Berta está parada em frente ao espelho, as cortinas e janelas do quarto abertas. Pergunta-se quando haviam surgido as rugas tão profundas enquanto as percorre com os dedos. Envolvida pela brisa suave, sente arder a saudade no peito. Calça os chinelos, sempre a postos ao lado da cama, e vai até a sala, onde observa o brilho da rua estender-se pelo caminho entre os aposentos. Agradece em silêncio antes de continuar.
A passos lentos, desce a escadaria, local de tantas lembranças e sermões: o marido apenas levanta o dedo e os pequenos retrocedem. Ela sorri e busca apoio na barra para aumentar o ritmo, quer chegar logo ao hospital. Sua irmã trabalha lá, então não será um problema visitar um paciente no meio da noite. Carros e motos passam ventando por Berta, a zona central de Passo Fundo pulsa como seus motores. Um menino de rua se aproxima:
– Tia, tem uma moeda?
– Se tu chamar um táxi ali em cima, a vó te dá duas moedas!
O menino sobe a avenida e orienta o taxista mais próximo, Seu Adão, a descer até a esquina para pegá-la. Ela entrega as moedas ao menino e entra no carro, onde pede ao motorista que dirija até o Hospital da Cidade. No trajeto, Adão observa o olhar de Berta, suas pupilas brilhantes perdidas no mar de prédios, luzes, algazarra e novidades.
– Dando um passeio noturno, então?
– Vou visitar meu marido no hospital. – Ela olha ao redor, à busca de uma memória, e prossegue. – Quanta coisa diferente, né? Ainda ontem eu tinha a casa de jogo do bicho ali, ao lado da Catedral. Meu marido, o Luíz, vendeu muito Correio do Povo na banca, foi representante.
– Ele tá bem?
– Sim, sim. A gente fica velho e baixa hospital por qualquer resfriado. Tô indo porque é Natal e não quero esperar até amanhã.
Seu Adão, acostumado com bêbados e papos cabeça nas noites trabalhadas, esboça um sorriso sem dentes pelo retrovisor e se cala. Prefere deixar a passageira criar seu próprio itinerário mental e seguir viagem. Estaciona no recuo para pedestres do Hospital, desce, abre a porta do carro e auxilia Berta em sua descida. Ela agradece e entra na recepção, a camisola espiralando com o vento.
– Vim visitar o meu marido. O nome dele é Luíz Martins.
– Perdão, senhora, mas não são permitidas visitas nesse horário.
– Minha irmã é enfermeira aqui, Clara Vaz. Deixa eu falar com ela, é só hoje, porque é Natal.
– Um minuto, por favor.
A recepcionista vai até uma sala ao fundo. Retorna com duas colegas.
– Minha senhora, acho que há algum engano - começa a supervisora. - Não temos registro de uma enfermeira chamada Clara e seu esposo não está hospitalizado aqui. Quem sabe não seja no Hospital São Vicente?
– Não, não - ela responde, já preocupada. - Meu marido está aqui e minha irmã trabalha nesse hospital há anos.
– Sinto muito, não os localizamos.
Seu Adão percebe a altercação e dá uma última tragada em seu cigarro. Entra e, na troca de olhares com as plantonistas, sugere à senhora que retornem, quem sabe tudo não passa de um mal entendido, um erro de percurso. Berta não reluta. Acompanha o taxista até o carro e senta no banco da frente. Contempla a rua com o olhar desbotado, o azul de seus olhos engolidos pela noite.
O retorno é rápido e Adão decide acompanha-la até a porta. Ela está sem chave e a única transação da noite havia sido a conversão de moedas em balas - o menino observa a chegada dos dois a poucos metros. Adão toca a campainha algumas vezes até que uma senhora surge, ainda num estado de transe, na varanda da casa. Ao ver Berta com o homem, seu coração dá um solavanco. Apressa o passo até a entrada, mais hábil que a irmã na descida, e abre a porta em desespero. “Berta!”, exclama.
– Boa noite, desculpe pelo susto. Levei essa senhora até o hospital da cidade, ela diz ter uma irmã que trabalha por lá, queria visitar o esposo.
– Sou irmã dela, meu nome é Clara.
– O Luíz está por aqui, então?
– Já me aposentei há anos. Meu cunhado faleceu há algum tempo.
– Entendo... Ah, as corridas fecham 38 reais.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Jeferson é jornalista formado pela PUCRS. Recebeu o 2º lugar no 31º Concurso Internacional de Composições Epistolares para jovens (RS - 2002). Estudou em oficinas de Escrita Criativa, fez teatro e atua como free lancer, com foco em redação e marketing.
A passos lentos, desce a escadaria, local de tantas lembranças e sermões: o marido apenas levanta o dedo e os pequenos retrocedem. Ela sorri e busca apoio na barra para aumentar o ritmo, quer chegar logo ao hospital. Sua irmã trabalha lá, então não será um problema visitar um paciente no meio da noite. Carros e motos passam ventando por Berta, a zona central de Passo Fundo pulsa como seus motores. Um menino de rua se aproxima:
– Tia, tem uma moeda?
– Se tu chamar um táxi ali em cima, a vó te dá duas moedas!
O menino sobe a avenida e orienta o taxista mais próximo, Seu Adão, a descer até a esquina para pegá-la. Ela entrega as moedas ao menino e entra no carro, onde pede ao motorista que dirija até o Hospital da Cidade. No trajeto, Adão observa o olhar de Berta, suas pupilas brilhantes perdidas no mar de prédios, luzes, algazarra e novidades.
– Dando um passeio noturno, então?
– Vou visitar meu marido no hospital. – Ela olha ao redor, à busca de uma memória, e prossegue. – Quanta coisa diferente, né? Ainda ontem eu tinha a casa de jogo do bicho ali, ao lado da Catedral. Meu marido, o Luíz, vendeu muito Correio do Povo na banca, foi representante.
– Ele tá bem?
– Sim, sim. A gente fica velho e baixa hospital por qualquer resfriado. Tô indo porque é Natal e não quero esperar até amanhã.
Seu Adão, acostumado com bêbados e papos cabeça nas noites trabalhadas, esboça um sorriso sem dentes pelo retrovisor e se cala. Prefere deixar a passageira criar seu próprio itinerário mental e seguir viagem. Estaciona no recuo para pedestres do Hospital, desce, abre a porta do carro e auxilia Berta em sua descida. Ela agradece e entra na recepção, a camisola espiralando com o vento.
– Vim visitar o meu marido. O nome dele é Luíz Martins.
– Perdão, senhora, mas não são permitidas visitas nesse horário.
– Minha irmã é enfermeira aqui, Clara Vaz. Deixa eu falar com ela, é só hoje, porque é Natal.
– Um minuto, por favor.
A recepcionista vai até uma sala ao fundo. Retorna com duas colegas.
– Minha senhora, acho que há algum engano - começa a supervisora. - Não temos registro de uma enfermeira chamada Clara e seu esposo não está hospitalizado aqui. Quem sabe não seja no Hospital São Vicente?
– Não, não - ela responde, já preocupada. - Meu marido está aqui e minha irmã trabalha nesse hospital há anos.
– Sinto muito, não os localizamos.
Seu Adão percebe a altercação e dá uma última tragada em seu cigarro. Entra e, na troca de olhares com as plantonistas, sugere à senhora que retornem, quem sabe tudo não passa de um mal entendido, um erro de percurso. Berta não reluta. Acompanha o taxista até o carro e senta no banco da frente. Contempla a rua com o olhar desbotado, o azul de seus olhos engolidos pela noite.
O retorno é rápido e Adão decide acompanha-la até a porta. Ela está sem chave e a única transação da noite havia sido a conversão de moedas em balas - o menino observa a chegada dos dois a poucos metros. Adão toca a campainha algumas vezes até que uma senhora surge, ainda num estado de transe, na varanda da casa. Ao ver Berta com o homem, seu coração dá um solavanco. Apressa o passo até a entrada, mais hábil que a irmã na descida, e abre a porta em desespero. “Berta!”, exclama.
– Boa noite, desculpe pelo susto. Levei essa senhora até o hospital da cidade, ela diz ter uma irmã que trabalha por lá, queria visitar o esposo.
– Sou irmã dela, meu nome é Clara.
– O Luíz está por aqui, então?
– Já me aposentei há anos. Meu cunhado faleceu há algum tempo.
– Entendo... Ah, as corridas fecham 38 reais.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Jeferson é jornalista formado pela PUCRS. Recebeu o 2º lugar no 31º Concurso Internacional de Composições Epistolares para jovens (RS - 2002). Estudou em oficinas de Escrita Criativa, fez teatro e atua como free lancer, com foco em redação e marketing.
Fonte:
Portal Escrita Criativa (contos).
Portal Escrita Criativa (contos).
Nenhum comentário:
Postar um comentário