A casa
do Carlinhos era uma casa antiga, pegada à Escola Dona Carlotinha de Araújo
Cintra.
Antigamente,
quando a avó do Carlinhos estava viva, ela ocupava as duas casas, que eram uma
só.
Depois
que a Dona Carlota morreu, a família separou o casarão em dois.
Uma
parte foi doada para a escola. E, na outra, ficou morando a família do
Carlinhos.
Carlinhos
gostava muito da avó, então vivia brincando no quarto que tinha sido dela.
Dona
Carlotinha era aquele tipo de avó que todo mundo quer ter. Brincava com os
netos de teatrinho, de acampamento no quintal, de amarelinha, tocava violão,
cantava e contava histórias.
E que
histórias! Dava a impressão de que ela sabia todas as histórias do mundo.
De
fadas, de lobos ferozes, de meninos e meninas que desobedeciam aos pais (era
dessas histórias que Carlinhos mais gostava), de reis, de piratas e de
marinheiros.
O quarto
de D. Carlotinha era todo forrado de madeira. E ainda tinham ficado nele alguns
livros, muitas fotografias antigas, objetos estranhos, caixinhas de música,
caleidoscópios, tinha um jogo engraçado com uma bola e um espeque, que a mãe do
menino chamava de bilboquê.
Carlos
se lembrava de uns livros grandes, com muitas figuras, que D. Carlota lia para
ele, mas eles tinham sumido. Assim como um retrato da avó, muito mais moça, com
um vestido bonito de cetim, com flores e bordados.
A mãe e
o pai de Carlinhos viviam atrás dele, insistindo que ele precisava ler mais.
Mas os
livros que davam para ele, do mesmo jeito que os livros que a professora
mandava ler, eram muito sem graça, para quem tinha conhecido as histórias de D.
Carlotinha.
Carlinhos,
nas horas vagas, ficava mexendo em tudo que tinha no quarto da avó. E tanto
escarafunchou dentro das gavetas, no fundo dos armários, nas molduras e nos
bordados que enfeitavam as paredes, que um dia, ele rodou uma rosa entalhada
num friso, a rosa estalou, a madeira se moveu e abriu-se uma porta na parede.
Era de
noite. E do outro lado estava escuríssimo. Mas, embora Carlinhos tenha ficado
com um pouco de medo, foi buscar uma vela e entrou pela porta, que ele já
estava chamando de misteriosa.
A luz da
vela tremia muito e levou algum tempo para que Carlinhos enxergasse o que
estava lá dentro.
Então o
coração do menino começou a bater forte, porque ele estava numa sala enorme,
toda forrada de estantes de livros e no fundo, pendurado na parede, estava o
retrato de sua avó, tão bonita, moça, num lindo vestido comprido, com um livro
na mão.
Para
Carlinhos, aquela era uma coisa mágica, era como se fosse um sonho, um espaço
desconhecido.
Depois
que passou a primeira emoção, o menino começou a olhar os livros nas estantes.
Tinha livros de todos os tamanhos, de capas de todas as cores.
De
repente Carlinhos encontrou um daqueles livrões que sua avó costumava mostrar a
ele.
O menino
abriu o livro com o coração batendo. Lá estava a história do Trenzinho do Nariz
Frio; a do Marinheiro Tatuado; a dos Patos que Cantavam o Hino Nacional. E
tinha a história da Menina que não Gostava de Nada, da Torre de Babel e uma,
muito engraçada, que se chamava Enquanto eles Dormem no Japão.
Carlinhos
chegou a ler uma ou duas, mas percebeu, de repente, que estava amanhecendo.
Ele não
sabia bem por que, mas não queria que descobrissem o seu segredo.
Então
botou o livro no lugar e voltou para o quarto da avó. Dormiu um bocadinho e
sonhou com aqueles livros todos e sonhou com sua avó, tão alegre, tão
engraçada, tão querida!
O menino
ficou com muito sono o dia todo, até tirou uma soneca depois do almoço, o que
espantou muito sua mãe.
E à
noite, depois que todos foram dormir, lá foi ele outra vez para a sala
misteriosa, que Carilinhos não entendia bem onde ficava. Ele achava que aquela
sala era um milagre que sua avó tinha preparado só para ele.
E leu
bastante, riu muito de umas gravuras e cartões-postais engraçados que
descobriu, encontrou um teatro de bonecos com que brincava no tempo da avó.
No dia
seguinte, o menino não pôde resistir e contou sobre a sala ao seu melhor amigo,
o João.
À noite,
depois que todos foram dormir, Carlinhos desceu as escadas bem devagarinho e
abriu a porta da frente.
Lá
estava o João, que tinha trazido a irmã, a Tuca. Os dois estavam loucos para
conhecer a sala misteriosa.
E a Tuca
também não pôde resistir.
No dia
seguinte ela trouxe a prima, a Julinha. E a Julinha trouxe o Marcelo e o
Marcelo trouxe o Cláudio, o Cláudio trouxe o Miguel e o Miguel...
Cada um
trazia sua própria vela para poder ver os livros, ler à vontade e brincar com
as mil coisas interessantes que todos os dias eles iam descobrindo.
Então
aconteceu uma coisa engraçada.
Começou
a correr pela cidade um boato que a escola Dona Carlotinha de Araújo Cintra
estava cheia de fantasmas.
As
pessoas juravam umas para as outras que tinham visto luzes... Luzes que andavam
atrás das janelas. Luzes que tremiam...
O vigia,
seu Virgolino, que na verdade dormia a noite inteira, jurava que eram mentiras,
"onde é que já se viu?".
Mas
muitas pessoas afirmavam que tinham visto pessoalmente as tais luzes.
Dona
Gertrudes Afonseca e Silva, que morava do outro lado da praça e ficava vigiando
na janela a noite toda, confirmava:
- São
fantasmas, sim senhor! Já vi cada sombra enorme lá dentro. Cruz credo!
E o seu
Benício de Carvalho Pinto, que sofria de insônia e andava pela cidade a noite
toda, confirmava:
-
Fantasmas! Dos bons! Eu é que não passo mais pela pracinha!
Os pais do
Carlinhos, dona Joana e seu Antonio, ouviram falar dos tais fantasmas, mas,
como eles não acreditavam nessas coisas, não ligaram muito.
Até que
um dia, a Joana levantou à noite para beber água e levou o maior susto com
aquela fila de crianças de pijama, que entravam pela porta da frente, subiam as
escadas e entravam no quarto de dona Carlotinha.
Então
ela chamou o Antonio e os dois foram atrás da criançada.
Atravessaram
o quarto e entraram pela porta secreta.
Uma
porção de crianças estavam sentadas às mesas, deitadas nos tapetes, recostadas
nas poltronas, com suas pequenas velas acesas, lendo!
- Ora
essa! - o Antonio exclamou.
- Que
ótima surpresa, essa criançada toda lendo!
Mas
Joana não estava entendendo:
- Ué!
Por que é que vocês não vêm ler de dia? Carlinhos respondeu por todos:
- A
gente pode?
- Claro
que pode - Joana respondeu.
- Para
isso são as bibliotecas. Ainda mais as bibliotecas das escolas!
- Mas
aqui não é a biblioteca da escola! - o João falou.
- É sim
- disse Joana. - Ninguém sabia desta passagem, mas aqui é a biblioteca da
escola. Vocês não conheciam?
- Nós
nunca entramos aqui! - disse a Tuca. - A biblioteca está sempre fechada!
O pai e
a mãe de Carlinhos se olharam!
- Ora
essa! - disse Antonio. - Pra que serve uma biblioteca fechada?
No dia
seguinte, Joana e Antonio foram falar com a diretora da Escola, dona Babete
Ventura.
Não sei
o que foi que eles conversaram. Mas na semana seguinte apareceu na frente da
escola uma faixa que dizia:
..............................
Festa da
biblioteca,
não
percam!
Última
semana de outubro!
..............................
A festa
na Biblioteca foi ótima!
Vieram
crianças de todas as escolas da redondeza.
Teve uma
surpresa muito grande para o Carlinhos.
Com essa
história toda, Antonio descobriu que os livrões de que Carlinhos tanto gostava
tinham sido escritos a mão por dona Carlotinha.
Ele
então mandou para a Editora Salamandra, e dona Regina, que é a editora lá
deles, gostou muito e resolveu editar as histórias todas.
Então
ela fez uma coleção bárbara, ilustrada pelo Walter Ono, pela Eva Furnari, pelo
Ziraldo, pelo Carlos de Brito, pela Helena Alexandrino, pelo Ivan Zigg e por
mais uma porção de ilustradores incríveis e eles todos vieram para a festa.
Teve o
lançamento dos livros e a Ana Maria Machado e a Sylvia Ortoff e o João Marinho
e a Anna Flora e a Edy Lima vieram e assinaram muitos autógrafos nos livros
deles.
Eu fui
também e ganhei das crianças o Prêmio Jacaré, que era um prêmio que elas
inventaram.
E as
crianças podiam andar pela biblioteca toda e ver todos os livros, e sentar às
mesinhas para ler o que elas quisessem.
E, daí
em diante, a biblioteca passou a ficar aberta, não só o dia inteiro, mas nos
sábados e domingos e, em alguns dias, até à noite.
E a
cidade inteira podia ser sócia e levar livros para casa e teve uma porção de
pessoas que deram mais livros para a biblioteca, todos ótimos, que ninguém ia
dar livros-porcaria para uma biblioteca tão boa.
E até
tiveram que ocupar outra sala da escola, para os livros todos caberem.
E agora,
quando o Carlinhos fica com muita saudade da vovó, ele vai até a biblioteca e
fica lendo os livros dela: do Trenzinho que Tinha o Nariz Frio, do Marinheiro
Tatuado, dos Patos que Cantavam o Hino Nacional...
Fonte:
Historinhas
pescadas. Vol.2. Editora Moderna.
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