domingo, 1 de agosto de 2021

Lourenço Diaféria (As aventuras de um ciclista urbano)

Sensível ao apelo do governo para economizar gasolina e, no íntimo, coagido pela insuficiência da verba para combustível (nesta altura do orçamento já plenamente comprometida), não lhe restou outro recurso senão adotar a bicicleta.

Chamou a mulher de lado, confidenciou: - Prepara minha sunga esportiva; amanhã vou trabalhar de selim e guidão.

Estava um pouco destreinado. Faltava-lhe o equilíbrio dos velhos tempos e, para evitar o fiasco diante dos vizinhos, saiu de casa às 5 da matina.

Cruzou com o leiteiro. Quis fingir que não viu, mas sem resultado:

- Força, doutor. No começo a gente padece mesmo. No fim é moleza.

Ficou em dúvida se pegava a Avenida Heitor Penteado ou se descia pela Água Branca. Lembrou-se da subida da Pompéia, não ia aguentar o repuxo. Melhor não arriscar.

Escolheu as ruas mais planas, no sexto quarteirão já bufava. Respirou fundo, enchendo os peitos. Desembocou a custo nas Perdizes em frente ao Elevado Costa e Silva - o tal de Minhocão. Mentalmente mediu o percurso, nem lhe passou pela ideia que é proibido o trânsito de ciclistas no elevado.

Quando deu fé, já estava nele. Atrás de si, a fila de carros. Por cautela, conservava a direita, mas a providência não lhe poupou o dissabor de algumas diatribes. Um sujeito barbudo,  dirigindo um fusca, chamou-o de molenga. Outro lhe mostrou a língua, em atitude altamente obscena. E até uma mulher se julgou no direito de desacatá-lo: - Folgado, hein, cara!

Por um momento sentiu a tentação de saltar lá de cima, com bicicleta e tudo, mas o senso do dever, o espírito cívico e o apelo governamental estimularam-no a prosseguir pedalando.

Na altura da Praça Marechal Deodoro encarou a estátua de Pereira Barreto, e a copa verde das árvores onde os pardais pareciam acompanhar seu esforço hercúleo. Pouco a pouco suas pernas amoleciam. Uma dor aguda percorria-Ihe  o cangote, descia até o tendão-de-aquiles, e ele teve a impressão de que ia fazer xixi.

Só quem passou por essa experiência sabe o que é isso. Lembrou-se dos filhos, da família, de seus antepassados. E súbito, ocorreu-lhe a ideia: pôs-se a assobiar o Hino Nacional.

Esse expediente trouxe-lhe algum conforto, mas os pedais - certamente mal lubrificados - opunham crescente resistência ao movimento de suas juntas.

- Vai, ciclista das arábias!

O berro ecoou no Minhocão como uma afronta. Era demais. Mesmo considerando sua fina educação, forçoso responder à altura:

- Das arábias é a mãe!

Aliviado, percebeu o desvio à direita. Tomou o rumo do Arouche, pegou a Vieira de Carvalho - onde há aquele índio de cócoras - e saiu triunfalmente na Praça da República.

Olhares intrigados fixavam-no. Crianças acenavam  os lenços. O semáforo estava vermelho; ele aproveitou para descansar o pé direito no asfalto e adivinhou que estava prestes a desmaiar. Iria cair ali mesmo, como um pedaço de chumbo. E não o arrancariam dali nem amarrado. Uma velhinha de preto chegou-se delicadamente, indagando onde ficavam os Correios e Telégrafos: queria pôr uma carta para Botucatu, urgente.

Ele tentou explicar, mas as palavras engrolavam como um bolo na garganta. Tentou cuspir, mas não havia saliva. Do nariz escorria lama grossa, dessas que os barbeiros usam para massagear o rosto dos fregueses e evitar rugas. Seu coração palpitava. Ardiam-lhe os pulmões. Suas nádegas estavam adormecidas.

A velhinha percebeu seus olhos vidrados, condoeu-se, ofereceu-lhe uma balinha de hortelã-pimenta.

Quando o semáforo abriu, ele tentou arrancar na bicicleta, mas o ar escureceu. Relâmpagos cruzavam o espaço, explodiram trovões em sua cabeça, ele rodopiou, caiu sentado perto do bueiro. Um rato saltou de banda, lépido.

Ninguém se aproximou, pensando tratar-se de um caso comum de morte natural. O guarda de trânsito trilou o apito, ordenando que se levantasse, estava atrapalhando o livre escoamento dos veículos. Ofegante, garganta áspera, sentia-se um perfeito miserável entregue às baratas. Só emergiu da névoa quando recebeu das mãos do homem-da-lei a notificação de multa por estacionamento em local proibido. Em vão procurou explicar que não tinha estacionado: tinha pifado.

Com a lei não se argumenta.

Montou novamente na bicicleta, trôpego, sonado, à deriva: desguiou pela direita, entrou na São Luís, bateu num ônibus, atropelou uma galinha, subiu na ilha, derrapou na calçada, trombou com um poste, rasgou a saia de uma garota, tirou uma fina no carro-tanque do corpo-de-bombeiros, atrapalhou uma ambulância, desacatou um guarda-rodoviário que estava largando o serviço, e entrou num bar da Praça João Mendes. Tudo sem desmontar da bicicleta.

Foi posto para fora a pescoções, caiu no buraco da estação do metrô da Praça Clóvis, um fiscal autuou-o por poluir a cidade com o suor que escorria pelas pernas - mas felizmente conseguiu chegar a seu destino na Rangel Pestana,  a tempo de assinar o ponto na repartição competente.

Como, porém, estivesse com a camisa rasgada, o paletó sem a manga direita, ligeiras escoriações por todo o corpo e de sunga, recebeu ordem superior para retirar-se, sob pena de abertura de inquérito administrativo de acordo com os estatutos em vigor.

Desagradável, sem dúvida. Mas um ciclista não se faz num dia. De qualquer forma, solicita aos cidadãos desta cidade que, se algum encontrar suas calças (que devem ter ficado no trajeto entre a Rua das Palmeiras e o Edifício da Fazenda), queira por obséquio entregá-las na Rua da Alegria.

Dependendo do estado das calças, estuda-se módica gratificação.

Fonte:
Lourenço Diaféria. Um Gato na Terra do Tamborim. 
SP: Símbolo, 1977.

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