão solitário e triste, ou seja, criou-a com um
único propósito: destiná-la ao homem.
Nem só sua criação é um mito de
subserviência, mas também sua atitude que causou a expulsão do paraíso é também
um mito que a enquadra como a megera, algo que vêm das trevas para afastar o
homem de seu contato com Deus. Ao comer a maçã e a ―ludibriar‖ o homem para que
esse também comesse do fruto, Eva passa a ser a culpada do desligamento com o
divino. Além de serva, ela é aquela que também não se pode confiar, que tem
pensamentos divergentes, que leva o homem para longe do seu verdadeiro caminho.
Simone de Beauvoir, grande referência na
crítica feminista diz que nas sociedades mais primitivas, o homem tinha que
sair à caça, visto que a mulher tinha que cuidar da prole. Sua inferioridade
física em relação aos homens, que tinham que empenhar pedras e armas, pode até
ter ajudado na construção da dicotomia de gênero, mas não foi um dos principais
fatores, já que suas tarefas domésticas – fabricação de vasilhames, tecelagem,
jardinagem e colheita – eram de fundamental importância na vida econômica
dessas sociedades.
Porém, quando um povo passou a
conquistar outro, a fazer escravos, a se impor em relação a outras tribos é que
a mulher sucumbe. Ao menos é o que afirma Beauvoir em seus estudos:
Um trabalho intensivo é exigido para
desbravar florestas, tornar os campos produtivos. O homem recorre, então, ao
serviço de outros homens que reduz à escravidão. A propriedade privada aparece:
senhor dos escravos e da terra, o homem torna-se também proprietário da mulher.
Nisso consiste a grande derrota do sexo feminino (BEAUVOIR, 1949, pg. 74).
Sua submissão, segundo Beauvoir, se
inicia, então, com o advento da posse e da propriedade privada. Ela já não é
mais aquela com quem se divide igualmente o trabalho. Mas se torna também posse
do conquistador, escrava do dominador. Anteriormente, o outro, o ser contra o
qual o homem de sua tribo se impunha era um mero animal que serviria de
alimento ou os outros homens de outras tribos quando essas se punham em
batalha. A partir do momento em que o conceito de posse emerge, ela passa a ser
o outro contra o qual o homem se impõe. Lá fora do lar, ele se impõe na guerra
para suas conquistas, e essa imposição reflete dentro do lar, relegando a mulher
ao seu papel de objeto-posse. A partir daí o homem reivindica a colheita, bem
como os filhos: é o aparecimento da sociedade patriarcal e detentora do poder baseada
na propriedade privada. Quando casada, liberta-se do pai, mas passa então a ser
propriedade do marido, não tem voz, não faz suas leis, não impõe seus
pensamentos.
Diz-se que a mulher acaba por tornar-se
inconscientemente submissa por várias razões. Uma delas é sua passividade na
relação sexual. Ela espera, passiva, a entrada ―triunfante‖ do homem, o ser
ativo na relação. Logo, pode-se entender que possuir um pênis é possuir o poder
dentro das relações. Se o homem impõe-se socialmente, intimamente o instrumento
que o leva a permanecer com esse poder é o falo. Lê-se Beauvoir ―O homem exalta
o falo na medida em que o apreende como transcendência e atividade, como modo
de apropriação do outro‖ (IBIDEM, 205).
2 - A mulher na literatura
A mulher também ficou, por longas
décadas e séculos, com um papel secundário nas obras literárias. Aos homens
eram dedicadas as principais personagens, as discussões, aventuras e reflexões.
Lucia Zolin discute a respeito do estereótipo feminino nas obras literárias.
Segundo ela, nas narrativas de autores masculinos, tudo tem uma perspectiva e
um direcionamento totalmente masculinos, como se todos os seus leitores também
o fossem. Logo, as personagens femininas ficam deixadas em um segundo plano,
seguindo paradigmas de estereótipos e papéis.
[...] as críticas feministas mostram
como é recorrente o fato de as obras literárias canônicas representarem a
mulher a partir de repetições de estereótipos culturais, como, por exemplo, o
da mulher sedutora, perigosa e imoral, o da mulher como megera, o da mulher
indefesa e incapaz, e entre outros, o da mulher como anjo capaz de se
sacrificar pelos que a cercam. (ZOLIN, p. 170).
Podemos enquadrar, segundo as definições
dadas acima, algumas das personagens mais importantes das Literaturas
Brasileira e Portuguesa. A mulher descrita somente como corpo, feita para o
sexo, aquela dedicada aos delírios da carne, sedutora e perigosa pode ser
representada pela personagem. Lúcia do romance Lucíola de José de
Alencar.
Lúcia saltava sobre a mesa. Arrancando
uma palma de um dos jarros de flores, trançou–a nos cabelos, coroando–se de
verbena, como as virgens gregas. Depois agitando as longas tranças negras, que
se enroscaram quais serpes vivas, retraiu os rins num requebro sensual, arqueou
os braços e começou a imitar uma a uma as lascivas pinturas; mas a imitar com a
posição, com o gesto, com a sensação do gozo voluptuoso que lhe estremecia o
corpo (ALENCAR, 1985, p. 42-43).
Vemos também muito fortemente na
literatura o estereótipo de mulher pura, incapaz de maldade, sendo sempre
representada com adjetivos alvos, elevada ao estado de anjo ou divindade:
Descansar nesses teus braços Fora
angélica ventura: Fora morrer — nos teus lábios Aspirar tua alma pura! Fora ser
Deus dar-te um beijo Na divina formosura! (AZEVEDO, 1996, p. 51)
Como a mulher que vive para o trabalho,
servindo o homem, podemos ver Bertoleza, de O Cortiço. Sofrida, sem ter
a quem recorrer, vê como único caminho trabalhar sol a sol para João Romão,
português que lhe mandava e desmandava.
Como sempre, era a primeira a erguer-se
e a ultima a deitar-se; de manhã escamando peixe, à noite vendendo-o à porta,
para descansar da trabalheira grossa das horas de sol; sempre sem domingo nem
dia santo, sem tempo para cuidar de si, feia, gasta, imunda, repugnante, com o
coração eternamente emprenhado de desgostos que nunca vinham à luz. Afinal,
convencendo-se de que ela, sem ter ainda morrido, já não vivia para ninguém,
nem tampouco para si, desabou num fundo entorpecimento apático, estagnado como
um charco podre que causa nojo (AZEVEDO, 1997, p. 133).
Resumidamente, a mulher ou é vista como
angelical, submissa e fiel ou é megera, objeto de sexo e semeadora da
discórdia. É claro no exemplo a seguir, retirado da obra Inocência, de
Visconde de Taunay:
Esta obrigação de casar as mulheres é o
diabo!.. Se não tomam estado, ficam juradas e fanadinhas...; se casam podem
cair nas mãos de algum marido malvado... E depois, as histórias! Ih meu Deus,
mulheres numa casa, é coisa de meter medo... (TAUNAY, 1998, p. 27).
Ou seja, há certo modelo de mulher e
―feminilidade‖, que se traduz quase como ―passividade‖, ou mesmo ―sexualidade‖
ou é demonizada como no trecho acima. São dois pólos opostos que as
representam, estereotipando-se nos dois, petrificando-a em uma imagem
inautêntica.
A mulher representada na literatura,
entrando num circuito, produzindo efeitos de leitura, muitas vezes acaba por se
tornar um estereótipo que circula como verdade feminina. Presa de
representações confunde significante e significado e busca estabelecer uma
continuidade do signo com a realidade (BRANDÃO, 2006, p. 33).
3 - A mulher em Saramago
As narrativas não foram escolhidas por
acaso. Há nelas personagens femininas que são marcantes por sua força de
atuação. Mulher do Médico, de Ensaio sobre a Cegueira, sacrifica-se, logo
no início da obra, em prol do marido. Ela o acompanha até ao manicômio onde os
cegos estão sendo alojados, fingindo estar também cega para, assim, estar junto
dele. A partir dessa atitude, outros fatos importantes se desencadeiam e tornam
sua participação na fábula de extrema importância. A sua imunidade acaba se
tornando um peso para ela mesma. Enquanto os outros estão cegos e jogados à
barbárie, ela, com os seus olhos literalmente abertos, acaba por testemunhar
toda a decadência humana, física e moral. No entanto, ela não se entrega,
sacrifica-se novamente, desta vez em prol dos cegos de sua camarata: reivindica
medicamentos para os feridos, demanda mais comida para a ala que passa fome, dá
banho nas outras mulheres e ajuda os feridos.
Sua pureza, ou se preferirmos, sua não
altivez, faz com que ela sequer considere a hipótese de tirar proveito da visão
intacta, por exemplo, pegando mais comida para si. Ela compartilha os horrores
da situação, seguindo com outras mulheres voluntárias até a ala vizinha para
servirem, com seus corpos, como moeda de troca por comida para os habitantes da
sua ala. E essa ―superioridade‖ que ela tem sobre os outros, ou seja, o fato de
enxergar em meio a cegos, ao invés de trazer vantagens, leva-a ao perigo. Após
assassinar com uma tesourada o líder da camarata que fazia das mulheres objeto
de estupro e/ou prostituição, ela correu o risco de ser entregue por sua
própria ala ao covil dos lobos da camarata três. Correu o risco, também, de se
tornar escrava dos próprios cegos, guiando-os aos banheiros, lavando suas
roupas, etc. Portanto, sua imunidade, ao mesmo tempo em que fortalece sua condição
de mulher-sujeito, que se coloca como uma líder, também a coloca em perigo.
Sua força de tutora dos cegos leva-a ao
encontro do abuso, recordando-nos de uma figura da mitologia celta: o rei
casado com a terra, soberano cuja vida seria oferecida em sacrifício na
eventualidade de seca e fome. O ditado ―em terra de cego, quem tem um olho é
rei‖ é assumido por ela, mas não no sentido que normalmente se imagina: ser rei
nesse contexto significa responsabilidade, cumplicidade e sacrifício, em vez de
vantagens, imunidade e ócio.
Tentando fazer uma leitura e tentando
encaixá-la nos estereótipos femininos encontrados na literatura escrita por
homens, ela bem se aproxima daquela cuja função é se anular perante aos outros,
sendo pura e compreensiva (mesmo diante da traição do marido com a amiga), já
que ela realmente se sacrifica pelos outros. Porém, ela é uma personagem que
foge desses estereótipos. A Mulher do Médico age, faz com que as coisas
aconteçam, fortalece-se e lidera todos em meio a uma sociedade patriarcal e
imunda. Ela se rebela, enfrenta o perigo ao entrar na camarata dos bandidos
para assassinar seu líder. Vê-se que sua imunidade não é a razão que a faz
líder, apenas reforça sua liderança dentro do manicômio e fora dele. Desde o
início da obra, pode-se perceber sua determinação e convicção, ao se proclamar
cega, mesmo não estando cega verdadeiramente, para acompanhar o marido até o
manicômio.
Blimunda, protagonista de Memorial do
Convento é filha de uma condenada à fogueira, ela conhece Baltazar
justamente durante a execução de sua mãe. A sua primeira manifestação de
independência ocorre aí: sem conhecê-lo, leva-o para morar consigo.
Nota-se, também, que no casal
Baltazar/Blimunda há uma igualdade de papéis. Não há, entre eles, dominador e
dominado. Ao contrário, no casal da nobreza, ou seja, na relação entre o Rei e
a Rainha, fica evidente a condição da mulher em relação ao patriarca: a
soberana serve apenas para a reprodução; em outras palavras, para dar um
herdeiro varão ao trono. A esterilidade da soberana pode desgraçá-la, uma vez
que transferiria a coroa para um parente próximo do rei. Em meio à nobreza, a
relação de poder existente na esfera social se transfere para a esfera
matrimonial. Na pobreza, percebe-se, como dito acima, que o casal se coloca no
mesmo nível hierárquico: outro ponto importante na leitura de Blimunda. Vê-se
que nas classes populares a mulher tem maior liberdade e nem mesmo a
virgindade, dentro dessas classes, é considerada um bem tão precioso. Essa
liberdade de ação é bem explorada por Saramago, em contraposição à mulher
anulada socialmente e sem força de ação, ou seja, a Rainha. Enquanto uma leva
um homem para morar consigo e estabelece dentro do seu relacionamento uma
igualdade hierárquica de papéis, a outra é anulada pela configuração de poder
existente dentro do casamento entre nobres.
Por força de sua ―estranheza‖, ou seja,
seu poder de visão (Blimunda podia ver as pessoas por dentro, tanto seu
interior físico quanto suas vontades, se estivesse em jejum) ela se torna
imprescindível para o vôo da Passarola. . Ora, se o vôo pode ser lido, no
romance, como metáfora da liberdade, o papel de Blimunda como a única
personagem que pode reunir os elementos (vontades) imponderáveis, etéreos, que
serão necessários na engenharia renascentista dessa liberdade, ganha um
significado inequívoco.
Depois do sumiço de seu companheiro, que
fez um vôo com a Passarola e nunca mais foi visto, Blimunda peregrina todo o
chão de Portugal em busca de seu amado. Procura-o por nove anos, indo de terra
em terra, povoado em povoado, cidade em cidade. Tal atitude poderia ser
considerada, por um lado, como uma atitude de submissão e fidelidade ao seu
marido; por outro, pode-se considerar essa posição de Blimunda como força de
mulher-sujeito, por ser fiel a si, ao seu amor, aos seus princípios,
enfrentando as convenções sociais de sua época, recebendo o rótulo de louca que
vem não se sabe de onde e vai não se sabe para onde. Chega até mesmo a
enfrentar um apedrejamento nessa sua peregrinação. Contudo, ela não esmorece,
vai até o fim, e encontra seu amado a arder na fogueira da Santa Inquisição.
Para finalizar a respeito de Blimunda,
ela também não se encaixa nos paradigmas preconceituosos enraizados na
literatura. De indefesa Blimunda nada tem. Como classificar como indefesa
alguém que, ao sofrer tentativa de estupro por um frade, tem força para matá-lo
e fugir. Megera ela é tampouco. Sabe-se que Blimunda, na busca por Baltazar, é
perseguida por esse frade, e só comete o crime em legítima defesa. Sua busca
incansável por seu amor e a resistência ao apedrejamento mostram sua força, a
de uma mulher que consegue se destacar em um universo falocêntrico e
patriarcal, fugindo aos padrões de representação feminina.
Para ambas as personagens, os efeitos e
acontecimentos inexplicáveis ajudam no fortalecimento de suas personalidades.
Porém, tais fenômenos apenas acrescentam força à já firme personalidade dessas
mulheres, são apenas uma força que as leva emergirem de um mar dominado pelo
masculino. Tanto a Mulher do Médico quanto Blimunda fogem dos estereótipos
femininos arraigados na Literatura. Em se tratando da primeira, desde o início
da obra ela toma sua posição de líder e enfrenta todos os problemas que lhe
atravessam o caminho. Quando a situação está se encaminhando para uma dominação
total, tanto moral e física, por parte dos bandidos da ala três, ela toma uma
decisão: assassinar seu líder. E o faz apesar de sua consciência acusá-la de
que acabara de matar um homem. Sua ―não altivez‖ em não se aproveitar da sua
imunidade para tornar-se uma tirana também reforça seu caráter. É mulher que
atua em meio a uma sociedade onde os homens ditam as regras.
Em Jangada de Pedra, livro do mesmo
escritor, Joana Carda, que acabara de perder do marido, encontra quatro pessoas
com as quais se passaram fenômenos inexplicáveis durante o desprendimento da
Península Ibérica do resto da Europa. Joana Carda é única figura feminina em
meio a três homens, e mesmo assim ela se sobressai tomando atitudes, dizendo
coisas que só uma mulher de forte caráter pode fazer. Ao se apaixonar por José
Anaiço, Carda (que curiosamente significa ―um tipo de máquina que desembaraça
as fibras têxteis‖ e ao mesmo tempo ―máquina que dilacera carnes‖) não hesita,
toma a atitude de beijá-lo, mesmo correndo o risco de ser considerada fútil
perante aos outros:
Disse Joana adeus até amanhã, e no
último instante, quando já tinha um pé no chão, virou-se para trás e beijou
José Anaiço, na boca, pois então, não esse disfarce de face ou comissura, foram
dois relâmpagos, um de rapidez, outro de choque, mas deste prolongaram-se o
efeito, o que não seria o contato dos lábios, tão doce, se tivesse prolongado
(SARAMAGO, 2006: 134 - 135).
Se a atitude de Joana Carda fosse
atribuída a um homem, este estaria seguindo a ordem natural das coisas.
Entretanto, atribuída a uma mulher, essa atitude poderia ser vista com ―maus
olhos‖. Mas Carda não teme tais preconceitos, sua vida já estava desintegrada
com a perda do casamento, ela arrisca amar e não se arrepende. Toma outras
iniciativas como aquela que quando se estava por decidir quem dormiria aqui ou
ali na casa de Joaquim Sassa, tendo apenas uma cama de casal, Joana Carda
decide e põe fim ao impasse:
Mas dois minutos ainda não tinha passado
e aí estava Joana Carda a dizer em voz clara, Nós ficamos juntos, em verdade
está o mundo perdido se as mulheres tomam iniciativas deste alcance,
antigamente havia regras [..] mas nunca por nunca ser este despautério, esta
falta de respeito diante de um homem de idade, e ainda dizem que as andaluzas
têm o sangue quente, vejam esta portuguesa, a Pedro Orce que aqui vai nunca
nenhuma disse assim cara a cara, Nós ficamos juntos (SARAMAGO, 2006: 148, 149).
Este irônico comentário do narrador só
reafirma sua posição de mulher-sujeito, definição dada pela crítica feminista
àquela personagem que age e toma decisões no universo patriarcal e detentora do
poder. Joana Carda decide passar a noite com José Anaiço. Isto não a torna
vulgar, e em muitos pontos da obra vê-se em Joana Carda uma mulher que, apesar
do sofrimento, é decidida e se mostra, por vezes, caridosa e de bom coração. O
próprio narrador afirma seu brio, vê que Joana Carda é uma mulher que decide
reagir, que não espera pelos outros. Vê-se o que ele pensa da personagem no
trecho em que os quatro amigos estão ficando sem dinheiro e se preocupam em
como consegui-lo:
Mas talvez não venha a ser preciso
chegar a tais extremos de ilegalidade, aqui no Porto irá também José Anaiço à
agência do banco onde guarda as economias, Pedro Orce trouxe todas as suas
pesetas, de Joana Carda é que nada sabemos quanto ao particular dos recursos,
pelo menos já vimos que não parece mulher para viver de caridades ou expensas
de macho (SARAMAGO, 2006: 152).
Joana Carda é daquelas pessoas que não
esperam, já sendo redundante, agem. No trecho em que o cão aparece, é ela que
entende que o cão quer que eles o sigam. E nas indefinições de ir ou não com
ele, ela decreta: Estou pronta a ir para onde ele nos levar, se foi para
isso que veio, quando chegarmos ao destino saberemos (Ibidem: 133). Ela
torna-se, pode-se assim interpretar, um ícone a ser seguido. Sua liberdade e
determinação a levam ao encontro dos três amigos, e a fazem decidir seguir
viagem com eles, atitude de extremo enfrentamento em se tratando de uma
sociedade patriarcal e detentora do poder. Isso se torna claro quando, ao
regressar a casa dos parentes para passar a noite, Joana Carda, no entrar da
noite, conta que decidira ir viajar com os três homens:
[...] Quando todos já dormirem na
Figueira da Foz, ainda duas mulheres estarão a conversar numa casa de Ereira,
no segredo da noite, Quem me dera ir contigo, diz a prima de Joana, casada e
mal-maridada (SARAMAGO, 2006: 135).
A prima, que tem como impedimento para
uma viagem deste tipo o mau casamento, e que provavelmente não se separa devido
aos valores da sociedade patriarcal, lança em Joana, desquitada e valente, seus
anseios, eis a razão do: ―Quem me dera ir contigo‖.
4 - Considerações finais
Em guisa de conclusão, todas as
personagens analisadas contribuem, através de suas atitudes, para uma
desconstrução dos estereótipos femininos mais conhecidos (a megera, a santa e
sedutora/perigosa), contribuindo também para uma desconstrução da ideologia de
diferença de gêneros: a dicotomia homem/mulher, em que um sempre é dominante e
o outro dominado. É importante, ao fim, frisar que não há um ―super-heroísmo‖
nas mesmas, e nem esse é o norte da crítica feminista. Elas sofrem, passam por
tribulações, e são pessoas absolutamente comuns, mas com uma diferença: agem. O
que se quer é mostrar mulheres normais que podem, sim, ser ativas, tomarem
decisões e ter um nível de igualdade em relação aos homens. Nota-se nas três
personagens que elas dividem os papéis com seus companheiros, tomando decisões,
participando ativamente da fábula.
Quanto à Blimunda, seus poderes a
fortalecem como mulher que atua, porém, mesmo sem eles, ela continua sendo
agente, tomando iniciativas sempre que mudanças sejam necessárias, tomando
decisões quando os outros não fazem. Ela também não se submete à dominação
masculina e detentora do poder, adota uma postura, juntamente com Baltazar, de
igualdade dentro de um ―casamento‖. Vê-se uma nítida diferença de valores em
comparação com o casal da nobreza, em que se tem o Rei como centro e dominador
e a Rainha como mero objeto para reprodução e com vontades e atuações
praticamente nulos. Em se tratando de Blimunda, sua independência contribui
para sua força de ação e realização de suas vontades.
Entende-se, por fim, que a Mulher do
Médico contém muito dos aspectos que tanto a crítica feminista reivindica: uma
igualdade de papéis entre homem/mulher, uma mulher com características fortes e
força de mudança, que seja determinada, espirituosa e líder e mesmo assim
continue sendo uma mulher, com todas as suas peculiaridades femininas. Ela não
pode ser julgada como indefesa ou pacífica só porque ―entende‖ a traição do
marido, bem como não há nada de mulher megera ou perigosa só pelo assassinato
que ela cometeu. Outras características dizem justamente o contrário: a força
de lutar por pessoas que não conhece, enfrentando situações perigosas, entrando
no covil do inimigo e assassinando o líder rival. Pode-se dizer que a
personagem Mulher do Médico é um exemplo para a desconstrução da dicotomia que
tanto a crítica feminista luta para desfazer.
E sobre Joana Carda, coloca-se aqui a
fala do narrador relatando o espanto dos homens em relação à inteligência e
força desta personagem: ―Vê-se na cara de José Anaiço e de Joaquim Sassa que
vão desorientados, a mulher que desceu à cidade de pau a proclamar impossíveis
actos de agrimensora saiu-lhes filósofa nos campos do Mondego‖ (SARAMAGO, 2006:
127).
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Fonte:
II Seminário Nacional em Estudos da
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- Cascavel / PR
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