quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Carolina Ramos (O conto contado)

A ideia fermentava em seu cérebro há bastante tempo. Daria um conto. Na certa, um bom conto, caso soubesse aproveitá-la bem!

Sempre assim! As ideias tomam de assalto o autor, com bote felino a saltar sobre a presa!

Desta vez, a presa era aquele jovem iniciante que, ao abrir a janela numa certa manhã, não escapara do bote! A própria natureza servira de cúmplice.

Pelo retângulo da janela, os olhos daquele moço, vocacionado a escritor, passearam pelo céu azul esgarçado de nuvens alinhavadas pelos bicos finos das aves em pleno voo,

Mirou o jardim. Uma rosa entreaberta embalsamava a brisa. Fitou o beiral. Um casal de pombos arrulhava, enamorado. Estendeu mais o olhar - tudo verde à sua frente! Redundantemente verde a esplender em tufos, a perder-se de vista, a unir-se, lá longe, à carapinha viçosa do cafezal - verde rio a mergulhar no verde mar das esperanças!

Que esplêndida a vida de uma fazenda! Só alguém desprovido de visão poderia ficar indiferente àquela multiplicidade de encantos!

Fora justamente aí que a ideia saltara e se apossara dele, a fecundar-lhe a mente fértil e irrequieta de escritor iniciante!

Fechou a janela, sentindo-se plena e poeticamente "grávido" daquela ideia, que reputava genial!

Tudo lhe parecia mais belo porque se erguera do leito com a poesia dentro da alma, propenso a sorver a vida, em plenitude, através do vão daquela janela. Ah! Pudesse ser sempre assim!...

Logo mais, os compromissos o levariam de volta à cidade, às lides rotineiras, sem tempo disponível para a percepção das coisas realmente belas, submisso aos horários e ansiedades castradoras de sonhos e daquela capacidade maravilhosa de ver a beleza da vida palpitar em cada canto à sua volta. Que maravilha, caso possível olhar a vida através dos olhos de um poeta, de um pintor... de um artista, enfim! - Gente capaz de enxergar a beleza interior das coisas. Gente capaz de descobrir encantos não pressentidos pela maioria e que seus olhos viam em plenitude!

Como seria bom se a humanidade, tão fria em certas circunstâncias, e, às vezes tão impermeável ao belo, pudesse receber os olhos privilegiados dos seus poetas mortos!

Nada mais que um transplante perfeito! Um providencial transplante de córneas! Genial, se essas córneas trouxessem consigo a sensibilidade e a empolgação da alma daquele artista doador!

Gostou da ideia! Deixou-se embalar por ela, embora reconhecendo não passar de pura fantasia! Um sonho, apenas!

Mesmo assim... não a descartou!

Como a vida poderia ser mais bonita! A flor, mais flor! A luz, mais luz! O amor, mais amor...Coisas que os artistas veem em profundidade porque seus olhos têm alma! E essa alma lhes permite abraçar e sentir com maior amplitude, as minúcias e os encantos despercebidos pela maioria dos viventes, presos ao prosaísmo, sem tempo disponível para captar o belo!...

Com uma coisa concordava plenamente: - tinha ao seu dispor ótimo argumento para urdir novo conto! Não perdeu tempo.

"Gestação" iniciada no ato! O "parto", só questão de amadurecimento! Quem escreve sabe que é assim. Após a ideia fecundada, o "embrião" começa a desenvolver-se, gradativamente, até vir à luz em ação espontânea, depois de gestado com minucioso carinho.

Assim aprendera, ao iniciar-se na escrita, com ajuda de muitos mestres, alguns empilhados ainda à sua cabeceira, à mercê de folheios.

Em breve, aquele conto, totalmente estruturado em sua cabeça, contava a história de um homem frio, calculista, ligado à matéria até os ossos, e que, de repente, recebe, por implante, as córneas de um poeta recém-falecido.

A partir daquele instante, o mundo passa a ser, para aquele homem, um mundo completamente diferente de tudo o quanto vira até ali! Suas ações e reações tornam-se completamente diversas! Nasce um novo indivíduo - mais humano, mais espiritualizado, imune aos prosaicos chamados da matéria, alma sensível, romântica, escancarada às belezas da vida! De pleno acordo com a emotividade do doador!

Contudo, apesar do bom argumento, aquele conto, já praticamente aderido aos escaninhos da mente do autor, por lá foi ficando... em "gravidez" prolongada, à espera de um bom fecho, que o induzisse a vir à luz.

- Até que...

Na verdade... depois deste preâmbulo, é justamente agora que esta história começa:

- Até que... numa tarde reveladora, aquele jovem escritor, cansado de folhear revistas na sala de espera de um oculista, deixa-se, indiscretamente, envolver pela conversa de duas moças, tal como ele, candidatas a lentes de contato.

- Dizia uma: - Não vai ser fácil aceitar esse tipo de lentes, mas... só o fato de me livrar dos óculos, vale o sacrifício!

A outra concordara... sem deixar de sonhar: - O que eu queria mesmo é ter olhos de poeta para ver o mundo através de lentes naturais... lentes cor de rosa... Exatamente como num conto que eu li, num dia destes...

O jovem escritor ligou as antenas, vivamente interessado. A pergunta saltou sem freio, espontânea, levando à garupa sua ansiedade:

- Perdoem a intromissão, mas... posso saber que conto é esse? - Quem, o escreveu?!

A moça, sorriso largo e olhos sonhadores, titubeou reticente, quase a desculpar-se:

- Sinto muito... Sabe que eu não sei?! Li o conto e achei-o lindo, mas... francamente, não me lembro do nome do autor.

O moço perdeu o sossego. A impaciência e a ansiedade coladas a ele... não mais o abandonaram. Inconformado, ponderava:

- Se tivesse revelado a alguém o argumento daquele seu conto, vá lá! Poderia admitir até a possibilidade de um plágio, mas... tinha certeza - de que sequer dividira a ideia com o papel! Tudo estava em sua cabeça, arrumadinho e impecável- apenas à espera do fecho que sugerisse um título!

Nunca abrira a boca a respeito! —Nunca!...

- Nunca, mesmo?! A dúvida assaltou-o! Guardava leve lembrança de ter deixado escapar algum comentário em conversa com um amigo. Mas... o Túlio não seria capaz de uma coisa dessas! Gostava também de escrever mas, daí a lançar mão de obra alheia, o espaço era grande!... Será?!


Soprou para longe os maus pensamentos. De uma coisa estava certo: – A ideia era sua! Hesitou novamente: - Ou... seria óbvia e boa demais para ser apenas sua?!

Inconformado, tomou-se leitor voraz, insaciável devorador de antologias e coletâneas em busca do "autor fantasma" daquele "SEU" texto... idealizado e burilado com tanto carinho!

E... como "quem procura acha..." Afinal, também achou! O nome do autor deixou-o desolado - Afonso Schmidt!

A quase agressividade com que buscara descobrir quem plagiara o "seu" conto escorregou-lhe pelos pés. Logo às primeiras linhas, identificou o argumento citado pela moça no consultório do oculista!

Apesar da frustração, reagiu conformado, chegando até mesmo a abençoar aquelas palavras providenciais que o haviam livrado do risco de, sem a menor culpa, ser taxado de plagiador, caso a obra tivesse chegado a termo. Graças ao acaso, não caíra naquela armadilha que todo autor teme - o plágio, mesmo que involuntário e coincidente.

Conhecia o nome do autor, mas nunca havia lido qualquer obra sua!

Resignado, abortou a "ideia", enterrando o "feto", sem vestígios e sem registros, numa cova do subconsciente, como se ocultasse um crime – embora não concretizado e concebido sem premeditação.

No íntimo, penitenciou-se, bastante contrito, ante a lembrança daquela farpa envenenada direcionada ao amigo Túlio, num triste momento de desconfiança. Fraqueza da natureza humana, que sempre procura um culpado para atenuar as próprias faltas.

Guardou para si a dor da paternidade frustrada - Seu "conto" já fora contado por outro... e muito bem contado! Já tinha um pai... e que pai! Consolava-o saber que alguém bastante ilustre tivera a mesma ideia que ele. De certa forma, não deixava de ser um honroso consolo!

Fechou com estalo o livro de Schmidt. E foi justamente nesse instante que sentiu o bote de uma nova ideia apossar-se dele:

- Por que não fazer, dessa incrível coincidência, um novo conto?! – Ideia aprovada no ato, sem qualquer hesitação!

- Claro! E porque não?!!

Olhos fechados, entregue por inteiro à evolução do novo argumento, aquele jovem amigo das letras teve absoluta certeza de estar, de novo, literalmente "grávido"!

Sem mais preâmbulos, sentou-se ao computador e começou pelo título;

- "O Conto contado".

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica 
Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

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