sábado, 21 de agosto de 2021

Versejando 73

 

Álvaro Posselt (Contos Minimalistas) 2


O CHAVEIRO


Em mais de vinte anos de profissão, nunca me bati tanto para fazer uma chave. No balcão, o freguês fazia pressão:

- Por favor, tenho pressa. O expediente já começou, esta é a chave da entrada. Já tem fila.

Apurei.

- Ah, aproveita e faz uma cópia, vou deixá-la com o chefe.

– Ai, meu Deus!

- Quanto é?

- Pro senhor é só vintão.

- Põe na conta, meu filho.

São Pedro sacana. Ainda bem que fiz uma cópia para mim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O PEGADOR

O cara havia pegado todas, de A a Z. Até as com letras mais difíceis. Mas faltava ainda a letra Q.

Não conseguia.

Há tempos sentia dores na mão.

- Você pegou quiralgia - disse o médico.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

LADY FIRST

A morte insinuou no meu ouvido:

- Atravesse a rua!

- Só se você for primeiro!

Fonte:
Alvaro Posselt. A Brisa é você, disponível no Recanto das Letras

Solange Colombara (Cristais Poéticos)

BEIJOS AO LUAR


Sorrisos tímidos, encantados,
Estrelas refletem nosso olhar.
Momento tão íntimo, desejado,
Mãos dadas, deitados na areia, a lua e o mar.

As palavras são desnecessárias;
Nossos corpos traduzem nosso amor.
Nossas almas estão eternizadas,
Naquela praia nos amamos, sem pudor.

O que houve a seguir, foi envolvente.
Felizes, apenas nos entreolhamos...
Sua boca na minha, novamente.

Quando seus lábios os meus encontrar
Uma leve brisa, o céu soprará...
Embalando nossos beijos ao luar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MINHA VERDADE

Tentaram frustrar a minha essência.
Fui contra, debati, não permiti.
Tentaram sugar minha pureza.
Com toda minha força, resisti.

Passado e presente não me ferem.
Algumas lacunas estão em branco.
Meus medos me impulsionam e impedem
Que eu me veja transtornada, em pranto.

Sozinha nessa busca, me empenhei.
Tentaram roubar todos os meus sonhos.
Na indelével certeza, os realizei.

No árduo caminho do amor sou aprendiz,
Meus silêncios gritam contestando.
Minha perfeita imperfeição, assim diz.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NOSSA MÚSICA

Sozinha na mesa, sinto a brisa
Suave, tocando no meu cabelo.
O par na pista, dança e desliza
Cuidando um do outro, com muito zelo.

Champanhe, minha única companhia,
Permite que, por alguns instantes,
Ali reviva tanta nostalgia...
Momentos nossos, eletrizantes.

Aos poucos, a vida normaliza,
Vai voltando à velha e boa rotina.
Ficar só, triste essa minha sina.

A música acaba, o casal se foi.
Me resta pelas ruas cantarolar...
The way you look tonight.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MELANCÓLICO

De nada adianta a lua silenciosa
Iluminando o mar tão graciosa.
De que adianta o céu lindo, radiante,
Cintilando estrelinhas brilhantes.

De que adianta tamanha alegria
Se em meu coração só há nostalgia.
De que adianta pássaros cantando
Sem nós dois felizes, nos amando.

Não adianta viver intensamente
Se o agora já não faz mais sentido.
Perdi o rumo do tempo vivido.

De que adianta o mundo girar, girar,
Se você não está no meu universo.
Sem você, o mundo se fez ao inverso.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

UM AMOR IMPOSSÍVEL

E devagar você foi chegando...
No meu coração se aconchegando.
Os meus dias frios tornaram-se verão,
De tanto carinho, houve a explosão.

Que vício delicioso é sua boca.
Nossos corpos colados sem roupa.
Nunca imaginei sentir algo assim,
Maravilhoso do começo ao fim.

Fomos felizes ao estarmos juntos.
Ríamos como dois adolescentes,
Nos olhávamos profundamente.

Era meu refúgio, meu bem querer.
Sem você, tudo perdeu o sentido.
Sem você, não conseguirei viver.


Fonte:
Solange Colombara. Meus momentos de hiato. SP: Areia Dourada, 2019.
Livro enviado pela poetisa.

Guimarães Rosa (As margens da alegria)

I
 
Esta é a estória.

Ia um menino, com os tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho. Saíam ainda com o escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos. A mãe e o pai vinham trazê-lo ao aeroporto. A tia e o tio tomavam conta dele, justamente. Sorria-se, saudava-se, todos se ouviam e falavam. O avião era da companhia, especial, de quatro lugares.

Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto conversou com ele. O voo ia ser pouco mais de duas horas. O menino fremia no acorçoo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A vida podia às vezes ralar numa verdade extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte afago, de proteção, e logo novo senso de esperança: ao não-sabido, ao mais. Assim um crescer e desconter-se — certo como o ato de respirar — o de fugir para o espaço em branco. O menino. E as coisas vinham docemente de repente, seguindo a harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as satisfações antes da consciência das necessidades. Davam-lhe balas, chicletes, à escolha. Solícito de bem-humorado, o tio ensinava-lhe como era reclinável o assento bastando a gente premer manivela. Seu lugar era o da janelinha, para o amável mundo.

Entregavam-lhe revistas, de folhear, quantas quisesse, até um mapa, nele mostravam os pontos em que ora e ora se estava, por cima de onde. O menino deixava-as, fartamente, sobre os joelhos, e espiava: as nuvens de amontoada amabilidade, o azul de só ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica, repartido de roças e campos, o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde; e, além, baixa, a montanha. Se homens, meninos, cavalos e bois — assim insetos? Voavam supremamente. O menino, agora, vivia; sua alegria despedindo todos os raios. Sentava-se, inteiro, dentro do macio rumor do avião: o bom brinquedo trabalhoso.

Ainda nem notara que, de fato, teria vontade de comer, quando a tia já lhe oferecia sanduíches. E prometia-lhe o tio as muitas coisas que ia brincar e ver, e fazer e passear, tanto que chegassem. O menino tinha tudo de uma vez, e nada, ante a mente. A luz e a longa-longa-longa nuvem.

Chegavam.

II

Enquanto mal vacilava a manhã.

A grande cidade apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão: a mágica monotonia, os diluídos ares. O campo de pouso ficava a curta distância da casa — de madeira, sobre estações, quase penetrando na mata. O menino via, vislumbrava.

Respirava muito. Ele queria poder ver ainda mais vívido — as novas tantas coisas — o que para os seus olhos se pronunciava. A morada era pequena, passava-se logo à cozinha, e ao que não era bem quintal, antes breve clareira, das árvores que não podem entrar dentro de casa. Altas, cipós e orquideazinhas amarelas delas se suspendiam. Dali, podiam sair índios, a onça, leão, lobos, caçadores?

Só sons. Um — e outros pássaros — com cantos compridos. Isso foi o que abriu seu coração. Aqueles passarinhos bebiam cachaça?

Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre a casa e as árvores da mata. O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão brusco, rijo se proclamara.

Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e ele, completo, torneado, arredondado, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto — o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonitroante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encacheado, andando, grugulejou outro gluglu. O menino riu, com todo o coração. Mas só bisviu (rever rapidamente). Já o chamavam, para o passeio.

III

Iam de jipe, iam aonde ia ser um sítio do Ipê. O menino repetia-se em íntimo o nome de cada coisa. A poeira, alvissareira. A malva-do-campo, os lentiscos. O velame branco, de pelúcia. A cobra-verde, atravessando a estrada. A arnica: em candelabros pálidos. A aparição angélica dos papagaios. As pitangas e seu pingar. O veado campeiro: o rabo branco. As flores em pompa arroxeadas da canela-de-ema. O que o tio falava: que ali havia "imundície de perdizes". A tropa de seriemas, além, fugindo, em fila, índio-a-índio. O par de garças. Essa paisagem de muita largura, que o grande sol alagava.

O buriti, à beira do corguinho, onde, por um momento, atolaram. Todas as coisas, surgidas do opaco. Sustentava-se delas sua incessante alegria, sob espécie sonhosa, bebida, em novos aumentos de amor. E em sua memória ficavam, no perfeito puro, castelos já armados. Tudo, para a seu tempo ser dadamente descoberto, fizera-se primeiro estranho e desconhecido. Ele estava nos ares. Pensava no peru, quando voltavam. Só um pouco, para não gastar fora de hora o quente daquela lembrança, do mais importante, que estava guardado para ele, no terreirinho das árvores bravas. Só pudera tê-lo um instante, ligeiro, grande, demorado. Haveria um, assim, em cada casa, e de pessoa?

Tinham fome, servido o almoço, tomava-se cerveja. O tio, a tia, os engenheiros. Da sala, não se escutava o galhardo ralhar dele, seu grugulejo? Esta grande cidade ia ser a mais levantada no mundo.

Ele abria leque, impante (inchado), explodido, se “eunava”... Mal comeu dos doces, a marmelada, da terra, que se cortava bonita, o perfume em açúcar e carne de flor. Saiu, sôfrego de o rever.

Não viu, imediatamente. A mata é que era tão feia de altura. E — onde? Só umas penas, restos, no chão. — "Uê se matou. Amanhã não é o dia-de-anos do doutor?"

Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podiam? Por que tão de repente? Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru aquele. O peru-seu desaparecer no espaço. Só no grão nulo de um minuto, o menino recebia em si um miligrama de morte.

Já o buscavam: — "Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago…”

IV

Cerrava-se, grave, num cansaço e numa renúncia à curiosidade, para não passear com o pensamento.

Ia. Teria vergonha de falar do peru. Talvez não devesse, não fosse direito ter por causa dele aquele doer, que põe e punge de dó, desgosto e desengano. Mas, matarem-no, também, parecia-lhe obscuramente algum erro. Sentia-se sempre mais cansado. Mal podia com o que agora lhe mostravam, na circunstristeza: um horizonte, homens no trabalho de terraplenagem, os caminhões de cascalho, as vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o velame-do-campo apenas uma planta desbotada, o encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira. Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço, e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia.

Abaixava a cabecinha.

Ali fabricava-se o grande chão do aeroporto — transitavam no extenso as compressoras, caçambas, cilindros, o carneiro socando com seus dentes de pilões, as betumadoras.

E como haviam cortado lá o mato? — a tia perguntou.

Mostraram-lhe a derrubadora, que havia também, com à frente uma lâmina espessa, limpa-trilhos, à espécie de machado. Queria ver? Indicou-se uma árvore: simples, sem nem notável aspecto, à orla da área matagal. O homenzinho tratorista tinha um toco de cigarro na boca.

A coisa pôs-se em movimento.

Reta, até que devagar. A árvore, de poucos galhos no alto, fresca, de casca clara..., e foi só o chofre: uh... sobre o instante ela para lá se caiu, toda, toda.

Trapreara tão bela. Sem nem se poder apanhar com os olhos o acertamento — o inaudito choque — o pulso da pancada. O menino fez ascas (aversão).

Olhou o céu — atônito de azul. Ele tremia. A árvore, que morrera tanto. A limpa esguiedez do tronco e o marulho imediato e final de seus ramos — da parte de nada.

Guardou dentro da pedra.

V
 
De volta, não queria sair mais ao terreirinho, lá era uma saudade abandonada, um incerto remorso.

Nem ele sabia bem. Seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica. Mas foi, depois do jantar. E — a nem espetaculosa surpresa — viu-o, suave inesperado: o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova, o grugulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro. Sua chegada e presença, em todo o caso, um pouco consolavam.

Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era já o vir da noite. Porém, o subir da noitinha é sempre sofrido assim, em toda a parte. O silêncio saía de seus guardados. O menino, timorato, aquietava-se com o próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe alma.

Mas o peru se adiantava até a beira da mata. Ali adivinhara o quê?

Mal dava para se ver, no escurecendo. E era a cabeça degolada do outro, atirada ao monturo. O menino se doía e se entusiasmava. Mas, não. Não por simpatia companheira e sentida o peru até ali viera, certo, atraído. Movia-o um ódio. Pegava de bicar, feroz, aquela outra cabeça. O menino não entendia. A mata, as mais negras árvores, eram um montão demais; o mundo.

Trevava.

Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! — tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a alegria.

Fonte:
João Guimarães Rosa. Primeiras Histórias. Publicado em 1962.

Estante de Livros (Um Pouco de seu Sangue e Outras Histórias, de Alfred Hitchcock)


O nome de Alfred Hitchcock desperta, em qualquer pessoa com algum gosto pelo cinema, a lembrança de filmes como “Um corpo que cai”, “O homem que sabia demais”, “Psicose”, “Janela indiscreta” e outras obras-primas do suspense. E, para um número já bem grande de felizardos amantes do gênero, não passou despercebida a obra “Histórias que mamãe nunca me contou”, na qual Hitchcock reuniu, com a mesma sensibilidade demonstrada em seus filmes, uma série de contos em que o inesperado, o suspense e até o sobrenatural tomam parte, mantendo o leitor preso do início ao fim das narrativas. 
 
Em sequência àquele livro, “Um pouco do seu sangue e outras histórias”, uma coletânea com narrativas tão ou mais excitantes que as anteriores e destinadas à mesma aceitação e repercussão entre os apreciadores do gênero.

Fonte:

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Adega de Versos 42: Vanice Zimerman

 

Anton Tchekhov (Brincadeira)

Um meio-dia luminoso de Inverno ... Um frio rijo, de rachar, e à Nádenka, de braço dado comigo, cobrem-se-lhe os caracolzinhos das têmporas e a penugem do buço com uma geada de prata. Estamos num morro alto. Dos nossos pés até lá baixo estende-se um declive liso em que o sol se olha como num espelho. Junto a nós, um pequeno trenó forrado de pano vermelho.

— Vamos escorregar, Nadejda Petrovna! - imploro-lhe eu. - Só uma vez! Garanto-lhe que chegamos lá baixo sãos e salvos.

Mas Nádenka tem medo. O espaço que se empina desde as suas pequeninas galochas até ao fundo parece-lhe um verdadeiro precipício assustador, desmedidamente fundo.

Basta-lhe olhar para baixo, basta eu propor-lhe que se sente no trenó, e já lhe esmorece o ânimo, se lhe entrecorta a respiração; o que não será se arriscar a lançar-se pelo precipício abaixo? Aí morre, enlouquece.

— Suplico-lhe! - digo eu. - Não tenha medo! Bem vê que isso é fraqueza, uma covardia sua!

Por fim, Nádenka concorda, e vejo-lhe na cara que a sua cedida é como arriscar a vida. Sento-a no trenó, pálida e trêmula, envolvo-a com um braço e lanço-me com ela no abismo.

O trenó voa como uma bala. O ar que cortamos chicoteia-nos o rosto, rosna, assobia aos ouvidos, belisca de raiva, quer-nos arrancar a cabeça dos ombros. A força do vento não nos deixa respirar. Parece que o próprio diabo nos abraçou com as patas e, com um rugido, nos arrasta para o inferno. Dos lados do trenó tudo se funde numa faixa comprida a correr vertiginosamente ... Mais um pouco e morremos, parece!

— Amo-a, Nádia! - digo a meia voz.

Agora o trenó já desliza mais devagar, cada vez mais devagar, o rugido do vento e o zumbir dos patins já são menos assustadores, já não se entrecorta a respiração e, logo, estamos em baixo. Nádenka está mais morta do que viva. Pálida, quase não respira...

Ajudo-a a levantar-se.

— Por nada deste mundo eu volto a descer - diz ela, arregalando para mim uns olhos cheios de terror. - Por nada deste mundo. Por pouco não morri!

Pouco depois, recomposta, começa então a espreitar-me nos olhos, interrogativa: teria sido eu que disse aquilo ou foi iludida pelo barulho de furacão da descida? Por mim, estou ao pé dela, a fumar, a examinar com muita atenção a minha luva.

Pega-me pelo braço e passeamos demoradamente pelo sopé do monte. O enigma, pelos vistos, não a deixa em paz. Foram ou não foram proferidas aquelas palavras? Sim ou não? Sim ou não? É uma questão de amor-próprio, honra, vida, felicidade, uma questão muito importante, a questão mais importante do mundo. Nádenka perscruta-me a cara com um olhar triste, impaciente, responde a despropósito, está à espera que eu fale. Oh, que rosto lindo, que jogo de expressões! Vejo que luta consigo própria, que tem necessidade de falar, de dizer alguma coisa, de perguntar, mas não acha as palavras, embaraça-se, tem medo, a felicidade impede-lho ...

— Sabe uma coisa? - diz sem olhar para mim.

— O quê?

— E se fossemos... escorregar mais um vez?

Subimos ao monte de gelo por uma escada. De novo sento a pálida e trêmula
Nádenka no trenó, de novo voamos para o precipício terrível, de novo ruge o vento e zumbem os patins, e de novo, no momento mais vertiginoso e atroador da descida, digo a meia voz:

— Amo-a, Nádenka!

Quando o trenó pára, Nádenka passa o olhar pelo monte que acabaramos de descer, depois perscruta a minha cara demoradamente, escuta a minha voz indiferente e impassível, e toda ela, todinha, até ao regalo e ao capuz dela, toda a figura dela exprimem uma perplexidade extrema. Está-lhe escrito na cara:

«O que se passa aqui? Quem disse aquilo? Foi mesmo ele, ou pareceu-me?» Esta incerteza desassossega-a, faz-lhe perder a paciência. A pobre nem responde às perguntas, carrega o sobrolho, está prestes a chorar.

— Não quer ir para casa? - pergunto-lhe.

— Eu ... eu gosto de escorregar no trenó - diz ela corando. - E se fossemos mais uma vez?

«Gosta» de escorregar mas, ao sentar-se no trenó, está como das outras vezes, pálida, quase não respira de medo, treme.

Descemos pela terceira vez, e vejo como ela me olha na cara, me segue o movimento dos lábios. Mas eu aperto um lenço contra os lábios, tusso e, chegados a meio do monte, consigo pronunciar:

— Amo-a, Nádia!

E o enigma continua enigma! Nádenka está calada, pensa... Acompanho-a a casa, ela tenta ir mais devagar, abranda o passo, sempre à espera que eu diga aquelas palavras. E vejo como a alma dela sofre, que esforço faz para não dizer:

«Não é possível que tenha sido o vento! Também não quero que tenha sido o vento!»

No dia seguinte, de manhã, recebo um bilhete: «Se for hoje ao monte de gelo, venha buscar-me. N.» Desde então vou todos os dias com Nádenka ao monte de gelo e, ao voarmos a pique no trenó, pronuncio sempre a meia voz as mesmas palavras:

— Amo-a, Nádia!

Nádenka depressa criou o hábito desta frase, como se cria o hábito do vinho ou da morfina. Não pode viver sem ela. É verdade que escorregar pelo monte de gelo continua a meter-lhe medo, mas agora o medo e o perigo dão um fascínio especial a estas palavras de amor, palavras que continuam a ser um enigma e lhe moem a alma. Os suspeitos continuam a ser os mesmos: eu e o vento ... Não sabe qual dos dois lhe segreda o seu amor, mas, pelos vistos, já não se importa; seja qual for a taça, o principal é inebriar-se.

Sucedeu que, ao meio-dia, fui sozinho ao monte; escondido entre a multidão, vejo Nádenka a aproximar-se do monte, a procurar-me com os olhos... Depois, sobe timidamente as escadas... E se mete medo descer sozinha, oh, que medo! Está pálida como a neve, treme, caminha como quem vai para a execução, mas vai, anda sem hesitar, decidida. Pelos vistos, terá resolvido tirar a prova: ouvirá as palavras maravilhosas, doces, não estando eu com ela? Vejo-a, pálida, com a boca aberta de terror, a sentar-se no trenó, a fechar os olhos, despedindo-se para sempre da terra, vejo-a a partir... «Z-z-z» - zumbem os patins. Não sei se Nádenka ouve essas palavras... Só a vejo a sair do trenó, fraca, abalada. Pela cara dela, não saberá se ouviu ou não ouviu alguma coisa. Enquanto deslizava, o medo deve ter-lhe tirado a capacidade de ouvir, de distinguir os sons, de perceber...

Chega o primaveril Março ... O sol é já mais carinhoso. O nosso monte de gelo escurece, perde o brilho e, por fim, derrete. Acabaram-se os passeios de trenó. A pobre da Nádenka já não tem onde ouvir aquelas palavras, também já ninguém lhe as pode dizer, porque o vento se calou e eu me preparo para ir a Petersburgo - por muito tempo, talvez para sempre.

Uma vez, antes da minha partida, uns dois dias antes, estava eu sentado ao crepúsculo num jardinzinho, separado do quintal de Nádia por um tapume alto e espetado de pregos... Ainda estava frio, por baixo do estrume ainda havia neve, as árvores ainda estavam despidas, mas já cheirava à Primavera, e as gralhas, acomodando-se para dormir, gritavam alto. Aproximo-me da cerca e fico muito tempo a espreitar por uma fenda. Vejo como Nádenka sai para a soleira e lança um olhar triste, angustiado, para o céu... O vento primaveril sopra-lhe diretamente no rosto pálido, sofrido... Lembra-lhe o vento que outrora nos rugia no monte e como ela ouvia aquelas duas palavrinhas, e o rosto dela toma-se triste, muito triste, pela face desliza-lhe uma lágrima... E a pobre rapariga estende as duas mãos como que a pedir que o vento lhe traga outra vez aquelas palavras... Então, fico à espera que o vento sopre para dizer a meia voz:

— Amo-a, Nádia!

O que acontece com Nádenka, santo Deus! Solta um grito, abre-se num sorriso amplo e estende as mãos ao encontro do vento, alegre, feliz, tão bonita.

E eu vou fazer as malas ...

Isso foi há muito tempo. Nádenka já se acomodou: casaram-na ou casou de livre vontade — tanto faz — com um funcionário da tutela, tem três filhos. Mas não esqueceu como íamos os dois para o monte de gelo, como o vento lhe trazia aquele «amo-a, Nádenka!»; para ela, é agora a mais feliz, a mais comovente e maravilhosa lembrança de toda a sua vida ...

Quanto a mim, agora que fiquei maduro, já não compreendo por que lhe dizia aquelas coisas, por que brincava assim…

Fonte:
Anton Tchekhov. Contos. Vol. 1. Lisboa/Portugal: Relógio D' Água, julho 2001.

Luiz Otávio (Um Coração em Ternura…) 8

AS DUAS RÃS
(de um conto japonês)

Duas rãs, muito curiosas,
dois potes tendo encontrado,
jogaram-se dentro deles,
num gesto brusco, impensado...

Mas logo se arrependeram
ao verem os potes cheios..,
Queriam se libertar
porém não achavam meios!

De um pote, dizia uma,
desesperada da vida:
"É melhor logo morrer,
pois já me sinto perdida!"

E assim falando assim fez,
não demorou um segundo!
Despediu-se comovida,
e sem lutar foi ao fundo...

Pos-se a segunda a bater,
pela noite toda afora!
Sem qualquer ajuda ter,
não desesperava embora!

... Num pote cheio de leite,
acharam de madrugada,
uma rã bem lá no fundo,
imóvel, morta, gelada...

E noutro pote, bem perto,
clara manteiga se via,
e em cima dela, cansada,
outra rã, feliz, dormia...

Não serve só esta história
apenas para criança...
— Imitai sempre esta rã,
que lutou sem esperança…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PURIFICAÇÃO
(Dos "Versos Áureos" de Pitágoras)

Sê bom, sincero e firme de vontade.
Escuta os bons conselhos, com carinho.
Sê forte, casto e justo. Ama a Verdade
Procura sempre o reto e bom Caminho.

Destrói toda Paixão que torpe, invade
teu peito, e nele quer fazer seu ninho...
Lembra-te sempre que a Felicidade
é flor... E que também possui espinho.

Cala (tem fé!) se o Erro prevalece,
suporta tua Dor com toda calma
e o Mal que te fizeram sempre esquece!

Os olhos fecha a toda prevenção.
Tal como ao corpo nutra bem tua alma
e atingirás a Purificação!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

RECORDAÇÕES SOMBRIAS

Não sei porque, tão só, neste momento,
vendo a Tarde, que aos poucos, vai morrendo,
percorrem um a um, meu pensamento,
os quadros de um Passado tão horrendo.

Lembrando com terror este Passado,
em que a vida era presa por um fio,
recordando esta fase, amargurado,
o meu corpo ainda sente um calafrio...

Oh! as noites de Dor em que eu passava,
à meia luz, imóvel, recostado,
temendo o próprio ar que respirava,
escutando o relógio compassado...

Oh! as tardes tão longas e sombrias,
mergulhado no Tédio e na Tristeza!
Oh! as horas compridas e tão frias,
de silêncio, desânimo, incerteza!

Agora, do Passado, já distante,
julgo ter sido incrível pesadelo,
mas tão claro ainda e horripilante,
que sinto medo e horror ao descrevê-lo...

Só quem um dia teve a sua Sorte,
violenta e bruscamente interrompida,
só quem um dia viu de perto a Morte,
dará valor intensamente a Vida!

Por isso, com os olhos rasos d'água,
lembrando, com mais calma, o meu sofrer,
a Deus bendigo toda minha mágoa
e agradeço esta graça de viver!

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias.
RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Sammis Reachers (O Paraguaio de Campina Grande)

Naquele tempo Everaldo trazia muambas do Paraguai. Relógios, mais especificamente. Era um paraibano branco, forte, de cabelos à la Rambo. Eu trabalhei para Everaldo de 94 a 96, numa banca de camelô em Alcântara, São Gonçalo. Vendia os mais finos medidores temporais de toda a cristandade e além: aquilo era um harém da relojoaria universal, de todas as marcas, dos cantões da Suíça a Tóquio, passando por Paris e Nova Iorque, tudo com escala – ou montagem – em Pequim, Xangai, Guangzhou, é claro, e a 20% de comissão em cada venda. Eu era um garotão viciado em quadrinhos, fliperamas e rock’n roll, e dava pra viver meus vícios sem passar fissura.

Hoje tem alguma graça, mas antes me chocava o inusitado, o vão de tal morte: um caroço de azeitona.

Foi em 2003, na semana em que o então prefeito do Rio, César Maia, reinaugurou o Pavilhão de São Cristóvão, a popular Feira Nordestina. Entre um tira-gosto e outro Everaldo tomava, assentado numa roda de conterrâneos, uma cachaça vermelha, da terrinha, depois fui saber, dita justa ou desabusadamente ‘Santa Rita a Vermelha’. Estranho nome para uma santa, ou cachaça, mas dá na mesma, pensei na época. Engasgou com o tal tira-gosto oliváceo, levantou-se já vermelho, deram-lhe socos nas costas, e tapas, e mais socos, muitos socos pelo que me disseram, mas não adiantou. Caiu ali, agora arroxeado, puseram-se a abaná-lo, mas já não havia ar, já não havia anima (espírito) naquele corpo.

Tinha na bolsa uma seleta de dez cordéis que me comprara, que eu havia lhe encomendado. Eu, carioca filho de mineira com paranaense, adorava cordéis, como adorava aqueles livrinhos de western, de bolso, que brasileiros escreviam com pseudônimos norte-americanos. Pulp-fictions, assim como os cordéis eram os pulp-fictions verdes-amarelos. Não sei porque digo isso, não quero fugir do assunto, do Everaldo, mas sempre que me lembro dele penso nos cordéis, ‘João Cabrobró contra Satanás’, ‘A rixa do Carcará contra o Sapo-boi’, ‘Morte e Vida Severina’ e outras fugas, que é sempre fuga a literatura; fuga da secura do sertão, da secura nonsense e repetitiva da vida, do nonsense seco e tedioso da morte.

Estante de Livros (O Guardião de Livros, de Cristina Norton)


Cristina Katz Norton nasceu a 28 de Fevereiro de 1948, em Buenos Aires, Argentina. Reside há mais de 30 anos em Portugal e optou pela nacionalidade portuguesa. A sua obra engloba a poesia, o romance e o conto, da qual destacam-se os livros O Afinador de Pianos, O Lázaro do Porto, Os Mecanismos da Escrita Criativa, O Segredo da Bastarda, A Casa do Sal e agora O Guardião de Livros.

Confeccionado em papel pólen, com uma capa belíssima e letras douradas no título, o livro é realmente muito bonito. Mas, acontece que O Guardião de Livros é mais que apenas uma capa bonita.

A forma de narrativa de Cristina Norton é completamente envolvente; ela utiliza construções de frases, fazendo inversões na estrutura das frases, dando seguimento em outras, mas depois ali residia o estilo da autora, sua marca. Além disso, ela consegue escrever passagens extremamente tristes, até mesmo cruéis, para, em seguida, trazer um toque sempre ácido, deliciosamente irônico.

O pano de fundo da história é a vinda da família real para terras brasileiras, enquanto Napoleão invadia países da Europa. O personagem principal é Luis Joaquim Marrocos, um jovem português que trabalha na Real Biblioteca Nacional de Portugal, seguindo os passos de seu pai, um homem cuja vida foi devotada aos livros. O jovem levava uma vida pacata, de casa para o trabalho, do trabalho para casa, até o dia em que foi designado para acompanhar caixotes de livros enviados para o Brasil.

O ritmo da narrativa é bem dinâmico, com narradores que se revezam: Marrocos, A Escrava, O escravo, narrador oculto e onisciente, a esposa de Marrocos. Os capítulos são curtos; em alguns deles Marrocos narra as sua impressões, seja de sua vida em Portugal, os arranjos para sua vinda ao Brasil, até as impressões sobre a vida na colônia. Vale destacar a narrativa sensível, mas também debochada, crua, do choque cultural vivido pelo personagem. Acompanhamos as relações entre Marrocos e sua família através das cartas transcritas – um recurso muito interessante e que dá mais tempero à história, suas relações com os brasileiros, a relação consigo mesmo (e aqui vemos a evolução do personagem e sua busca por pertencer, de fato, a algum lugar). Há também capítulo intitulados “Crônicas da Corte”, sobre os quais a autora nos deixa em suspenso, questionando o fundo de verdade naqueles textos.

O Guardião de livros é uma espécie de homenagem aos amantes de livros. Já no título isso fica claro e, depois, na descrição de Marrocos, em várias passagens de sua vida, fica clara a sua devoção à leitura e ao objeto livro, em si, inclusive com críticas àqueles que não partilhavam da sua paixão (discordo nesse ponto porque acho que cada um ama o que quiser e puder!).

Esse livro tem histórias bem contadas, costuradas, envolventes e, para isso, é fundamental ter bons personagens.. Marrocos é um homem comum e, ao mesmo tempo, um homem cheio de facetas, nuances; ao longo da história conhecemos vários Marrocos, vemos sua evolução, acompanhamos seus conflitos, seu questionamentos. Não é um personagem carismático no sentido de que você vai se encantar de cara e torcer por ele, mas no sentido de que ele vai lhe cativando página a página. À medida que se lê, sente-se raiva, indignação, escárnio, pena, compaixão, simpatia. Possui uma hiponcondria desenfreada, e, do ponto de vista da psicologia, é excelente as descrições de seu comportamento; chora-se com seu sofrimento, pelos mais diversos motivos.

No capítulo A Escrava, o primeiro capítulo, foi ali que acontece a mágica – o livro pega pela mão e não solta. Como se não bastasse, Cristina Norton ainda coloca epígrafes de Jorge Luis Borges e Mia Couto! O guardião de livros é mais que recomendado. É, sem dúvidas, uma das melhores leituras do ano.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Varal de Trovas n. 520

 

Carolina Ramos (Paradiso)

A vida andava difícil. Não só para um, nem dois – difícil para todos! Mesmo os mais abastados tinham lá suas carências. A classe média, achatada como fatia de pão prensada entre as abas de um torrador, deixava-se ressecar, a cada dia.

Jerônimo da Silva, trabalhador como tantos outros, via a rotina diária, árdua e absorvente, desidratar-lhe os sonhos, sem piedade. Era erguer-se com o Sol e recolher-se a casa, quando a lua já ia alta, E a algibeira sempre mais vazia!

Naquela manhã, chegado ao prédio Paradiso, em reformas, e do qual era zelador, prendeu o crachá ao peito, abotoando-o no bolso da camisa.

Deixou-se envolver pelo trabalho. A obra, já em meio, seguia sem problemas, a subir firme rumo à conclusão. Paralelo ao esforço arquitetônico, outro plano também subia, um andar por dia, na cabeça de Jerônimo.

Quando a noite desceu, deixou que a obra se esvaziasse. Nervoso, rumou a passo ligeiro para o estabelecimento, quase em frente, que vendia artigos esportivos e cujo movimento crescente dia-a-dia era alvo de suas atenções.

Rondou pelas imediações, como se nada quisesse, paquerando o alvo à espera do momento oportuno, que se fez presente quando o derradeiro freguês deixou o estabelecimento e o gerente preparava-se para apagar as últimas lâmpadas,

Jerônimo da Silva enfiou, então, pela cabeça até o pescoço, o capuz ninja. Os óculos de motoqueiro deixavam-lhe uma fresta à altura dos olhos, que não tolhia a visão, sem permitir que fosse identificado.

Irreconhecível, sentiu-se seguro. Aproximou-se do homem que se preparava para sair. Encostou-lhe a arma nas costas: - Isto é um assalto. - e a frase chavão - Passe a grana!

Não houve reação alguma. O homem olhou-o atentamente, passando-lhe a féria do dia, sem qualquer protesto e sem escamotear. Parecia mais calmo que o assaltante.

Jerônimo saiu às pressas arrancando a máscara e enfiando-a de qualquer jeito no bolso traseiro da calça. Fácil demais! Não esperava tanto!

Penteou os cabelos com os dedos e acertou o passo pelo passo apressado dos passantes.

Em casa, emocionalmente exausto, nem trocou de roupa, atirou-se na cama... e sonhou que seus problemas estavam resolvidos! Se nem todos... alguns, pelo menos! O caminho estava aberto! Era só aperfeiçoar a técnica... e estaria feito!

A surpresa, por sua vez, viria na manhã seguinte, ao regressar, pontual, ao prédio, fazendo jus à profissão assumida.

A viatura da polícia chegara antes dele ao Paradiso! Sem qualquer explicação, foi encostado à parede. O pasmo não lhe permitiu reação. Metade do dinheiro roubado aquecia-lhe ainda o bolso traseiro, onde estavam também alguns cheques ao portador, prontos para serem descontados. Provas incontestáveis!

Perplexo, da Silva não podia entender como fora descoberto!

Na caixa do peito, batia um coração acelerado. Assim como... ainda preso ao botão do bolso da camisa, lá estava, também, desde a véspera, o crachá denunciador que esquecera de retirar, antes que aquela ousadia o transformasse em desastrado meliante.

Naquele indiscreto crachá, para quem quisesse ler, estava o nome do prédio, Paradiso, bordado à máquina, em azul, e, sob ele, a identificação insofismável: - Jerônimo da Silva - Zelador.
 
E o dono desse nome, por um golpe de azar e sem apelação, foi diretamente transferido do Paradiso para o inferno... sem sequer passar pelo purgatório!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). 
Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. 
Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) XII

MEU VERSO


Cheguei aqui para escrever meu verso,
trago papel, caneta e o pensamento.
Quero implorar à musa do Universo
inspiração e amor no meu intento.

Se este mundo se mostra tão perverso,
quero a flor, o perfume e o sentimento,
que o coração, contrito, esteja imerso
neste festim da rima, o meu alento.

Que a natureza, então, em vivas cores
seja mostrada em todos seus valores
e no meu verso não tenha rival.

Minha esperança é ver a natureza
amada, respeitada e com certeza;
- meu soneto seria universal!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MINHA CASA

Em frente à minha casa há um jardim
onde os pássaros cantam saltitantes.
Lá dentro há café, beiju e aipim
e a mesa é farta para os visitantes.

A grama verde, as flores e o jasmim
acolhem beija-flores cintilantes.
Quatro palmeiras firmes dizem sim
e fazem sombra aos corações amantes.

Em minha casa tenho alguns armários,
e os livros - meus amigos necessários
que me ensinam a crer num sonho bom.

Creio no amor e em dias fulgurantes
enquanto os versos brotam abundantes,
vou escrevendo e assino Filemon.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MUDANÇA DE RUMO

Não consigo entender tua procura
e essa corrida que não tem descanso,
se a vida foi madrasta, triste e dura,
melhor é procurar outro remanso.

Às vezes, o capricho é uma loucura,
não traz felicidade nem avanço
na procura da Paz e da Ventura,
o Amor fala mais alto, embora manso.

Por que buscar carinho na incerteza,
se aqui mesmo tens luz e tens beleza
que podem transformar o teu desejo?

É melhor prosseguir naquela estrada
onde a felicidade fez morada
e estará te esperando com um beijo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NÃO ME ESQUEÇO…

Não me esqueço dos versos comoventes
que escrevi com perene inspiração,
quando vivi nos chapadões florentes
da minha terra em meio do Sertão.

Depois, parti... Sofri dores pungentes
numa luta sem fim de solidão.
Desolado, vivi dias ingentes
e se caí, jamais fiquei no chão.

Vejo, porém, que os meus cabelos brancos
são apenas troféu para consolo
de quem viveu aos trancos e barrancos...

Desafiei a vida, estou cansado,
só resta agora um pensamento tolo;
sou poeta, sou livre e aposentado.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NOITE E VERSOS

Vai alta a noite. A madrugada é fria,
a insônia chega, fica e me namora.
Levanto-me à procura da poesia,
mas ela, impaciente, vai embora.

Percorro o céu do amor, da fantasia,
fico em vigília e vejo a luz da aurora;
- que paz a humanidade alcançaria,
se o amor reinasse pelo mundo afora.

Ouço, distante, o farfalhar do vento,
e por que minha voz não tem alento,
- se o dia vai nascer como criança?

Surge, então, o cantar da passarada
e outros versos virão, na madrugada,
talvez mais coloridos de esperança!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.
Livro enviado pelo autor.

Clarisse da Costa (Zacimba Gaba)

O poder de uma mulher não está só na beleza, mas na vontade de vencer todos os obstáculos que são dados a ela.

Digamos que a mulher é uma guerreira o que na mitologia não existia. E a mulher negra tem essa representatividade. Muitas foram as mulheres negras guerreiras. Zacimba Gaba foi uma delas. Zacimba Gaba além de guerreira era uma princesa. E dizem que princesas negras não existem. Mas há relatos na história do mundo que no Brasil existiu mesmo essa princesa. O cenário dessa história se inicia pela África.

No tempo em que prosperidade e riqueza não passavam de uma realidade por lá, o continente africano sem a colonização era outro mundo.

A princesa ao lado de seus pais governava sua tribo numa tranquilidade. Livre, podia cantar sem o medo de lhe ouvirem e ter que fugir.

Ali no seu reino tinha a sua liberdade. Mas para a sua má sorte veio à colonização. A sua existência lhe tirou a liberdade e sua alegria.

Zacimba Gaba, princesa da Angola, fora capturada e assim, levada para o navio com destino ao Brasil.

No Brasil foi escravizada e comprada por um Barão no norte do Espírito Santo. Nessas terras ela foi parar no ano de 1690.

Chegando na casa grande, encontra outros africanos e estes a recebem como a princesa que sempre foi em Angola. Fato que lhe trouxe castigos severos pelo Senhor de escravos. O Barão proibiu sua saída da casa e começou a lhe castigar.

No entanto ela resistiu até o fim. Em nenhum momento desistiu da luta, tinha que libertar seu povo. O plano era acabar com o Barão e fugir com todos daquele lugar. E isso aconteceu de fato com a ajuda dos outros negros. Ela, durante anos envenenou o Barão com um veneno feito a partir da cabeça de uma cobra, a jararaca. Assim que o Barão - o conhecido José Troncoso - morreu, essa guerreira liderou a fuga de seu povo. Juntos formaram um quilombo, num lugar onde hoje fica Itaúnas. Este serviu de refúgio para negros da região.

Mas para a princesa a libertação de seu povo não era o suficiente, queria fazer muito mais, ajudar aqueles que chegavam dos navios no Porto de São Mateus em precárias condições.

Zacimba lutou até o fim. Sobre sua morte não há relatos, mas acredito que ela morreu em combate como uma guerrilheira que foi.

Fonte:
Texto enviado por Samuel da Costa.

Estante de Livros (O Sertanejo, de José de Alencar)


Um dos romances, bastante brasileiro, em que Alencar dá expansão ao seu gênero de pincelador retratando com belas e radiantes cores a paisagem do sertão um destemido vaqueiro a serviço, capitão-mor Arnaldo Campelo que enfrenta os mais sérios riscos na esperança de conquistar a simpatia da filha do fazendeiro.

A história de O sertanejo se passa no nordeste e tem como personagem-narrador Severino, uma pessoa que tenta se definir ao longo da obra mas não consegue, então passa a ser uma figura genérica que representa o povo daquela região. Ele é representante de um povo sofrido, que luta contra a fome, sede e miséria.

O personagem principal é Arnaldo Loureiro, um vaqueiro cearense, simples, mas que luta pelo que quer e enfrenta tudo pelo amor e seus ideais. O vaqueiro trabalha para o capitão-mor, de nome Arnaldo Campelo. Arnaldo enfrenta todos os riscos necessários com a esperança de um dia conquistar a simpatia da meia irmã do capitão-mor, Dona Flor.

Arnaldo é descrito ao longo da obra como arredio, simples e bom. Chega a ser uma figura misteriosa, atenta a todos os pedidos de seu patrão e se mostrando um funcionário exemplar, ele tem o hábito de dormir no alto de arvores na mata. Sua submissão é reconhecida como digna. O único rival de Arnaldo se chama Marcos Fragoso, e Dona Flor é prometida para Leandro barbilho. No dia do casamento, inimigos do capitão-mor surgem, acontece um tiroteio onde Leandro Barbilho morre. Arnaldo tenta consolar Flor enquanto ela lamenta. A história acontece no sertão de Quixeramobim, Ceará.

No final o capitão-mor reconhece a bravura e dignidade de Arnaldo, e permite que ele use seu sobrenome, Campelo.

Trecho do Cap. XV, Tentação:

Já tinham soado no sino da capela as últimas badaladas do toque de recolher.

Por toda a fazenda da Oiticica, sujeita a um certo regime militar, apagavam-se os fogos e cessava o burburinho da labutação quotidiana. Só nas noites de festa dispensava o capitão-mor essa rigorosa disciplina, e dava licença para os sambas, que então por desforra atravessavam de sol a sol.

Era uma noite de escuro; mas como o são as noites do sertão, recamadas de estrelas rutilantes, cujas centelhas se cruzam e urdem como a finíssima teia de uma lhama acetinada.

A casa principal acabava de fechar-se; e das portas e janelas apenas escapavam-se pelos interstícios umas réstias de luz, que iam a pouco e pouco extinguindo-se.

Nesse momento um vulto oscilou na sombra, e coseu-se à parede que olhava para o nascente.

Era Arnaldo.

Resvalando ao longo do outão, chegara à janela do camarim de D. Flor, e uma força irresistível o deteve ali. No gradil das rótulas recendia um breve perfume, como se por ali tivesse coado a brisa carregada das exalações da baunilha. Arnaldo adivinhou que a donzela antes de recolher-se, viera respirar a frescura da noite e encostara a gentil cabeça na gelosia, onde ficara a fragrância de seus cabelos e de sua cútis acetinada.

Então o sertanejo, que não se animaria nunca a tocar esses cabelos e essa cútis, beijou as grades para colher aquela emanação de D. Flor, e não trocaria decerto a delícia daquela adoração pelas voluptuosas carícias da mulher mais formosa.

Aplicando o ouvido percebeu o sertanejo no interior do aposento um frolido de roupas, acompanhado pelo rumor de um passo breve e sutil. D. Flor volvia pelo aposento, naturalmente ocupada nos vários aprestos do repouso da noite.

Um doce sussurro, como da abelha no seio do rosal, advertiu a Arnaldo que a donzela rezava antes de deitar-se; e involuntariamente também ajoelhou-se para rogar a Deus por ela. Mas acabou suplicando a Flor perdão para a sua ternura.

Terminada a prece, a donzela aproximou-se do leito. O amarrotar das cambraias a atulharem-se indicou ao sertanejo que Flor despia as suas vestes e ia trocá-las pela roupa de dormir.

Através das abas da janela, que lhe escondiam o aposento, enxergou com os olhos d’alma a donzela, naquele instante em que os castos véus a abandonavam; porém seu puro e santo afeto não viu outra coisa senão um anjo vestido de resplendor. Foi como se no céu azul ao deslize de uma nuvem branca de jaspe surgisse uma estrela. A trepidação da luz cega; e tece um véu cintilante, porém mais espesso do que a seda e o linho.

Cessaram de todo os rumores do aposento, sinal de que D. Flor se havia deitado. Ouvindo um respiro brando e sutil como de um passarinho, conheceu Arnaldo que a donzela dormia o sono plácido e feliz.

Só então afastou-se para acudir ao emprazamento que recebera.


Fonte:
Orfeu Spam (site desativado)
Cola da Web

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Arquivo Spina 46: Assma Gabriela Chicani Tahan


 

Paulo Mendes Campos (As horas antigas)

- Menino, vai perguntar a sua mãe se quer comprar dobradinha.

Em latas de banha de cinco quilos, a estranha coisa (não sabia o que era e se me afigurava vagamente obsceno) era coberta com folhas de bananeira.

- Hoje não - respondia da varanda, sem erguer os olhos do romance da coleção Terramarear (*).

- Vai perguntar - insistia a mais velha das mulheres -, diz que está fresquinha.

Eu ia lá dentro e voltava:

- Não quer.

A vendedora olhava-me com o rabo dos olhos, já fazendo esquerda volver, insatisfeita, desconfiada, ressentida, e ia bater no vizinho. Bater é modo de falar. Se não tivesse ninguém na varanda ou na janela (quase sempre tinha), ela gritava ó de casa. As latas eram por demais pesadas, os compradores por demais improváveis (nunca vi ninguém comprar dobradinha), não pagava a pena depositar a carga no chão para bater palmas.

Mas as palmas dos outros vendedores soavam até a hora do almoço nas compridas e transparentes manhãs daquele tempo. Poucas casas, em geral só as de médicos e dentistas, davam-se ao luxo da campainha. Era o lenheiro com a sua tropa de burricos, o vendedor de gravetos, o leiteiro, o geleiro com as suas barras fumegantes, o verdureiro com os seus cestos verdíssimos, o bananeiro, o laranjeiro, prontos todos a fazer substanciais abatimentos a quem comprasse o cento, era o vendedor de jabuticabas, era o caixeiro do armazém descendo com estrépito e impaciência duma camioneta, era o moço do açougue, era o carteiro, era o menino da loja que trazia o par de sapatos velhos, porque o novo ia sempre nos pés depois do ato da compra.

A manhã crescia. Vinham os escolares e um eventual trote do Esquadrão de Cavalaria. Nas proximidades do meio-dia, os funcionários públicos almoçados subiam de bonde ou a pé os caminhos da Praça da Liberdade. À tarde, as senhoras andavam às compras no Centro. Ao cair da tardinha, o céu fazia luzes e lumes, tons e entretons, fogos e fogaréus, e os passarinhos inauguravam nas copas dos fícus ruidosos ninhos coletivos, enquanto os funcionários desciam novamente em bando, feios pássaros de asas depenadas.

Quem era de ir pra casa, ia pra casa; quem era de beber, ia beber. Ah, como era repousante o chope ou a cachacinha depois da vagarosa fadiga burocrática! Como os passarinhos do crepúsculo cantavam dentro dos peitos montanheses! Como ficava doce e enigmático o ar, entre a cálida lembrança do sol deixada nas pedras e as aragens frias da boca da noite! Como era bom ser mineiro e melancólico às seis horas da tarde!

Depois de um momento coagulado entre o dia e a noite, escuro e espesso, os postes se iluminavam. Sentíamos então no perfume das magnólias e no retinir de louças e alumínios que tinha realmente anoitecido. Noite de planalto, sem a mitologia do mar, noite alta, demorada, enxameada de estrelas, noite às vezes de ventos desatados, de trovoadas e relâmpagos espetaculares, de longas e retorcidas serpentinas elétricas. As famílias se recolhiam cedo, os próprios boêmios iam dormir antes de clarear a madrugada. Só os literatos e as meretrizes esperavam a denúncia dos galos.

Na calada, os cascos de um cavalo sobre o asfalto. O silêncio. Os cães a vociferar nos quintais e nas várzeas. O silêncio. Os cães. O silêncio. Até que os sinos viessem proclamar alegremente que a noite terminara.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
* Terramarear: coleção editada nos anos 1930 pela Cia. Editora Nacional, que reunia obras de suspense e heroísmo

Fonte:
Paulo Mendes Campos. Homenzinho na ventania. 
RJ: Ed. do Autor, 1962.

Flávio Roberto Stefani (Querência de Trovas) = 3

A juventude, hoje em dia,
jogando a vida no ralo,
vai transformando a euforia
em grandes festas de embalo.
= = = = = = = = = = =

Ante á dor que se avizinha,
amigo é quem tudo deixa
e ao nosso lado caminha
sereno, altivo e sem queixa!
= = = = = = = = = = =

A palavra, bem usada,
é ferramenta eficaz,
que fica sempre guardada
no galpãozinho da paz!
= = = = = = = = = = =

Cidadão, cabeça erguida
é aquele que, na passagem,
coloca os lixos da vida
nos latões da reciclagem.
= = = = = = = = = = =

Das dietas sendo fã,
eu que vibro por viver,
tomo o café da manhã
nas cores do amanhecer!
= = = = = = = = = = =

Diz que é pura adrenalina,
deixa o cara alto do chão!
- Quem tem vício não atina
quantos males tem na mão!
= = = = = = = = = = =

Do silêncio adoro o som,
ele me afaga e me acalma,
faz-me ouvir - e como é bom -
murmúrios que vem da alma!
= = = = = = = = = = =

Ganha contornos de festa,
de festa vira euforia,
quando Deus se manifesta,
abrindo as portas do dia!
= = = = = = = = = = =

Mistura amor com magia,
mexe bem, põe paciência,
que terás, ao fim do dia,
a pílula da inocência!
= = = = = = = = = = =

Não tendo ouro nem mirra,
muito menos tendo Incenso,
o pobre, coitado, espirra,
e vai ver, não tem nem lenço...
= = = = = = = = = = =

Nobre e sábia profissão,
indispensável na empresa:
contador é exatidão;
dois é dois, não tem moleza!
= = = = = = = = = = =

Os trilhos da ferrovia,
impulsionando o progresso,
trazem vagões de energia
carregados de sucesso!
= = = = = = = = = = =

O tempo pregou-me peças
e, hoje, cansado e sem guia,
não cumpro nem as promessas
que fiz a mim mesmo, um dia.
= = = = = = = = = = =

O vento varre a ansiedade
e as folhas secas do chão,
só não varre esta saudade
que corta o meu coração.
= = = = = = = = = = =

Parceiro das invernias,
passa o dia todo atento,
manda fumaça e alegrias...
Como é sábia a mão do vento!
= = = = = = = = = = =

Passo a passo, pé por pé,
caminha e impõe teu vigor,
pois é nos passos da fé
que está o caminho do amor.
= = = = = = = = = = =

Pela força do trabalho,
por certo, descobrirás
a magia de um atalho
que desemboca na paz!
= = = = = = = = = = =

Pelas ruas, no abandono,
sem crenças, nem sinagogas,
o jovem, sem pai, nem dono,
vai pelo atalho das drogas.
= = = = = = = = = = =

Porque teima sempre em ver
a sua missão cumprida,
todo poeta, ao morrer,
deixa pegadas de vida!
= = = = = = = = = = =

Quando a causa justifica
que a gente se dê a mão,
meia dúzia significa
verdadeira multidão.
= = = = = = = = = = =

Quando a memória me "apronta",
eu chamo o sexto sentido,
e, em seguida, ele me aponta
o caminho a ser seguido.
= = = = = = = = = = =

Quando o vício toma conta,
abalando, na estrutura,
segura bem numa ponta,
que na outra, Deus segura!
= = = = = = = = = = =

Uma abelha só não rende,
mas deixa ao mundo uma ideia,
pelo muito que se aprende
na força de uma colmeia!
= = = = = = = = = = =

Uma idade diferente,
chamam até " flor da idade",
...e pensar que tanta gente
nem viveu a mocidade!...
= = = = = = = = = = =

Vive mais o teu presente,
deixando o passado atrás,
que o futuro, certamente,
será somente de paz.

Fonte:
Flávio Roberto Stefani. Novas andanças e outros poemas.
Cachoeirinha/RS: AgênciaTexto Certo, 2013.
Livro enviado pelo autor.

Benedita Azevedo (As Pedras do Caminho)

Ester e Roque, jovens remanescentes de famílias com valores parecidos resolvem formar uma família. Mas, não tinham condições de construir sua residência. A princípio, o rapaz não queria se afastar de Berta, sua mãe, por morar sozinha com ele, pois a irmã, Joli, terminara a graduação e se mudara para outro estado. Então, ao lado da noiva, procurou a genitora para lhe dizer que pretendia se casar e morar com ela.

De pronto teve a resposta negativa. A mãe lhe disse que trabalhava dezoito horas por dia e queria continuar sozinha, pois, depois de dez anos de doença do marido e de trabalhar para educar os dois filhos, merecia um descanso. Mas, o ajudaria a construir sua casa no terreno dos fundos de sua casa e faria uma entrada independente para que, cada um cuidasse da sua vida, sem interferências de ambas as partes na vida do outro.

Os dois aceitaram a ideia e mediram o local. A mãe chamou o pedreiro que trabalhara na reforma de sua primeira casa, que fora vendida para dar entrada naquela que financiara em 25 anos, fazia oito anos. O pedreiro deu o orçamento e a mãe prometeu comprar o material de construção e o pai da noiva ajudaria na construção, pois era mestre de obras de uma grande firma.

Passados alguns dias, Roque procurou Berta e contou que num conjunto residencial, dentre os muitos que estavam sendo construídos, poderiam pagar a prestação de uma casa, mas, juntando a renda dos dois não cobriria as exigências da Caixa Econômica. Tendo a mãe já dois imóveis financiados, não pode ajudá-los. O pai da noiva tentou e conseguiu comprar a casa em seu nome, mas, eles pagariam as prestações.

Iniciando uma vida nova, toda ajuda que se oferecesse seria de bom tamanho, para dois jovens que se amavam e queriam compor seu lar e formar uma família. Quando receberam a casa, a mãe do rapaz, preocupada com a segurança de um bairro novo, tendo os dois de trabalhar o dia inteiro fora, chamou o serralheiro, encomendou as grades para duas portas, três janelas e fez uma surpresa. Dias depois de receberem as chaves, chegaram do trabalho e nem acreditaram, a casa estava toda com grades. Para complementar a renda do casal, Berta que era monitora da Taperware e vendia muito, solicitou a colaboração dos dois às sextas-feiras, para lhe separar os pedidos, que eram entregues no sábado. Por este trabalho, dava ao casal um salário mínimo por mês. Com esta estratégia a mãe ajudava, sem que eles se sentissem constrangidos.

Tempos depois, Joli que morava no Rio de Janeiro, numa república de profissionais de sua área, começou a se sentir sozinha e convidou a mãe para morar com ela. Já que Roque estava casado, com a família de Ester e parentes de Berta morando perto, ela poderia alugar um apartamento e morar com a mãe, deixando aquela vida de moradia coletiva.

A partir do convite, Berta passou a viver um verdadeiro conflito. Queria ir fazer companhia à filha, mas, como deixar o filho e a nora começando uma vida nova sozinhos?

Naquela aflição, sem saber que rumo tomar, passou algumas noites sem dormir. Estava dividida entre os dois filhos. Joli morando numa cidade desconhecida, sem nenhum parente ou conhecido por perto, puxava para seu lado o fiel da balança. Resolveu ir ao Rio de Janeiro, nas férias de julho. Ficou hospedada na república e não gostou nada do que viu. Em sua avaliação Roque estaria mais bem protegido, pois tinha a família dela e estava em sua cidade natal, onde tinha todos os amigos. Joli, sozinha, naquela república onde até suas roupas sumiam do armário.

Enquanto estava lá na república, um dia pela manhã, a filha procurou uma blusa branca que tinha certeza colocara em seu armário e não encontrava. Berta resolveu olhar no armário das outras, mesmo sob protesto da filha. No armário de uma delas, lá estavam todas as roupas que haviam sumido. – Mãe, que cara de pau! Pegar minhas roupas desse jeito! Eu nunca teria coragem de procurar no armário delas. Não queria me arriscar a bater de frente com nenhuma das quatro. – Fizeste bem, filha, agora vamos sair e comprar um guarda roupa com chave reforçada. Por enquanto ainda tens de ficar aqui.

Apesar do namorado falar em casamento para breve, Berta não levou muita fé. Joli queria que alugassem um apartamento com dois quartos, para quando se casasse morarem juntas. Elas até ainda olharam alguns apartamentos e móveis, mas, a mãe disse a ela que não queria morar com ninguém. Alugaria a casa dela em São Luís e com o dinheiro pagaria o aluguel de um apartamento, no Rio. Resolvido isso, voltou para casa e planejou voltar ao final do ano.

Para sua surpresa, recebeu o comunicado da filha de que resolvera se casar em dezembro. Mas como? Fazia tão pouco tempo que se conheciam isso não poderia dar certo! Usou todos seus argumentos e pediu tempo para organizar o enxoval. Ela disse que resolveram aproveitar as férias do noivo que seria em dezembro e que não me preocupasse, pois faria um chá de panelas e uma lista de casamento para amigos e parentes.

Berta não teve mais argumentos. Agora não tinha mais dúvidas. Precisava resolver tudo para mudar-se para o Rio.

Alugou a casa para um amigo de Roque que se casaria em Janeiro e pediu a Joli que visse um apartamento na Tijuca, perto do Colégio, onde pretendia trabalhar. A filha deu pulos de alegria ao saber da decisão da mãe. O filho pedia que a mãe pensasse bem, pois já conseguira se organizar depois da morte do pai. Se não seria melhor Joli voltar para sua terra? Mais uma vez, Berta ficou em conflito e conversou com a filha.

Joli nem imaginava deixar o trabalho. Em São Luís não teria as mesmas chances de trabalho que tinha no Rio. Fizera duas tentativas infrutíferas e não queria se arriscar.

Casaram-se em dezembro e passaram vinte dias em casa da mãe, em São Luís. Tinham alugado um apartamento em um prédio novo, em Pilares e ainda havia algumas unidades disponíveis. Mas Berta queria na Tijuca, perto do colégio.

Ao retornar ao Rio, Joli telefonou para a mãe e informou que ainda havia um apartamento, no mesmo bloco que o seu, com dois quartos, salão, banheiro, área de serviço e 01 vaga na garagem. Dizia que seria bom não perder a oportunidade, pois os aluguéis na Tijuca eram muito mais caros.

Berta suspirou, teria de tomar aquela decisão. Depois de duas noites insones telefonou para a filha e pediu que visse o que seria necessário para alugar o tal apartamento. Fez o contrato da sua casa por um ano. Se não se adaptasse voltaria. Contratou a mudança pela Itapemirim e enviou o carro por uma firma especializada.

O aluguel de sua casa era suficiente para pagar o aluguel e condomínio do apartamento. Teria de conseguir logo um trabalho para suas despesas pessoais e manutenção do carro. Estava feito, agora teria de enfrentar a separação do filho com a esposa já grávida de quatro meses. Viajaria no início de janeiro. Achou melhor deixar com o filho seu cartão do INPS, com a pensão que herdara do marido, de um salário mínimo, para compensar o que ganhavam separando seus pedidos Taperware. Pediu à irmã que ficasse atenta e olhasse pelo Roque e a esposa. Quando a primeira filha nasceu a tia de Roque ficava com a criança para os dois trabalharem, até que tivesse idade para ir para a escolhinha.

A realidade é sempre muito diferente dos sonhos. Berta teve dificuldades em conseguir emprego. Sem conhecer o Rio fez reuniões Taperware em vários bairros e sem perceber, um dia, com o Guia Rex à mão viu-se dentro da comunidade de Ramos, numa reunião marcada na Lagoa. Desistiu da gerência de vendas e escreveu em sua agenda:

Rio, 07. 11. 1987
“Aqui encerro minha carreira de grupos de vendas. Será sem retorno. É uma vida muito sacrificada que se leva em busca de certos objetivos que, para a maioria serão eternos sonhos irrealizáveis. Gosto de buscar coisas mais concretas e que dependam mais de mim que dos outros. Sei que um dia conseguirei atingir os meus sonhos, mas em outros caminhos que não serão os de grupos de venda.”


Depois disso, tentou viagens ao Paraguai, sobreviveu seis meses viajando com amigos, anotando encomendas que entregava mensalmente e quando recebia o pagamento voltava às compras. A viagem de ônibus era longa, 24 horas, era também perigosa e acabou desistindo.

Fez cursos de modelagem no SENAI e trabalhou como modelista industrial em uma confecção de alta costura, até que foi resgatada pelo grande amor de sua vida que a raptou da cidade grande para o aconchego de Pacobaíba, onde se reencontrou com o magistério. Mas, sua carga horária era pequena, o que a obrigava a complementar sua renda numa confecção caseira. Nesta época Roque já estava com a vida equilibrada, conseguira um emprego na SHELL e Berta pediu de volta seu cartão do INPS, assim, teria a garantia do salário da costureira ao final do mês.

Sempre teve e ainda tem algumas pedras em sua longa caminhada, entretanto, sem lamentações, vai transformando-as em seixos para ornamentar os canteiros de seu jardim outonal.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Benedita Azevedo (Benedita Silva de Azevedo) Filha de Euzébio Alberto da Silva e Rosenda Matos da Silva, nasceu em 1944, na cidade de Itapecuru-Mirim/MA. Morou em São Luís, São Paulo, Blumenau e Itajaí e está radicada  em Magé, no Rio de Janeiro desde janeiro 1987.  Recebeu o título de cidadã Mageense em 2003. Educadora, poeta, escritora, haicaísta e ativista cultural. Formada em Letras,  pós-graduada em Educação e Linguística. Pertence a várias instituições literárias no Brasil, França, Portugal e Chile.

Fonte:
Recanto das Letras

terça-feira, 17 de agosto de 2021

A. A. de Assis ( Saudade em Trovas) n. 1

Fonte: A. A. de Assis. Que saudade! Maringá/PR, 2014.

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 30 –

A manhã nasceu trazendo o alarido dos ventos, cantando e zunindo nas copas das árvores e nas frinchas das habitações. Nuvens com jeito cabuloso envolveram a tarde, invadindo o anoitecer.

Previsões disseram que ventanias seguiriam noite a dentro. E seguiram. E barulharam. E bagunçaram com danos e prejuízos os antigos carrascais do Contestado.

Por volta da meia-noite raios, trovoadas, vendavais, assolaram a região, tendo o acréscimo do tornado que varreu os caminhos de São João de Campos Novos. O barulho, o medo, a ruína, vararam a madrugada assustando os viventes. No amanhecer, os danos que nunca esperamos - estragos, malefícios, o descalabro.

Manhãzinha. E o silêncio como se fosse em reverência... Nenhuma ave canora, nem o bulício do vento, estradas desertas.

E a pandemia (pandemônio) se transformou em caos nas planícies e serranias, nos caminhos e nas encruzilhadas do planalto catarinense.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Coelho Neto (A Chave)

Fechado um cofre e atirada a chave em pleno oceano, nem por isso deverá o dono perder a esperança de poder, um dia, reavê-lo, abri-lo e rever o seu tesouro intacto.

Não tornou do pélago o anel lançado pelo tirano às vagas, em hóstia à Fortuna, que o recusou, devolvendo-o nas entranhas de um peixe?

Mergulhadores, assim como pescam pérolas, podem rebuscar, nas areias e covas submarinas, a joia imersa trazendo-a à tona e restituindo-a ao que a perdeu ou, em instantes de desvario, atirou ao mar.

Todos os abismos têm limite — de um só, o túmulo, ninguém mediu ainda a profundidade. Quantos lá têm amores, desfeitos em saudades, tentam, em vão, alcançá-los e valem-se dos meios, todos frustrâneos (malogrados), ilusões que, em vez de consolarem, mais aumentam o desespero.

O que se acredita ver na placidez da Morte e a imagem do que existe no coração.

Quantos infelizes, deixando a realidade triste pela miragem falaz, ficam na vida sem o que tinham para guiá-los, que era a Luz da razão, apagada no mergulho em que se precipitaram!

A pequenina chave que fechou o teu caixão, meu filho, nunca mais terá serventia. Fez o que lhe cumpria, nada mais tem a fazer. E eu, entretanto, guardo-a como a mais preciosa das minhas relíquias.

Para quê? De que me serve se, com ela, não abro mais do que as fontes do coração dando livre curso às lágrimas saudosas?

Vê-la, tocá-la, tê-la perto de mim é lembrar-me de ti, fechado, como estás, para o sempre, com o selo inviolável da Eternidade.

Em minhas mãos essa pequenina chave, que deu a grande volta no círculo da tua Vida, encerrando-a, pode ser comparada a um facho nas mãos de um cego — porque ainda que ele o possua e sinta em nada lhe aproveita.

Que mergulhador terá fôlego tão longo que lhe permita descer às profundezas do túmulo e de lá trazer o meu tesouro?

De que me serve a chave, que conservo, se o cofre, que ela fechou, aprofunda-se tanto que o próprio Pensamento não lhe chega à jazida?

Admitindo, porém, que me fosse dado abrir o que, entre flores, fechei com mão trêmula e lágrimas a jorros, no instante em que, perdida toda a esperança, entreguei-te à cova e a Deus, teria eu ânimo bastante para contemplar o que me devolvia o Nada, restos de ti deixados pelo Céu e pela terra?

Para que profanar despojos? Que restará do que foi corpo airoso, coração meigo e alma inteligente — força, movimento e afeto: lume no olhar, ideia nas palavras, amor no gesto, heroísmo, dedicação e fé? Um arcabouço como tronco e ramos nus de árvores no inverno. Árvore!...

A árvore reenfolha-se, reflore, renova-se com mais viço ao calor do sol da primavera, prolonga a vida em ressurreições continuas. O corpo, uma vez tombado, resolve-se em pó que se não levanta.

De que me serve possuir a chave!... Antes eu a tivesse lançado ao mar, assim não teria ante os olhos essa promessa que se não cumpre, esperança sempre desvanecida, chave de um segredo que se não revelará jamais.

A alma, entretanto, apega-se a tudo, tudo lhe serve de consolação e martírio. E a chave aí jaz, entre as minhas relíquias, lembrando-me o que fechei para o sempre: o teu corpo e, com ele, entre as flores que o cercaram, toda a minha ventura.

Fonte:
Henrique Maximiano Coelho Neto. Mano – livro da saudade. Publicado em 1924.

Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) VIII

SAUDADES


Da saudade, bem amado,
Nesta ausência tão distante,
Cada vez mais encravado
O espinho penetrante,
O coração sossegado
Me não deixa um só instante.
Como do caos primitivo
Surgiu bela criação,
Do caos da minha tristeza
Da pátria surge a visão!
Tenho saudades dos montes,
Dos ares, dos horizontes
Que à pátria servem de véu;
Saudades dos meus palmares,
Saudades daqueles ares,
Saudades daquele céu!
É puro, mas com ser puro
Este céu me não convém;
Que tendo tantas estrelas
A minha estrela não tem!
Muitas vezes a procuro,
Mas debalde!... um ponto escuro
No seu lugar se fitou;
Conheço e vejo a verdade:
Foi a nuvem da saudade,
Que a minha estrela apagou.
Sim, meu bem, brilhou a estrela
Sem rival nos brilhos seus,
Enquanto a luz recebia
Do lume dos olhos teus.
Quando teus olhos ardentes,
Rutilando de contentes
Iam-se nela fitar.
Hoje que estão desmaiados
Por prantos continuados,
Com seus sóis quase apagados,
Como há de a estrela brilhar?
Cada dia que se passa
Neste desgosto cruel,
Tem novo quadro a desgraça,
Tem a ausência novo fel.
Mais compunge o peito ansiado
Esse espinho envenenado,
Que a saudade me cravou;
E a dor me tem convencido
Que do espinho introduzido
Novo espinho se gerou.
Eu o sinto, quando estreito
Nos meus transportes de dor,
Sobre os lábios, sobre o peito,
O meu talismã de amor;
O meu fiel companheiro
E talvez o derradeiro
Presente de amor, de ti,
Na hora da despedida
Em que tudo (exceto a vida
Para chorar-te) perdi!
Se d’alma a essência celeste
Pudesse ser transmitida,
O retrato que me deste
Não fora um corpo sem vida
Que, ao vê-lo, minh’alma ardente,
No transporte mais veemente,
Sente ao semblante subir,
E nos olhos condensada,
Em lágrimas transformada,
Sobre o retrato cair.
Aos tormentos que já sobram
Novos reúne a saudade;
Os seus negrumes redobram
As sombras da soledade.
Na mente a imagem se agita
Dessa ventura infinita
Que junto a ti desfrutei,
Em quadros tão sedutores,
Quais nunca dos meus amores,
Nem nos sonhos divisei.
O amor com que me abraças,
Então não posso dizer!
Da saudade sinto as asas
No coração me bater;
E contemplando os espaços
Que te roubam aos meus braços,
E que não posso transpor,
Perco a luz, e desmaiada
Cai-me a fronte atordoada
Pelos combates de amor!
Assim passo em tua ausência.
Eis qual é o meu viver!
Melhor que tal existência
Mil vezes fora morrer,
Se não tivesse a esperança
Que venturosa bonança
À tormenta porá fim;
Se não tivesse a certeza
Que me adoras com firmeza,
Que não te esqueces de mim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

GLOSAS

MOTE
Quem Feliz asno se chama
De certo é asno feliz.


GLOSA
Se Camões cantou Gama
Por seus feitos de valor,
Também merece um cantor
Quem Feliz asno se chama.
Qualquer burro pela lama
Enterra pata e nariz,
Mas este, que com ardis
Chegou a ser senador,
É besta d’alto primor,
É decerto asno feliz.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MOTE
Beijo a mão que me condena
A ser sempre desgraçado;
Obedeço ao meu destino,
Respeito o poder do Fado.
(Pe. José Maurício)


GLOSA
Como a adorei, não exprime,
Não diz humana linguagem;
Ninguém traçar pode a imagem;
Daquele amor tão sublime!
A cruel, por este crime,
Eterno pranto me ordena.
E eu, vítima da pena
Da minha amorosa ofensa,
Sem arguir a sentença
Beijo a mão que me condena!

Sentindo a perseverança
Da paixão que me domina,
De achar ao mal medicina
Não alimento esperança,
Não sinto a menor mudança
Neste amor tão malfadado;
Se este amor exagerado
A mil desgraças me liga,
Esta constança me obriga
A ser sempre desgraçado!

Há um destino. — A razão
Da paixão na imensa vaga
De pronto seu facho apaga,
E nos deixa a escuridão!
Desse destino a impulsão
Eu sinto se me examino:
Sem luz, sem guia e sem tino,
Nada cogito, nem quero;
Não penso, não delibero,
Obedeço ao meu destino.

Quando em calma cogitava,
Calmo, estudando a verdade,
A razão e a liberdade
Sempre fortes, figurava,
Mas ai, triste! nem sonhava
Ver-me um dia neste estado!
Agora desenganado
Por tão acerba lição,
Mais que ao poder da razão,
Respeito o poder do Fado!

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas. Ministério Da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional

Sílvio Romero (Chico Ramela)

(Folclore do Sergipe)

= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Havia um homem que tinha três filhos. Cada um por sua vez saiu para ganhar a sua vida, indo primeiro o mais velho e depois os outros dois.

O primeiro tinha um pé de laranjeira e disse: “Quando o meu pé de laranjeira começar a murchar, me acudam, que eu estou em perigo.”

Ele ganhou o mundo e foi dar na casa de uma princesa, que tinha duas irmãs parecidas com ela. Lá chegando, pediu rancho e lhe foi dado, mas na hora da ceia a moça pegou com ele uma aposta, dizendo que quem comesse mais seria senhor do outro. O moço concordou e puseram-se na mesa.

A moça comeu muito e, quando não pôde mais, pediu licença para ir lá dentro, e mandou uma de suas irmãs a substituir. Esta veio e começou a comer, e o moço, que a não tinha visto, a tomou pela primeira. Afinal ele não pôde mais e arriou, e ficou por cativo.

Lá na sua casa entrou a murchar o seu pé de laranjeira, e o irmão do meio foi ao pai e disse: “Meu pai, meu irmão mais velho está em perigo e eu quero ir em socorro dele.”

— “Pois bem, vai; mas tu o que queres — minha maldição com muito dinheiro, ou minha bênção com pouco?”

— “A maldição com muito.”

O moço partiu, e, ao sair, disse: “Quando o meu pé de limeira começar a murchar me acudam que eu estou em perigo.”

Saiu e andou muito. Foi ter justamente em casa da princesa onde se achava preso o seu irmão. Lá pediu rancho, e na hora da janta lhe aconteceu o mesmo que ao outro, ficou também preso, mas não sabia um do outro.

Lá na sua casa começou a murchar o seu pé de limeira. O irmão caçula foi ao pai e pediu para ir a procura de seus dois irmãos. O pai fez a pergunta que havia feito ao outro, e ele respondeu pedindo a bênção.

Seguiu Chico Ramela, assim era o seu nome, adiante encontrou uma velhinha que era Nossa Senhora, a sua madrinha, que lhe ensinou onde estavam seus irmãos, e o que costumava a princesa fazer para prender a quem lá ia, e disse que ele aceitasse a aposta, mas não deixando a moça se levantar da mesa.

Lá chegando, ele executou tudo o que a velhinha lhe aconselhou e ganhou a aposta; mas não quis a princesa por sua cativa, se contentando em soltar todos os presos que lá se achavam.

Os irmãos ficaram muito satisfeitos e seguiram todos três juntos. Mais adiante os dois mais velhos se revoltaram contra o caçula e lhe fizeram a traição de lhe tomarem tudo que levava e o cativarem.

Compraram cavalos e seguiram levando a Chico Ramela por escravo. Foram dar num reino onde uns bichos ferozes iam todas as noites estragar e devorar as hortas e jardins do rei, e não havia quem pudesse dar cabo deles.

Os dois irmãos de Chico Ramela se foram oferecer para matar os tais animais, e nada puderam fazer. Afinal o Chico foi se oferecer e foi aceito. Foi dormir nas hortas do rei, munido de uma viola, que pôs-se a tocar para não pegar no sono.

Lá pela terceira noite ele ouviu aquele zoadão que vinha acabando tudo. Eram os animais ferozes. Eram três cavalos encantados. Chegaram às hortas do rei e não puderam entrar porque o moço se apresentou em frente deles.

Cada um pediu por sua vez uma folha de couve, que o moço deu. Então o primeiro cavalo disse: “Quando se achar em algum perigo, diga: ‘Valha-me o meu cavalo baio encerado das crinas pretas.’” E partiu.

O outro disse: “Quando se ache nalgum perigo, diga: ‘Valha-me o meu cavalo alazão da estrela branca.”’ Partiu.

O terceiro disse: “Quando se achar nalgum perigo diga: ‘Valha-me o meu cavalo ruço-pombo das canas pretas.’” E sumiu-se.

No dia seguinte apareceram os jardins e hortas do rei perfeitinhos, e Chico Ramela com muito dinheiro e seus irmãos fugidos e corridos de vergonha.

Tempos depois, a filha do rei declarou que só se casava com o moço que, montado a cavalo, em toda a desfilada, subisse as sete escadarias do palácio e lhe tirasse o cravo que ela tinha no cabelo. Marcou-se o dia para esta cerimônia e nenhum pôde conseguir lá chegar.

Então Chico Ramela disse: “Valha-me o meu cavalo baio encerado das crinas pretas.” De repente lhe apareceu aquele cavalo todo arreado de prata que fazia inveja a todos, e ele partiu a toda brida. Chegando ao palácio o cavalo galgou três escadarias e voltou. Todos ficaram muito admirados porque foi o cavalo mais bonito que apareceu e o cavaleiro que chegou mais alto.

No dia seguinte também ninguém nada conseguiu, e Chico Ramela disse: “Valha-me o meu cavalo alazão da estrela branca!”

Apareceu o cavalo todo arreado de ouro e o moço partiu. Galgou cinco escadarias e voltou. Todos ficaram ainda mais espantados e a princesa já se sentia apaixonada.

No terceiro dia a mesma coisa, e ninguém conseguiu chegar onde estava a princesa.

Então Chico Ramela disse: “Valha-me o meu cavalo ruço-pombo das canas pretas!” Apareceu aquele cavalo lindo de fazer medo, todo arreado de diamantes. Houve bravos gerais; o moço passou pela princesa em toda a desfilada, o cavalo trepou as sete escadarias, fez uma mesura, e o moço tirou o cravo dos cabelos da moça.

Teve lugar o casamento; houve muitas festas, e os irmãos do Chico desapareceram envergonhados.

Fonte:
Sílvio Romero, Folclore brasileiro; cantos e contos populares do Brasil. 
RJ: José Olympio, 1954.