segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 32 e 33


A VEZ DOS FERREIROS


Dentro do Partido Antissituação surgiu a ideia de se criar outro partido, que seria, digamos, o Partido dos Ferreiros, por serem os ferreiros, como se sabe, classe até agora sem representação política.

— Os ferreiros são o sustentáculo da nação. Sem eles não haveria o ferro trabalhado e convertido em inúmeros objetos da maior serventia, inclusive as ferraduras para cavalos, esses animais de que não podemos prescindir para as corridas de obstáculos e outras. Vamos fundar o Partido Ferreiral Copaibano — propôs um orador.

— Partido Ferreirista Copaibano é que deve ser — aparteou outro prócer, e saiu na disparada para registrar a sigla PFC, comum aos dois projetos.

O partidário do Ferreiral saiu-lhe na cola, e os dois chegaram ao local desejado com cinco minutos de diferença entre um e outro. O oficial de registros partidários, vendo ambos bem vestidos e com as mãos primorosamente limpas, indagou:

— Qual dos senhores é ferreiro?

Ao que responderam a una voce:

— E precisa?
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BINÓCULOS

No apartamento fronteiro instalou-se há dias novo morador. Ele assesta o binóculo em minha direção. Percebendo que estava sendo observado, tirei da gaveta o meu binóculo e por minha vez pus-me a observá-lo.

Nossos olhares se cruzaram. Imóveis, cada um lia no rosto do outro alguma coisa que lhe interessava saber. Ou tentava lê-la, mas, sentindo ambos que eram objeto de curiosidade mútua, ele procurava disfarçar o que tivesse de revelável no rosto, e eu fazia o mesmo, de sorte que, quanto mais nos inspecionávamos pelo olhar, mais realmente nos desconhecíamos.

A contemplação simultânea durou não sei quantos minutos. Era ostensiva e ao mesmo tempo astuciosa, enganadora e denunciadora.

Seríamos talvez (ou nos tornaríamos) dois inimigos, dois companheiros, dois irmãos, dois críticos implacáveis. Ele necessitava de mim, e eu dele, nessa procura do que nos faltava a ambos. Cheguei a pensar que fôssemos uma só pessoa, desdobrada e reunificada pelos binóculos.

Nesse caso, estaria eu procurando ver no rosto alheio o meu verdadeiro rosto e, quem sabe, aquilo que meu rosto esconde de si mesmo. E, do outro lado da rua, meu rosto desdobrado fazia a mesma coisa.

Nisso caiu uma chuva forte, que embaciou as vidraças atrás das quais nos protegemos, e nossos binóculos e rostos tornaram-se praticamente liquefeitos, cessando a pesquisa.

Não tenho visto mais o novo morador, e não sei onde botei esse binóculo.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

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