Augusto fugiu espavorido daquela casa onde deixava um cadáver; o cadáver de Fernando, punido pela cólera do Senhor!...
E ele conviveu com esse homem durante tantos anos e chamava-lhe seu amigo!...
E a mulher que ele amara pediu-lhe perdão, confessando o seu erro e o seu arrependimento!...
Ela ainda o amava...talvez! e com esta lembrança ele sentia reviver todo o amor que lhe jurara nos seus dias felizes. Cem vezes quis voltar para trás e levar nos seus braços Carolina desfalecida, que ele reanimaria com o seu hálito abrasador, mas a cabeça andava-lhe à roda, as casas pareciam cair e as pernas tremiam-lhe. Uma febre ardente devorava-lhe o cérebro.
Uma hora depois, dois médicos contemplavam-no estendido sobre a cama.
Erguia meio corpo, apoiava-se com os cotovelos, e espraiando os olhos desvairados, perguntava com uma voz terrível: “Onde está Carolina?”
Depois...seus punhos cerravam-se, seus dentes rangiam e murmurando: Fernando! Fernando! caía de novo sobre o travesseiro. Era o delírio.
À claridade das velas, aquele rosto pálido, que se debatia na cama, parecia o dum espectro agitando-se sobre um túmulo.
À meia noite cessou-lhe a febre e um sono tranqüilo e longo o conservou deitado até às 10 da manhã.
Apenas acordou, contra a ordem expressa dos médicos, vestiu-se e saiu.
Quem o visse na rua diria ser um fantasma. Estava desfigurado como um cadáver; só seus olhos tinham um brilho imenso.
Dirigia-se apressado para a casa onde se desenrolara a seus olhos o drama da véspera: queria ver Carolina.
— Quero falar à menina Carolina, disse ele à dona da casa, apenas entrou.
— O senhor certamente enganou-se com a casa, aqui não há nenhuma Carolina.
— Pois ela não estava aqui ontem?
— Carolina!...não senhor.
— Se eu estava aqui quando ela desmaiou ontem à tarde!
— Ah! é verdade, mas ela chama-se Amélia.
— Mudou de nome! disse consigo o mancebo, tinha vergonha que a conhecessem! Depois dirigindo-se à mulher: Não lhe podia falar agora?
— Ela já cá não está. Saiu ontem mesmo quase à noite, deixando-me uma carta para entregá-la a uma pessoa que a devia vir aqui procurar ontem ou hoje. Talvez seja o senhor. Queira ter a bondade de me dizer o seu nome?
— Augusto ***.
— Justamente. Vou já buscá-la.
— Esperava que eu viesse ontem ou hoje e não quis que eu a visse! murmurou ele apenas a mulher saíra da sala. Compreendo-te, Carolina; tu ainda me amas e receavas que eu te repelisse agora que estás manchada, quando te havia deixado pura. Não, não! não te repilo, porque o meu coração bate da mesma maneira que batia há quatro anos; porque para mim sempre serás a mesma Carolina virgem, inocente, que eu respeitei como irmã; porque terias de mim o perdão voluntário dessas faltas que o mundo te fez cometer. Oh! para que me separei de ti? para que fiz aquela viagem?...
E abafou com o lenço as lágrimas que lhe saltaram dos olhos.
— Aqui está a carta, disse a mulher entrando.
Augusto recebeu-a e desceu precipitadamente as escadas. Queria lê-la em casa, porque aí ninguém viria perturbar-lhe a sua dor.
Meia hora depois, sentado a uma mesa, lia ele a carta de Carolina.
“ Augusto:
“Perdão! perdão! é de joelhos que to imploro. Não me amaldiçoes; por piedade, ouve-me primeiro. Bem sei que te rasguei o coração, porque tu me amavas deveras, mas já tenho expiado de sobra o mal que te fiz. Para que me deixastes tu, para fazer aquela viagem? Antes não fosses. Chorava todas as tardes debaixo do caramanchão, por ti; chorei três meses. Um dia vi Fernando. Um dia... Perdão! perdão! foi fraqueza; manchei o corpo, mas a alma ficou pura. Não amava senão a ti. Desde esse dia a tua imagem perseguiu-me sempre. Tremia diante da minha família, tremia diante de Deus, tremia diante de tudo! Era culpada! Uma noite, enfim, seduzida por aquele homem, que prometera desposar-me, reparando a falta, deixei a casa onde nascera para nunca mais voltar. Passei essa última tarde com minha mãe, que eu abracei e beijei mil vezes. Minha pobre mãe! que nunca mais te hás-de sorrir para mim! Meu pobre pai, que nunca mais me chamarás a tua Carolina!
“Oh! Augusto! Augusto! eu tenho sofrido muito.
“Depois, meu filho foi-me arrancado dos braços, e quando pedi a Fernando os meus dias felizes, a minha honra, as carícias de minha mãe e os afagos de meu pai... ele respondeu-me com uma gargalhada e abandonou-me.
“Para onde havia de ir? Para casa de meus pais? Eles fechariam a porta à filha indigna que lhes manchara o nome. Não tinha coragem bastante para suicidar-me...arrojei-me no abismo!...
Mas todas as noites pedia a Deus nas minhas orações, que te pudesse ver ainda uma vez antes de morrer, a ti, o único que tenho amado. Deus ouviu-me, Deus puniu Fernando.
“Adeus! parto para longe de ti; nunca mais me verás. Não, nunca mais, porque é impossível que o coração de um homem possa amar a mulher que o traiu. Mas ao menos lembra-te que Cristo perdoou a seus algozes, perdoa-me também. Oh! sim, Augusto, perdão! perdão para
CAROLINA.”
Sim, sim, perdôo-te, exclamou o mancebo deixando cair a carta das mãos: perdôo-te, porque sinto renascer todo o amor que eu julgava extinto. Carolina! Carolina! bradou ele, erguendo-se, vem a meus braços, vem, que eu te dou todo o amor que encerra o coração de um homem.
Meu Deus! meu Deus! dai-me a minha Carolina, que eu nunca amei outra mulher no mundo...
Continua…
Fonte:
ABREU, Casimiro de. Carolina. in SILVEIRA, Sousa da (org.). Obras de Casimiro de Abreu. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura -MEC, 1955. Texto-base digitalizado por: Fernanda Duarte, Rio de Janeiro – RJ
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