Navegando dia desses pela Internet, aventura de capitão de primeiro-curso, dei de cara – dentre as formalidades mais ousadas do ponto de vista plástico-visual e de linguagem – com a página de um poeta cibernético. E na telinha do meu pentium, solenemente estampado, lá estava um velho soneto novo. Ou seria um novo soneto velho?
As duas proposições fizeram com que eu saísse do momento sistêmico virtual para a minha realidade real: - Peraí, mas a poesia não morreu? E o velho álbum de poemas das normalistas do meu tempo ainda existe? Onde? E as moiçolas lânguidas dos saraus?
As frases soavam como versos Foi aí que me dei conta, memória de declamador, de que eram versos mesmo, que ficaram bem guardados, do poeta Fernando Mendes Viana, pinçados do seu belíssimo "Alerta ecológico".
Fernando, nesse poema, denuncia e questiona a nossa vida atual, programada em escala industrial, que dizima poetas e borboletas. Então o poeta seria um ser em extinção, sem lugar nessa Nova Ordem Mundial. Diante deste paradoxo, o poeta, começa a perguntar a si e aos outros, à procura dos culpados:
"Afinal de contas não acabaram os domingos,
nem acabaram as adolescentes, nem os piqueniques.
Há menos ilusões, é bem verdade.
E os jardins e as praças estão mais poluídos.
Mas ainda há poetas e borboletas.
Por que nos caçam em extermínio metódico?"
A pergunta do poeta se encorpa com a deste que escreve a ti, leitor: Por que caçar Poetas? E borboletas? No poema, poeta e borboleta se confundem num só gênero do reino animal, mas com a ressalva de que
"algumas variedades acabaram: o poeta romântico e
a borboleta de lentas e grandes asas como leques azuis.
Transformados de tuberculosos em burocratas e
de malditos em bandejas, professores, críticos,
homens de propaganda, pires, pratos, medalhões de souvenirs.
Somos a esdrúxula atração de alunos e turistas.
Espetados atrás de vitrines ou esmagados
- entre as páginas gordas de um dicionário ou
Um vademecum de tabus e códigos –
As asas do poeta e da borboleta viram pó.
Mas para os poetas há mais esperança
Do que para os lepidópteros:
Vendemos menos".
A sentença sardônica do poeta cai como um paradigma: não se edita mais poesia por que poesia não vende e, por conseguinte, se não vende, morreu. Bom, dessas mortes anunciadas, já estamos acostumados, aliás, desde que fomos expulsos da República de Platão. Por isso, continuamos mortos, redivivos.
O surpreendente dessa discussão, o tema que nos interessa aqui, é mesmo a vitalidade desse poema de 14 versos, que desde a sua invenção (atribuída ao poeta siciliano Giacomo da Lentino, 1180-1190?) vem caminhando e construindo sua história com um charme irrefutável. É verdade que ele foi esnobado pelos românticos, mas logo os parnasianos fizeram dele seu tour-de force tão exacerbado, que os modernistas, em sua maioria, entre muxoxos e mugangas, deixaram-no à margem mas, imediatamente, a geração de 45 o entronizava de novo.
Acredito que a perenidade da forma esteja ligada ao seu modo de propor o "claro enigma" com seu enunciado, passando pela mensagem até o chamado insight do poema ou como queriam os parnasianos: a chave de ouro. Seja na forma petrarquiana, estrambótica ou inglesa, o velho soneto vem reagindo e sendo experimentado até por correntes da vanguarda. Claro que a linguagem e sua sintaxe são outras.
Mas a questão remete a um outro velho imbroglio. A poesia deve se voltar para as velhas formas ou abandoná-las por ousadias ditas modernas? Para ilustrar esse affaire tomo declarações de vários poetas, que não por acaso vêm de encontro ao que penso e professo.
Formalmente, a poesia não poderia chegar a ser mais livre do que já foi até hoje. Todas as experiências com a palavra organizada no conjunto poético já foram tentadas. Diante desse esgotamento estético, percebe-se uma volta, lenta e gradual, à poesia de forma fixa, à rima e à métrica, ou seja, o retorno àquela herança de mais de vinte séculos de prática poética ocidental e que não tem sentido ser esquecida e muito menos relegada.
Para o poeta, ensaísta e tradutor (Baudelaire, Eliot, Dylan Thomas) Ivan Junqueira, um dos representantes mais respeitados dessa corrente de pensamento, as vanguardas, sobretudo as que se desenvolvem fora do sistema da língua, aquelas que necessitam das muletas de outras modalidades artísticas, "tornam-se autofágicas e epigônicas, em sua busca pirrônica do novo pelo novo, o que levou um poeta como Eliot a exaltar o velho para que o novo pudesse sobreviver. É por isso que costumo dizer que não se pode "make it new" sem, em certo sentido, "make it old" e arremata citando Eliot: "não há o novo sem o antigo, mesmo porque o "tempo presente e o tempo passado estão ambos talvez presentes no tempo futuro, e o tempo futuro contido no tempo passado. (In "O estado do Maranhão",22/08/99, entrevista concedida ao poeta Luis Augusto Cassas).
O fato é que as vanguardas se exauriram na busca do novo, ao ponto de, pelo cansaço, retornarem com nova leitura, no afã de extrair de tais formas, novos efeitos poéticos.
Carlos Drummond de Andrade, em certo momento, inquirido a respeito do assunto, preferiu sugerir outra tarefa: "a de disciplinar o chamado caos moderno, a de pesquisar e estabelecer as leis da poética moderna, leis de gosto, de psicologia, de filologia, de ritmo e de métrica".
Manuel Bandeira, que iniciou sua carreira poética com um soneto, nos revela em seu "Itinerário de Pasárgada"(ele que havia pregado a licensiosidade contra o "lirismo-funcionário-público), surpreendendo críticos e leitores pelo seu gosto em poesia, das formas tradicionais: "gosto das formas fixas porque elas são padrões estróficos de raro equilíbrio, vivazes, mnemônicos, porque satisfazem o meu gosto de ordem, de disciplina".
Para Mário de Andrade, a poesia "se tornará cada vez mais livre, mas no sentido de libertação de escolas e de definições exclusivistas. Não se trata de voltar a processos de poética que jamais foram abandonados. Trata-se apenas de adquirir maior equilíbrio entre a realidade de um determinado estado-de-poesia e os elementos de poética que lhes sejam mais adequados".
Citei quatro opiniões de grandes poetas brasileiros como poderia ter trazido as de outros poetas cidadãos do mundo e de outras línguas. A recomendação que se entrega, principalmente para os que se iniciam agora, é, dentre outras coisas, a de que não importa a forma escolhida para o seu poema. O que importa são as suas idéias, imagens, ritmo, apresentadas a tribo numa linguagem do nosso tempo.
Para finalizar, volto ao nosso velho soneto novo e àquele, especialmente, estampado no site do cyberpoeta visitado, que me deslumbrou motivando e me empurrando a escrever este artigo e a um soneto que se segue depois deste.
PARA FAZER UM SONETO
Carlos Pena Filho
Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Neste curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.
Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.
Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.
Mas ao chegar ao ponto em que se tece
Dentro da escuridão a vã certeza,
Ponha tudo de lado e então comece.
*Carlos Pena Filho, poeta do azul como ficou conhecido, era pernambucano do Recife, autor de "O tempo da busca", "Memórias do Boi Serapião". Foi um renovador do soneto na temática e, sobretudo, na linguagem, carregada de oralidade, essencialmente musical e de forte apelo pictórico.
SIMPLES SONETO
Anibal Beça
Desejado soneto este que é escrito
sem as firulas graves do solene,
que leva na palavra o simples rito
da fala cotidiana. Não condene
no entanto, a falta de um estro especioso,
nem de brega rotule esse meu vezo.
Apenas sinta o som oco e poroso
do fundo mar de anêmonas, o peso
rarefeito das algas nos peraus.
Essa cantiga filtra nossos medos,
as culpas e os tabus, e dá-me o aval
para buscar o simples e em querê-lo
ornamento de estética espartana
na faxina ao supérfluo que se espana.
Fonte:
Artigo publicado no site de Bernardo Trancoso, http://www.sonetos.com.br/velhosoneto.php
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