O Capitão Jerônimo Ferreira, morador da antiga vila de São João Batista de Faro, voltava de uma caçada a que fora para distrair-se do profundo pesar causado pela morte da mulher, que o deixara subitamente só com uma filhinha de dois anos de idade.
Perdida a calma habitual de velho caçador, Jerônimo Ferreira transviou-se e só conseguiu chegar às vizinhanças da vila quando já era noite fechada.
Felizmente, a sua habitação era a primeira, ao entrar na povoação pelo lado de cima, por onde vinha caminhando, e por isso não o impressionaram muito o silêncio e a solidão que a modo se tornavam mais profundos à medida que se aproximava da vila. Ele já estava habituado à melancolia de Faro, talvez o mais triste e abandonado dos povoados do vale do Amazonas, posto que se mire nas águas do Nhamundá, o mais belo curso d’água de toda a região.
Faro é sempre deserta. A menos que não seja algum dia de festa, em que a gente das vizinhas fazendas venha ao povoado, quase não se encontra viva alma nas ruas. Mas se isso acontece à luz do sol, às horas de trabalho e de passeio, à noite a solidão aumenta. As ruas, quando não sai a lua, são de uma escuridão pavorosa. Desde as sete horas da tarde, só se ouve na povoação o pio agoureiro do murucututu ou o lúgubre uivar de algum cão vagabundo, apostando queixumes com as águas murmurantes do rio.
Fecham-se todas as portas. Recolhem-se todos, com um terror vago e incerto que procuram esconjurar, invocando: — Jesus, Maria, José!
Vinha, pois, caminhando o capitão Jerônimo a solitária estrada, pensando no bom agasalho da sua fresca rede de algodão trançado e lastimando-se de não chegar a tempo de encontrar o sorriso encantador da filha, que já estaria dormindo. Da caçada nada trazia, fora um dia infeliz, nada pudera encontrar, nem ave nem bicho, e ainda em cima perdera-se e chegava tarde, faminto e cansado.
Também quem lhe mandara sair à caça na sexta-feira? Sim, era uma sexta-feira, e quando depois de uma noite de insônia se resolvera a tomar a espingarda e a partir para a caça, não se lembrara que estava num dia por todos conhecido como aziago, e especialmente temido em Faro, sobre o que pesa o fado de terríveis malefícios.
Com esses pensamentos, o capitão começou a achar o caminho muito comprido, por lhe parecer que já havia muito passado o marco da jurisdição da vila. Levantou os olhos para o céu para ver se orientava pelas estrelas sobre o tempo decorrido. Mas não viu estrelas. Tendo andado muito tempo por baixo de um arvoredo, não notara que o tempo se transtornava e achou-se de repente numa dessas terríveis noites do Amazonas, em que o céu parece ameaçar a terra com todo o furor da sua cólera divina.
Súbito, o clarão vivo de um relâmpago, rasgando o céu, mostrou ao caçador que se achava a pequena distância da vila, cujas casas, caiadas de branco, lhe apareceram numa visão efêmera. Mas pareceu-lhe que errara de novo o caminho, pois não vira a sua casinha abençoada, que devia ser a primeira a avistar. Com poucos passos mais, achou-se numa rua, mas não era a sua. Parou e pôs o ouvido à escuta, abrindo também os olhos para não perder a orientação de um novo relâmpago.
Nenhuma voz humana se fazia ouvir em toda a vila, nenhuma luz se via, nada que indicasse a existência de um ser vivente em toda a redondeza. Faro parecia morta.
Trovões furibundos começaram a atroar os ares. Relâmpagos amiudavam-se, inundando de luz rápida e viva as matas e os grupos de habitações, que logo depois ficavam mais sombrios.
Raios caíram com fragor enorme, prostrando cedros grandes, velhos, centenários. O capitão Jerônimo não podia mais dar um passo, nem mais sabia onde estava. Mas tudo isso não era nada. Do fundo do rio, das profundezas da lagoa formada pelo Nhamundá, levantava-se um ruído que foi crescendo, crescendo e se tornou um clamor horrível, insano, uma voz sem nome que dominava todos os ruídos da tempestade. Era um clamor só comparável ao brado imenso que hão de soltar os condenados no dia do Juízo Final.
Os cabelos do capitão Ferreira puseram-se de pé e duros como estacas. Ele bem sabia o que aquilo era. Aquela voz era a voz da cobra grande, da colossal sucuriju que reside no fundo dos rios e dos lagos. Eram os lamentos do monstro em laborioso parto.
O capitão levou a mão à testa para benzer-se, mas os dedos trêmulos de medo não conseguiram fazer o sinal-da-cruz. Invocando o santo do seu nome, Jerônimo Ferreira deitou a correr na direção em que supunha estar a sua desejada casa. Mas a voz, a terrível voz aumentava de volume. Cresceu mais, cresceu tanto afinal, que os ouvidos do capitão zumbiram, tremeram-lhe as pernas e caiu no limiar de uma porta.
Com a queda, espantou um grande pássaro escuro que ali parecia pousado, e que voou cantando:
— Acauã, acauã!
Muito tempo esteve o capitão caído sem sentidos. Quando tornou a si, a noite estava ainda escura, mas a tempestade cessara. Um silêncio tumular reinava. Jerônimo, procurando orientar-se, olhou para a lagoa e viu que a superfície das águas tinha um brilho estranho como se a tivessem untado de fósforo. Deixou errar o olhar sobre a toalha do rio, e um objeto estranho, afetando a forma de uma canoa, chamou-lhe a atenção. O objeto vinha impelido por uma força desconhecida em direção à praia para o lado em que se achava Jerônimo. Este, tomado de uma curiosidade invencível, adiantou-se, meteu os pés na água e puxou para si o estranho objeto. Era com efeito uma pequena canoa, e no fundo dela estava uma criança que parecia dormir. O capitão tomou-a nos braços.
Nesse momento, rompeu o sol por entre os animais de uma ilha vizinha, cantaram os galos da vila, ladraram os cães, correu rápido o rio perdendo o brilho desusado. Abriram-se algumas portas.
À luz da manhã, o capitão Jerônimo Ferreira reconheceu que caíra desmaiado justamente no limiar da sua casa. No dia seguinte, toda a vila de Faro dizia que o capitão adotara uma linda criança, achada à beira do rio, e que se dispunha a criá-la, como própria, juntamente com a sua legítima Aninha.
Tratada efetivamente como filha da casa, cresceu a estranha criança, que foi batizada com o nome de Vitória.
Educada da mesma forma que Aninha, participava da mesa, dos carinhos e afagos do capitão, esquecido do modo que a recebera. Eram ambas moças bonitas aos 14 anos, mas tinham tipo diferente. Ana fora uma criança robusta e sã, era agora franzina e pálida. Os anelados cabelos castanhos caíam-lhe sobre as alvas e magras espáduas. Os olhos tinham uma languidez doentia. A boca andava sempre contraída, numa constante vontade de chorar. Raras rugas divisavam-se-lhe nos cantos da boca e na fronte baixa, um tanto cavada. Sem que nunca a tivessem visto verter uma lágrima, Aninha tinha um ar tristonho, que a todos impressionava, e se ia tornando cada dia mais visível.
Na vila dizia toda a gente:
— Como está magra e abatida a Aninha Ferreira que prometia ser robusta e alegre.
Vitória era alta e magra, de compleição forte, com músculos de aço. A tez era morena, quase escura, as sobrancelhas negras e arqueadas, o queixo fino e pontudo, as narinas dilatadas, os olhos negros, rasgados, de um brilho estranho. Apesar da incontestável formosura, tinha alguma coisa de masculino nas feições e nos modos. A boca, ornada de magníficos dentes, tinha um sorriso de gelo. Fitava com arrogância os homens até obrigá-los a baixar os olhos.
As duas companheiras afetavam a maior intimidade e ternura recíproca, mas o observador atento notaria que Aninha evitava a companhia da outra ao passo que esta a não deixava.
A filha de Jerônimo era meiga para com a companheira, mas havia nessa meiguice um certo acanhamento, uma espécie de sofrimento, uma repulsão, alguma coisa como um terror vago, quando a outra cravava-lhe nos olhos dúbios e amortecidos os seus grandes olhos negros.
Nas relações de todos os dias, a voz da filha da casa era mal segura e trêmula; a de Vitória, áspera e dura. Aninha, ao pé de Vitória, parecia uma escrava junto da senhora.
Tudo, porém, correu sem novidade, até o dia em que completaram 15 anos, pois se dizia que eram da mesma idade. Desse dia em diante, Jerônimo Ferreira começou a notar que a sua filha adotiva ausentava-se da casa frequentemente, em horas impróprias e suspeitas, sem nunca querer dizer por onde andava. Ao mesmo tempo que isso sucedia, Aninha ficava mais fraca e abatida. Não falava, não sorria, dois círculos arroxeados salientavam-lhe a morbidez dos grandes olhos pardos. Uma espécie de cansaço geral dos órgãos parecia que lhe ia tirando pouco a pouco a energia da vida.
Quando o pai chegava-se a ela e lhe perguntava carinhosamente:
— Que tens, Aninha?
A menina, olhando assustada para os cantos, respondia em voz cortada de soluços:
— Nada, papai.
A outra, quando Jerônimo a repreendia pelas inexplicáveis ausências, dizia com altivez e pronunciado desdém:
— E que tem vosmecê com isso?
Em julho desse mesmo ano, o filho de um fazendeiro do Salé, que viera passar o São João em Faro, enamorou-se da filha de Jerônimo e pediu-a em casamento. O rapaz era bem-apessoado, tinha alguma coisa de seu e gozava de reputação de sério. Pai e filha anuíram gostosamente ao pedido e trataram dos preparativos do noivado.
Um vago sorriso iluminava as feições delicadas de Aninha. Mas um dia em que o capitão Jerônimo fumava tranquilamente o seu cigarro de tauari à porta da rua, olhando para as águas serenas do Nhamundá, a Aninha veio se aproximando dele a passos trôpegos, hesitante e trêmula, e, como se cedesse a uma ordem irresistível, disse, balbuciando, que não queria mais casar.
— Por quê? — foi a palavra que veio naturalmente aos lábios do pai tomado de surpresa.
Por nada, porque não queria. E, juntando as mãos, a pobre menina pediu com tal expressão de sentimento, que o pai enleado, confuso, dolorosamente agitado por um pressentimento negro, aquiesceu, vivamente contrariado.
— Pois não falemos mais nisso.
Em Faro, não se falou em outra coisa durante muito tempo, senão na inconstância da Aninha Ferreira. Somente Vitória nada dizia. O fazendeiro do Salé voltou para as suas terras, prometendo vingar-se da desfeita que lhe haviam feito.
E a desconhecida moléstia da Aninha se agravava a ponto de impressionar seriamente o capitão Jerônimo e toda a gente da vila. Aquilo é paixão recalcada, diziam alguns. Mas a opinião mais aceita era que a filha do Ferreira estava enfeitiçada.
No ano seguinte, o coletor apresentou-se pretendente à filha do abastado Jerônimo Ferreira.
— Olhe, seu Ribeirinho, disse-lhe o capitão, é se ela muito bem quiser, porque não a quero obrigar. Mas eu já lhe dou uma resposta nesta meia hora.
Foi ter com a filha e achou-a nas melhores disposições para o casamento. Mandou chamar o coletor, que se retirara discretamente, e disse-lhe muito contente:
— Toque lá, seu Ribeirinho, é negócio arranjado.
Mas, daí alguns dias, Aninha foi dizer ao pai que não queria casar com o Ribeirinho.
O pai deu um pulo da rede em que se deitara havia minutos para dormir a sesta.
— Temos tolice?
E como a moça dissesse que nada era, nada tinha, mas não queria casar, terminou em voz de quem manda:
— Pois agora há de casar que o quero eu.
Aninha foi para o seu quarto e lá ficou encerrada até ao dia do casamento, sem que nem pedidos nem ameaças a obrigassem a sair.
Entretanto, a agitação de Vitória era extrema. Entrava a todo o momento no quarto da companheira e saía logo depois com as feições contraídas pela ira.
Ausentava-se da casa durante muitas horas, metia-se pelos matos, dando gargalhadas que assustavam os passarinhos. Já não dirigia a palavra a seu protetor nem a pessoa alguma da casa.
Chegou, porém, o dia da celebração do casamento. Os noivos, acompanhados pelo capitão, pelos padrinhos e por quase toda a população da vila, dirigiram-se para a matriz. Notava-se com espanto a ausência da irmã adotiva da noiva. Desaparecera, e, por maiores que fossem os esforços tentados para a encontrar, não lhe puderam descobrir o paradeiro. Toda a gente indagava, surpresa:
— Onde estará Vitória?
— Como não vem assistir ao casamento da Aninha?
O capitão franzia o sobrolho, mas a filha parecia aliviada e contente. Afinal como ia ficando tarde, o cortejo penetrou na matriz, e deu-se começo a cerimônia.
Mas eis que na ocasião em que o vigário lhe perguntava se casava por seu gosto, a noiva põe-se a tremer como varas verdes, com o olhar fixo na porta lateral da sacristia. O pai, ansioso, acompanhou a direção daquele olhar e ficou com o coração do tamanho de um grão de milho.
De pé, à porta da sacristia, hirta como uma defunta, com uma cabeleira feita de cobras, com as narinas dilatadas e a tez verde-negra, Vitória, a sua filha adotiva, fixava em Aninha um olhar horrível, olhar de demônio, olhar frio que parecia querer pregá-la imóvel no chão. A boca entreaberta mostrava a língua fina, bipartida como língua de serpente. Um leve fumo azulado saía-lhe da boca, e ia subindo até ao teto da igreja. Era um espetáculo sem nome!
Aninha soltou um grito de agonia e caiu com estrondo sobre os degraus do altar. Uma confusão fez-se entre os assistentes. Todos queriam acudir-lhe, mas não sabiam o que fazer. Só o capitão Jerônimo, em cuja memória aparecia de súbito a lembrança da noite em que encontrara a estranha criança, não podia despregar os olhos da pessoa de Vitória, até que esta, dando um horrível brado, desapareceu, sem se saber como.
Voltou-se então para a filha e uma comoção profunda abalou-lhe o coração. A pobre noiva, toda vestida de branco, deitada sobre os degraus do altar-mor, estava hirta e pálida. Dois grandes fios de lágrimas, como contas de um colar desfeito, corriam-lhe pela face. E ela nunca chorara, nunca desde que nascera se lhe vira uma lágrima nos olhos!
— Lágrimas! — exclamou o capitão, ajoelhando ao pé da filha.
— Lágrimas! — clamou a multidão tomada de espanto.
Então convulsões terríveis se apoderaram do corpo de Aninha. Retorcia-se como se fora de borracha. O seio agitava-se dolorosamente. Os dentes rangiam em fúria. Arrancava com as mãos o lindo cabelo. Os pés batiam no assoalho. Os olhos reviravam-se nas órbitas, escondendo a pupila. Toda ela se maltratava, rolando como uma frenética, uivando dolorosamente.
Todos os que assistiam a esta cena estavam comovidos. O pai, debruçado sobre o corpo da filha, chorava como uma criança.
De repente, a moça pareceu sossegar um pouco, mas não foi senão o princípio de uma nova crise. Inteiriçou-se. Ficou imóvel. Encolheu depois os braços, dobrou-os a modo de asas de pássaro, bateu-o por vezes nas ilhargas, e, entreabrindo a boca, deixou sair um longo grito que nada tinha de humano, um grito que ecoou lugubremente pela igreja:
— Acauã!
— Jesus! — bradaram todos caindo de joelhos.
E a moça, cerrando os olhos como em êxtase, com o corpo imóvel, à exceção dos braços, continuou aquele canto lúgubre:
— Acauã! Acauã!
Por cima do telhado, uma voz respondeu à de Aninha:
— Acauã! Acauã!
Um silêncio tumular reinou entre os assistentes. Todos compreendiam a horrível desgraça. Era o Acauã!
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Sobre a lenda do Acauã, veja em
https://singrandohorizontes.blogspot.com/2011/01/folclore-supersticao-lendas-e-historias.html
Perdida a calma habitual de velho caçador, Jerônimo Ferreira transviou-se e só conseguiu chegar às vizinhanças da vila quando já era noite fechada.
Felizmente, a sua habitação era a primeira, ao entrar na povoação pelo lado de cima, por onde vinha caminhando, e por isso não o impressionaram muito o silêncio e a solidão que a modo se tornavam mais profundos à medida que se aproximava da vila. Ele já estava habituado à melancolia de Faro, talvez o mais triste e abandonado dos povoados do vale do Amazonas, posto que se mire nas águas do Nhamundá, o mais belo curso d’água de toda a região.
Faro é sempre deserta. A menos que não seja algum dia de festa, em que a gente das vizinhas fazendas venha ao povoado, quase não se encontra viva alma nas ruas. Mas se isso acontece à luz do sol, às horas de trabalho e de passeio, à noite a solidão aumenta. As ruas, quando não sai a lua, são de uma escuridão pavorosa. Desde as sete horas da tarde, só se ouve na povoação o pio agoureiro do murucututu ou o lúgubre uivar de algum cão vagabundo, apostando queixumes com as águas murmurantes do rio.
Fecham-se todas as portas. Recolhem-se todos, com um terror vago e incerto que procuram esconjurar, invocando: — Jesus, Maria, José!
Vinha, pois, caminhando o capitão Jerônimo a solitária estrada, pensando no bom agasalho da sua fresca rede de algodão trançado e lastimando-se de não chegar a tempo de encontrar o sorriso encantador da filha, que já estaria dormindo. Da caçada nada trazia, fora um dia infeliz, nada pudera encontrar, nem ave nem bicho, e ainda em cima perdera-se e chegava tarde, faminto e cansado.
Também quem lhe mandara sair à caça na sexta-feira? Sim, era uma sexta-feira, e quando depois de uma noite de insônia se resolvera a tomar a espingarda e a partir para a caça, não se lembrara que estava num dia por todos conhecido como aziago, e especialmente temido em Faro, sobre o que pesa o fado de terríveis malefícios.
Com esses pensamentos, o capitão começou a achar o caminho muito comprido, por lhe parecer que já havia muito passado o marco da jurisdição da vila. Levantou os olhos para o céu para ver se orientava pelas estrelas sobre o tempo decorrido. Mas não viu estrelas. Tendo andado muito tempo por baixo de um arvoredo, não notara que o tempo se transtornava e achou-se de repente numa dessas terríveis noites do Amazonas, em que o céu parece ameaçar a terra com todo o furor da sua cólera divina.
Súbito, o clarão vivo de um relâmpago, rasgando o céu, mostrou ao caçador que se achava a pequena distância da vila, cujas casas, caiadas de branco, lhe apareceram numa visão efêmera. Mas pareceu-lhe que errara de novo o caminho, pois não vira a sua casinha abençoada, que devia ser a primeira a avistar. Com poucos passos mais, achou-se numa rua, mas não era a sua. Parou e pôs o ouvido à escuta, abrindo também os olhos para não perder a orientação de um novo relâmpago.
Nenhuma voz humana se fazia ouvir em toda a vila, nenhuma luz se via, nada que indicasse a existência de um ser vivente em toda a redondeza. Faro parecia morta.
Trovões furibundos começaram a atroar os ares. Relâmpagos amiudavam-se, inundando de luz rápida e viva as matas e os grupos de habitações, que logo depois ficavam mais sombrios.
Raios caíram com fragor enorme, prostrando cedros grandes, velhos, centenários. O capitão Jerônimo não podia mais dar um passo, nem mais sabia onde estava. Mas tudo isso não era nada. Do fundo do rio, das profundezas da lagoa formada pelo Nhamundá, levantava-se um ruído que foi crescendo, crescendo e se tornou um clamor horrível, insano, uma voz sem nome que dominava todos os ruídos da tempestade. Era um clamor só comparável ao brado imenso que hão de soltar os condenados no dia do Juízo Final.
Os cabelos do capitão Ferreira puseram-se de pé e duros como estacas. Ele bem sabia o que aquilo era. Aquela voz era a voz da cobra grande, da colossal sucuriju que reside no fundo dos rios e dos lagos. Eram os lamentos do monstro em laborioso parto.
O capitão levou a mão à testa para benzer-se, mas os dedos trêmulos de medo não conseguiram fazer o sinal-da-cruz. Invocando o santo do seu nome, Jerônimo Ferreira deitou a correr na direção em que supunha estar a sua desejada casa. Mas a voz, a terrível voz aumentava de volume. Cresceu mais, cresceu tanto afinal, que os ouvidos do capitão zumbiram, tremeram-lhe as pernas e caiu no limiar de uma porta.
Com a queda, espantou um grande pássaro escuro que ali parecia pousado, e que voou cantando:
— Acauã, acauã!
Muito tempo esteve o capitão caído sem sentidos. Quando tornou a si, a noite estava ainda escura, mas a tempestade cessara. Um silêncio tumular reinava. Jerônimo, procurando orientar-se, olhou para a lagoa e viu que a superfície das águas tinha um brilho estranho como se a tivessem untado de fósforo. Deixou errar o olhar sobre a toalha do rio, e um objeto estranho, afetando a forma de uma canoa, chamou-lhe a atenção. O objeto vinha impelido por uma força desconhecida em direção à praia para o lado em que se achava Jerônimo. Este, tomado de uma curiosidade invencível, adiantou-se, meteu os pés na água e puxou para si o estranho objeto. Era com efeito uma pequena canoa, e no fundo dela estava uma criança que parecia dormir. O capitão tomou-a nos braços.
Nesse momento, rompeu o sol por entre os animais de uma ilha vizinha, cantaram os galos da vila, ladraram os cães, correu rápido o rio perdendo o brilho desusado. Abriram-se algumas portas.
À luz da manhã, o capitão Jerônimo Ferreira reconheceu que caíra desmaiado justamente no limiar da sua casa. No dia seguinte, toda a vila de Faro dizia que o capitão adotara uma linda criança, achada à beira do rio, e que se dispunha a criá-la, como própria, juntamente com a sua legítima Aninha.
Tratada efetivamente como filha da casa, cresceu a estranha criança, que foi batizada com o nome de Vitória.
Educada da mesma forma que Aninha, participava da mesa, dos carinhos e afagos do capitão, esquecido do modo que a recebera. Eram ambas moças bonitas aos 14 anos, mas tinham tipo diferente. Ana fora uma criança robusta e sã, era agora franzina e pálida. Os anelados cabelos castanhos caíam-lhe sobre as alvas e magras espáduas. Os olhos tinham uma languidez doentia. A boca andava sempre contraída, numa constante vontade de chorar. Raras rugas divisavam-se-lhe nos cantos da boca e na fronte baixa, um tanto cavada. Sem que nunca a tivessem visto verter uma lágrima, Aninha tinha um ar tristonho, que a todos impressionava, e se ia tornando cada dia mais visível.
Na vila dizia toda a gente:
— Como está magra e abatida a Aninha Ferreira que prometia ser robusta e alegre.
Vitória era alta e magra, de compleição forte, com músculos de aço. A tez era morena, quase escura, as sobrancelhas negras e arqueadas, o queixo fino e pontudo, as narinas dilatadas, os olhos negros, rasgados, de um brilho estranho. Apesar da incontestável formosura, tinha alguma coisa de masculino nas feições e nos modos. A boca, ornada de magníficos dentes, tinha um sorriso de gelo. Fitava com arrogância os homens até obrigá-los a baixar os olhos.
As duas companheiras afetavam a maior intimidade e ternura recíproca, mas o observador atento notaria que Aninha evitava a companhia da outra ao passo que esta a não deixava.
A filha de Jerônimo era meiga para com a companheira, mas havia nessa meiguice um certo acanhamento, uma espécie de sofrimento, uma repulsão, alguma coisa como um terror vago, quando a outra cravava-lhe nos olhos dúbios e amortecidos os seus grandes olhos negros.
Nas relações de todos os dias, a voz da filha da casa era mal segura e trêmula; a de Vitória, áspera e dura. Aninha, ao pé de Vitória, parecia uma escrava junto da senhora.
Tudo, porém, correu sem novidade, até o dia em que completaram 15 anos, pois se dizia que eram da mesma idade. Desse dia em diante, Jerônimo Ferreira começou a notar que a sua filha adotiva ausentava-se da casa frequentemente, em horas impróprias e suspeitas, sem nunca querer dizer por onde andava. Ao mesmo tempo que isso sucedia, Aninha ficava mais fraca e abatida. Não falava, não sorria, dois círculos arroxeados salientavam-lhe a morbidez dos grandes olhos pardos. Uma espécie de cansaço geral dos órgãos parecia que lhe ia tirando pouco a pouco a energia da vida.
Quando o pai chegava-se a ela e lhe perguntava carinhosamente:
— Que tens, Aninha?
A menina, olhando assustada para os cantos, respondia em voz cortada de soluços:
— Nada, papai.
A outra, quando Jerônimo a repreendia pelas inexplicáveis ausências, dizia com altivez e pronunciado desdém:
— E que tem vosmecê com isso?
Em julho desse mesmo ano, o filho de um fazendeiro do Salé, que viera passar o São João em Faro, enamorou-se da filha de Jerônimo e pediu-a em casamento. O rapaz era bem-apessoado, tinha alguma coisa de seu e gozava de reputação de sério. Pai e filha anuíram gostosamente ao pedido e trataram dos preparativos do noivado.
Um vago sorriso iluminava as feições delicadas de Aninha. Mas um dia em que o capitão Jerônimo fumava tranquilamente o seu cigarro de tauari à porta da rua, olhando para as águas serenas do Nhamundá, a Aninha veio se aproximando dele a passos trôpegos, hesitante e trêmula, e, como se cedesse a uma ordem irresistível, disse, balbuciando, que não queria mais casar.
— Por quê? — foi a palavra que veio naturalmente aos lábios do pai tomado de surpresa.
Por nada, porque não queria. E, juntando as mãos, a pobre menina pediu com tal expressão de sentimento, que o pai enleado, confuso, dolorosamente agitado por um pressentimento negro, aquiesceu, vivamente contrariado.
— Pois não falemos mais nisso.
Em Faro, não se falou em outra coisa durante muito tempo, senão na inconstância da Aninha Ferreira. Somente Vitória nada dizia. O fazendeiro do Salé voltou para as suas terras, prometendo vingar-se da desfeita que lhe haviam feito.
E a desconhecida moléstia da Aninha se agravava a ponto de impressionar seriamente o capitão Jerônimo e toda a gente da vila. Aquilo é paixão recalcada, diziam alguns. Mas a opinião mais aceita era que a filha do Ferreira estava enfeitiçada.
No ano seguinte, o coletor apresentou-se pretendente à filha do abastado Jerônimo Ferreira.
— Olhe, seu Ribeirinho, disse-lhe o capitão, é se ela muito bem quiser, porque não a quero obrigar. Mas eu já lhe dou uma resposta nesta meia hora.
Foi ter com a filha e achou-a nas melhores disposições para o casamento. Mandou chamar o coletor, que se retirara discretamente, e disse-lhe muito contente:
— Toque lá, seu Ribeirinho, é negócio arranjado.
Mas, daí alguns dias, Aninha foi dizer ao pai que não queria casar com o Ribeirinho.
O pai deu um pulo da rede em que se deitara havia minutos para dormir a sesta.
— Temos tolice?
E como a moça dissesse que nada era, nada tinha, mas não queria casar, terminou em voz de quem manda:
— Pois agora há de casar que o quero eu.
Aninha foi para o seu quarto e lá ficou encerrada até ao dia do casamento, sem que nem pedidos nem ameaças a obrigassem a sair.
Entretanto, a agitação de Vitória era extrema. Entrava a todo o momento no quarto da companheira e saía logo depois com as feições contraídas pela ira.
Ausentava-se da casa durante muitas horas, metia-se pelos matos, dando gargalhadas que assustavam os passarinhos. Já não dirigia a palavra a seu protetor nem a pessoa alguma da casa.
Chegou, porém, o dia da celebração do casamento. Os noivos, acompanhados pelo capitão, pelos padrinhos e por quase toda a população da vila, dirigiram-se para a matriz. Notava-se com espanto a ausência da irmã adotiva da noiva. Desaparecera, e, por maiores que fossem os esforços tentados para a encontrar, não lhe puderam descobrir o paradeiro. Toda a gente indagava, surpresa:
— Onde estará Vitória?
— Como não vem assistir ao casamento da Aninha?
O capitão franzia o sobrolho, mas a filha parecia aliviada e contente. Afinal como ia ficando tarde, o cortejo penetrou na matriz, e deu-se começo a cerimônia.
Mas eis que na ocasião em que o vigário lhe perguntava se casava por seu gosto, a noiva põe-se a tremer como varas verdes, com o olhar fixo na porta lateral da sacristia. O pai, ansioso, acompanhou a direção daquele olhar e ficou com o coração do tamanho de um grão de milho.
De pé, à porta da sacristia, hirta como uma defunta, com uma cabeleira feita de cobras, com as narinas dilatadas e a tez verde-negra, Vitória, a sua filha adotiva, fixava em Aninha um olhar horrível, olhar de demônio, olhar frio que parecia querer pregá-la imóvel no chão. A boca entreaberta mostrava a língua fina, bipartida como língua de serpente. Um leve fumo azulado saía-lhe da boca, e ia subindo até ao teto da igreja. Era um espetáculo sem nome!
Aninha soltou um grito de agonia e caiu com estrondo sobre os degraus do altar. Uma confusão fez-se entre os assistentes. Todos queriam acudir-lhe, mas não sabiam o que fazer. Só o capitão Jerônimo, em cuja memória aparecia de súbito a lembrança da noite em que encontrara a estranha criança, não podia despregar os olhos da pessoa de Vitória, até que esta, dando um horrível brado, desapareceu, sem se saber como.
Voltou-se então para a filha e uma comoção profunda abalou-lhe o coração. A pobre noiva, toda vestida de branco, deitada sobre os degraus do altar-mor, estava hirta e pálida. Dois grandes fios de lágrimas, como contas de um colar desfeito, corriam-lhe pela face. E ela nunca chorara, nunca desde que nascera se lhe vira uma lágrima nos olhos!
— Lágrimas! — exclamou o capitão, ajoelhando ao pé da filha.
— Lágrimas! — clamou a multidão tomada de espanto.
Então convulsões terríveis se apoderaram do corpo de Aninha. Retorcia-se como se fora de borracha. O seio agitava-se dolorosamente. Os dentes rangiam em fúria. Arrancava com as mãos o lindo cabelo. Os pés batiam no assoalho. Os olhos reviravam-se nas órbitas, escondendo a pupila. Toda ela se maltratava, rolando como uma frenética, uivando dolorosamente.
Todos os que assistiam a esta cena estavam comovidos. O pai, debruçado sobre o corpo da filha, chorava como uma criança.
De repente, a moça pareceu sossegar um pouco, mas não foi senão o princípio de uma nova crise. Inteiriçou-se. Ficou imóvel. Encolheu depois os braços, dobrou-os a modo de asas de pássaro, bateu-o por vezes nas ilhargas, e, entreabrindo a boca, deixou sair um longo grito que nada tinha de humano, um grito que ecoou lugubremente pela igreja:
— Acauã!
— Jesus! — bradaram todos caindo de joelhos.
E a moça, cerrando os olhos como em êxtase, com o corpo imóvel, à exceção dos braços, continuou aquele canto lúgubre:
— Acauã! Acauã!
Por cima do telhado, uma voz respondeu à de Aninha:
— Acauã! Acauã!
Um silêncio tumular reinou entre os assistentes. Todos compreendiam a horrível desgraça. Era o Acauã!
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Sobre a lenda do Acauã, veja em
https://singrandohorizontes.blogspot.com/2011/01/folclore-supersticao-lendas-e-historias.html
Fonte:
Inglês de Souza. Contos amazônicos. Publicado em 1892.
Inglês de Souza. Contos amazônicos. Publicado em 1892.
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