quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Carolina Ramos (Paradiso)

A vida andava difícil. Não só para um, nem dois – difícil para todos! Mesmo os mais abastados tinham lá suas carências. A classe média, achatada como fatia de pão prensada entre as abas de um torrador, deixava-se ressecar, a cada dia.

Jerônimo da Silva, trabalhador como tantos outros, via a rotina diária, árdua e absorvente, desidratar-lhe os sonhos, sem piedade. Era erguer-se com o Sol e recolher-se a casa, quando a lua já ia alta, E a algibeira sempre mais vazia!

Naquela manhã, chegado ao prédio Paradiso, em reformas, e do qual era zelador, prendeu o crachá ao peito, abotoando-o no bolso da camisa.

Deixou-se envolver pelo trabalho. A obra, já em meio, seguia sem problemas, a subir firme rumo à conclusão. Paralelo ao esforço arquitetônico, outro plano também subia, um andar por dia, na cabeça de Jerônimo.

Quando a noite desceu, deixou que a obra se esvaziasse. Nervoso, rumou a passo ligeiro para o estabelecimento, quase em frente, que vendia artigos esportivos e cujo movimento crescente dia-a-dia era alvo de suas atenções.

Rondou pelas imediações, como se nada quisesse, paquerando o alvo à espera do momento oportuno, que se fez presente quando o derradeiro freguês deixou o estabelecimento e o gerente preparava-se para apagar as últimas lâmpadas,

Jerônimo da Silva enfiou, então, pela cabeça até o pescoço, o capuz ninja. Os óculos de motoqueiro deixavam-lhe uma fresta à altura dos olhos, que não tolhia a visão, sem permitir que fosse identificado.

Irreconhecível, sentiu-se seguro. Aproximou-se do homem que se preparava para sair. Encostou-lhe a arma nas costas: - Isto é um assalto. - e a frase chavão - Passe a grana!

Não houve reação alguma. O homem olhou-o atentamente, passando-lhe a féria do dia, sem qualquer protesto e sem escamotear. Parecia mais calmo que o assaltante.

Jerônimo saiu às pressas arrancando a máscara e enfiando-a de qualquer jeito no bolso traseiro da calça. Fácil demais! Não esperava tanto!

Penteou os cabelos com os dedos e acertou o passo pelo passo apressado dos passantes.

Em casa, emocionalmente exausto, nem trocou de roupa, atirou-se na cama... e sonhou que seus problemas estavam resolvidos! Se nem todos... alguns, pelo menos! O caminho estava aberto! Era só aperfeiçoar a técnica... e estaria feito!

A surpresa, por sua vez, viria na manhã seguinte, ao regressar, pontual, ao prédio, fazendo jus à profissão assumida.

A viatura da polícia chegara antes dele ao Paradiso! Sem qualquer explicação, foi encostado à parede. O pasmo não lhe permitiu reação. Metade do dinheiro roubado aquecia-lhe ainda o bolso traseiro, onde estavam também alguns cheques ao portador, prontos para serem descontados. Provas incontestáveis!

Perplexo, da Silva não podia entender como fora descoberto!

Na caixa do peito, batia um coração acelerado. Assim como... ainda preso ao botão do bolso da camisa, lá estava, também, desde a véspera, o crachá denunciador que esquecera de retirar, antes que aquela ousadia o transformasse em desastrado meliante.

Naquele indiscreto crachá, para quem quisesse ler, estava o nome do prédio, Paradiso, bordado à máquina, em azul, e, sob ele, a identificação insofismável: - Jerônimo da Silva - Zelador.
 
E o dono desse nome, por um golpe de azar e sem apelação, foi diretamente transferido do Paradiso para o inferno... sem sequer passar pelo purgatório!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). 
Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. 
Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

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