terça-feira, 24 de agosto de 2021

Rachel de Queiroz (Cabeça-Rosilha)

Esporte sertanejo que vai rareando são as brigas de touro. De primeiro, ainda me lembro, esperavam-se meses pelo encontro de dois campeões. Havia brigas — quando os touros eram de briga mesmo — que varavam dias seguidos. Na fazenda Junco havia um touro preto, por nome Carnaúba, que era capaz de lutar três noites com três dias e mais até, se lhe dessem tempo para beber. E podia mudar o adversário, ele é que não mudava, olho de fogo, a venta chamejante, a perna fina, a aspa aguda, preto como o Cão, valente como o anjo Gabriel. Depois de velho, talvez caduco, ficou tão feroz que não podia passar mulher nem menino por perto dele, à distância de menos de vinte braças. Por isso foi pego à força bruta, laçado ao mourão, reduzido a chamurro. Só assim o venceram, mas ainda rosnava. Acabou vendido a uns tangerinos.

No Junco também teve o touro Xuíte, que, como o nome está dizendo, era de raça taurina, o pescoço um tronco, mas as armas curtas, valente que era doido e de gênio ruim. Um dia atacou um trem que diminuía a marcha para entrar nas agulhas. O maquinista de começo riu, pensando que o touro velho ia se estrepar todo, ao se chocar com a máquina; e, para debochar mais, soltou um jato de vapor quente. O Xuíte aí se enfezou, meteu o chifre naqueles canos de cobre que correm pela barriga da locomotiva, arrancou tudo, como quem arranca serpentina num carro de carnaval. A máquina rodou mais um pouquinho, foi gemendo, estacando e parou mesmo, ali, em cima das agulhas. Então quem teve medo foi o maquinista, com a locomotiva enguiçada e o touro bravo em redor, cismado, furioso.

Na fazenda Califórnia, que era de minha avó, se conta muita história de touro. Tem, por exemplo, o caso da briga de dois tourinhos, um chamado Caçote e o outro com nome ainda mais besta — chamavam o touro de Banana. Mas nome não é documento, porque esses dois touros pegaram uma briga que começou no sangradouro do açude e continuou, hora atrás de hora; e quando se viu, os dois já estavam para as bandas do cemitério, a uns quinhentos metros além; justo ao pé da casa do Ferreiro Velho, que era vizinho mesmo do campo-santo.

O Ferreiro Velho já dormia, deitado numa rede atravessada na sala. Quando deu fé, a porta vinha abaixo num estrondo. Mal teve ele tempo de saltar no chão: era o touro Caçote que entrava de costas, lascou a rede no meio como se fosse papel, e o outro touro pegado com ele, e assim atravessaram a casa, quebrando pote, fogão e tudo. Foram bater no quintal, arrasaram o jirau dos coentros e só saíram dali, derrubando a cerca, a poder do ferrão dos homens.

Foi também na Califórnia que sucedeu outro caso de touro, e essa é uma história bonita. O touro Cabeça-Rosilha era dono do curral fazia anos quando, de repente, lhe apareceu um tourinho novo, vindo de fazenda vizinha, não se sabia qual. O nome dele também não era certo — Cachalote ou Chamalote, parece; só sei que era azeitão-escuro com o lombo branco, muito bonito e fogoso e com uma natureza tão danada que logo se botou ao velho Cabeça-Rosilha, como se fosse um veterano igual a ele.

Pegada a briga, depressa se viu que o Cabeça-Rosilha não era mais o que fora dantes. Senão, teria acabado com a vida do tal Cachalote, logo na primeira noite. Mas qual, amanheceu o dia e a briga ainda estava rendendo. As vacas saíram para o pasto, os dois ficaram brigando. Tinham quebrado a porteira e saído para o pátio, o chão já estava todo riscado de regos fundos só de eles cavarem a terra; e havia tanto mata-pasto acamado por onde eles pisavam que era aquele balseiro, como se por ali houvesse passado uma enchente.

A cabeça do Cachalote estava coberta de um beiju preto de sangue; e nas costas do Cabeça-Rosilha viam-se os lanhos que o outro lhe abrira no couro com as aspas finas.

De vez em quando eles paravam um pouco, como se escutassem o gongo, recuavam, tomavam fôlego; mas daí a um instante recomeçavam o gaiteado, cada um insultando o outro como podia. O urro do Cabeça-Rosilha era fundo, grave como um ronco de onça; o do Cachalote era mais franzino e mais rouco — que o canto do galo novo não se assemelha ao clarim do galo velho. E outra vez se encontravam e as armas se chocavam umas nas outras e até parecia que tiravam fogo.

O povo já tinha perdido a conta de quanto tempo durava a briga quando de repente os touros cruzaram as armas, entrançando os chifres. Não se viu como foi aquilo, só sei que se escutou um estalo, como um pau quebrado; e o Cabeça-Rosilha recuou, com um berro — estava com o chifre esquerdo arrancado. Arrancado mesmo, ficando só o sabugo.

O Cachalote ainda quis atacar, mas o touro velho pela primeira vez negou combate. Igual a um novilhote que apanha a sua primeira surra dum touro criado, recuou, recuou, bruscamente deu meia-volta, desceu ligeiro em procura do riacho do sangradouro e foi sumir na caatinga.

Isso aconteceu pelo começo do inverno, no mês de fevereiro. Todo o resto do tempo de chuva ninguém soube notícias do velho Cabeça-Rosilha, escondido na sua vergonha. Chegou o verão, as águas da caatinga secaram, mas em vão se esperou que ele viesse beber no açude, junto com o resto do gado. Os donos deram o touro velho por morto, decerto de alguma bicheira arruinada, no sabugo do chifre.

Os vaqueiros ficaram botando sentido para ver se levantavam urubus, contudo nenhum sinal apareceu.

Findou o verão, passaram Finados, as festas de Natal e Ano-bom. Começou a chover em janeiro. O Cachalote era agora o dono do curral. Não tinha quem se metesse com ele, acho que a história da derrota do Cabeça-Rosilha se espalhara entre os pretendentes.

Mas quando veio o começo do mês de fevereiro, um ano contado depois da grande briga, certa tarde estava já o gado recolhido ao curral, o Cachalote malhado no enxuto, remoendo, muito soberbo — escutou-se de repente, lá no alto do rio velho, um gaiteado conhecido.

Ninguém acreditava. Teve quem pensasse em assombração, visagem do touro morto. Mas que morto nem nada. Era mesmo o Cabeça-Rosilha que voltara vivo, depois do seu retiro de um ano. Fora se esconder na Serra Azul, bebia não se sabe onde, enquanto o sabugo encourava; e ele o ia afiando pacientemente nas cascas de pau, até o botar duro como ferro, mais duro que o próprio chifre.

O gaiteado foi crescendo, ficando perto. E então se viu o Cabeça-Rosilha se mostrar de corpo inteiro, bem no cabeço do alto. Reforçado, lustroso e com os chifres polidos que era ver duas espadas.

No curral, o Cachalote se levantou, como se não acreditasse. Afinal respondeu com o seu gaiteado novo, grosso, soprando e cavando. Ligeiro, parando só para dar os seus urros de desafio e raspar o chão com tanta força que a terra voava a duas braças de altura, o Cabeça-Rosilha se aproximava. Parece até que caprichava em voltar no mesmo chouto com que saíra — então corrido e sangrento, agora limpo e sedento de briga.

Cada um dos brutos de um lado da porteira, não esperaram que ninguém a abrisse. Meteram os ombros, voou pau para todo lado, e foi de novo dentro do curral que a briga começou.

Dessa vez, porém, não virou a noite até o outro dia. Ainda bem não havia escurecido direito, de repente se ouviu um urro de touro apanhado. Era o Cabeça-Rosilha que tinha levantado nas armas o Cachalote, como se levantasse um gato; ergueu nos ares aquelas quarenta arrobas de touro vivo e arremessou tudo por cima da cerca.

Foi aí que o Cachalote berrou como bezerro, levantou-se trôpego — e dessa vez foi ele que desceu o riacho, correndo, e sumiu no mato, dentro da noite escura.

Também, depois desse dia, nunca mais Cabeça-Rosilha o viu.

Fonte:
Rachel de Queiroz. A casa do Morro Branco: crônicas. 
RJ: J. Olympio. Publicado em 1999.

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