Artigo por Ana Lucia Santana
A saborosa obra A Casa de
Chá revela o olhar de uma mulher estrangeira, que adota a
identidade japonesa aos nove anos, sobre o Japão do século XIX. Aqui se revela
a visão de uma alteridade que não se assume enquanto tal, de uma exilada que
antecipa a condição pós-moderna.
Aurelia Bernard, filha de uma francesa, nascida em Nova
York, ainda menina sozinha no Japão, não tem mais lar ou pátria; ela vive o
dilema da busca ansiosa de uma definição sobre si mesma, pois se esforça para
nem mesmo se lembrar que um dia foi uma estrangeira em território japonês, mas,
ao mesmo tempo, não pode impedir que o olhar do outro sobre ela a represente,
pouco a pouco, como uma forasteira.
O leitor, página após página, vê a história do
Japão deste período se desenrolar justamente através da percepção deste ser sem
raízes, que disseca sem complacência o implacável processo de ocidentalização
deste país. Quando a menina, órfã de mãe, segue para as terras japonesas, que
recentemente haviam discretamente aberto as portas para o Ocidente, ao lado de
seu tio Charles, padre aspirante a missionário, esta nação ainda estava
mergulhada no regime feudal,
sob o comando do Xogum.
Era uma terra considerada selvagem, e seus habitantes deveriam ser
compulsoriamente convertidos ao Cristianismo.
Assediada pelo tio, Aurelia foge e, após um
incêndio que destroi a casa de Charles e boa parte do bairro da cidade de
Kyoto, quando ainda era conhecida como Miyako, ela se refugia na casa de chá
Baishian e dá início a uma metamorfose interior quando é aceita, finalmente,
pela família de Yukako. Neste instante ela ganha inclusive um novo nome, Urako,
que marca sua transformação e a profunda assimilação do universo cultural
japonês.
A partir de então, os caminhos destas duas
mulheres seguem, por muito tempo, linhas convergentes, que se cruzam
constantemente com o Chado ou Caminho do Chá, cerimônia tradicional
perpetuada há séculos pela família Shin, a quem Urako irá servir por muito
tempo. Desta forma ela acompanha os desenvolvimentos paralelos do Temae –
ritual do Chá praticado milenarmente por este grupo familiar, que se
confunde com a própria história do clã – e do próprio Japão.
O patriarca dos Shin, intitulado como
Montanha pela garota adotada para ser a dama de companhia de Yukako, é o mestre
de chá mais importante de sua terra. Filho de samurais, ele mesmo foi acolhido
pelos Shin quando o antigo chefe
da família, pertencente à casta dos comerciantes, ficou sem herdeiros.
Aos poucos, Urako se apega cada vez mais a
Yukako, que a considera, por sua vez, como sua irmã caçula. Com o tempo, porém,
ela desenvolve por sua senhora uma paixão proibida, a qual não pode de forma
alguma ser saciada. A jovem sublima este sentimento com uma dedicação cada vez
maior a sua amada, de quem se torna aliada na luta pela preservação da
cerimônia do chá e pela afirmação feminina no interior deste ritual em uma
cultura ainda fechada, que reserva as decisões mais importantes ao mundo
masculino.
A cumplicidade entre as duas mulheres se
intensifica à medida que o Xogunato é substituído pelo crescente poder do
Imperador, o que culmina na instauração da Era Meiji. Este novo regime permite a crescente
ocidentalização do Japão, a tradição e o novo se chocam, e Yukako e Urako se
unem para não permitir que este processo, aparentemente irreversível, destrua o
Caminho do Chá.
Ao mesmo tempo, a chegada dos estrangeiros no
Japão, anteriormente conhecidos apenas por ilustrações distorcidas em alguns
livros, abala a identidade de Urako, pois desta forma, contraposta aos novos
seres que invadem o território japonês, sua alteridade se acentua, e o olhar
dos japoneses sobre ela, nunca totalmente desprovido de cautela e preconceito,
se transforma radicalmente, definindo-a cada vez mais como não-japonesa.
A discriminação se intensifica, despertando
novamente em Urako a sombra de Aurelia, sua antiga identidade. Mais que nunca
emerge sua condição de exilada, ameaçadora e voraz. Embora o Japão acolha cada
vez mais o Ocidente em sua sociedade já não mais tão fechada, instaura-se o
antigo paradoxo. Eles precisam dos estrangeiros, mas não os desejam. Resta
saber o quanto este processo transformador refletirá sobre a antiga relação
entre Urako e Yukako.
A autora, Ellis Avery, pesquisou durante
cinco anos o Caminho do Chá em Nova York e em Kyoto. Ela escreveu diversos
artigos para o Publishers Weekly, o The Village Voice e o Kyoto Journal.
Algumas de suas histórias foram adaptadas para o teatro no New York’s Expanded
Arts Theater. Ela reside, hoje, em Nova York.
Fontes:
Avery, Ellis. A Casa de Chá. Editora Record, Rio de Janeiro, 2010, 488 pp.
Avery, Ellis. A Casa de Chá. Editora Record, Rio de Janeiro, 2010, 488 pp.
Artigo disponível em Infoescola http://www.infoescola.com/livros/a-casa-de-cha/
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