terça-feira, 24 de agosto de 2021

Estante de Livros (O Garatuja, de José de Alencar)


Uma das obras-primas menos conhecidas de Alencar, a novela O Garatuja, escrita no esteio de grande polêmica entre a Igreja Católica e a Maçonaria, mostra como o país, no que dizia respeito a arenga entre o poder eclesiástico e o poder civil, não evoluíra em nada em duzentos anos de história. Saiu publicada junto com outras duas histórias breves, A Alma do Lázaro e O Ermitão da Glória.

Em 1848, com 19 anos, José de Alencar apresentava os primeiros sintomas de tuberculose. A doença obrigou-o a retornar da faculdade de Olinda para o Rio de Janeiro. Trazia na mala, o esboço de duas novelas escritas em Pernambuco, "mas que só seriam publicadas, com alguns retoques, cerca de 25 anos depois, enfeixados em um único volume, intitulado Alfarrábios. As duas histórias, [...] falavam de personagens atormentados pela solidão e apartados da vida em sociedade. [...] Se as duas histórias, com enredos tão bizarros, ainda revelavam certa dívida do aspirante a escritor em relação aos dramalhões lidos na infância, uma coisa também era evidente [...] revelam muito da personalidade de seu próprio criador."

O romance transcorre na “leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em meados do século XVIII (1659), quando a cidade sequer era capital, e tem por pano de fundo um conflito entre a Igreja (mais especificamente, o prelado Doutor Manuel de Sousa e Almada) e a administração colonial que resulta na excomunhão do ouvidor, gerando um grande alvoroço. O personagem central, Ivo do Val, é um enjeitado, “filho de criação” da “donzela recatada” Rosalina das Neves, que o teria “achado uma noite à porta da casa, onde morava então com sua família”, mas segundo as más línguas – das quais a mais ferina era da Pôncia, que gostava de “espreitar por detrás da rótula o que ia pela rua, para enredar os vizinhos e falar mal da vida alheia” – “fruto dos amores da donzela com um alferes”. Ivo recebe a alcunha de Garatuja devido à mania, como um precursor dos grafiteiros atuais, de “trocar as pernas pelas ruas de São Sebastião, e riscar toda a parede que lhe caía debaixo do carvão”.

Ivo torna-se aprendiz do pintor de casas Belmiro Crespo, onde “passava o melhor de seu tempo, a ajudar os vários misteres da pintura, no que se foi tornando perito”. Um belo dia, achando-se numa encruzilhada na área que hoje corresponde à Lapa, “apareceu-lhe em frente uma menina que vinha pelo caminho da Carioca [...] com os cabelos ao vento, e a saia rocegada por causa do orvalho”, chamada Marta. Ao vê-lo, Marta assusta-se (“ – Senhora mãe, um caipora!”). Ela é filha do tabelião Sebastião Ferreira Freire, dono de cartório. Atraído pela menina (“Tudo lhe servia de pretexto para [...] fincar-se horas e horas, como um mastro de Natal, em frente à porta do tabelião”), desenha um Cupido “brincalhão e gentil [...] em ação de brandir uma seta, cuja ponta embebia na luz de uma estrela radiante em céu azul, para cravar um coração caído por terra”.

Rosalina, cujo sonho era ver o filho "adotivo" admitido no cartório de Sebastião, confundindo o Cupido com o Menino Jesus, decide levar a imagem a Romana Mência, uma devota perdida por tudo quanto era santo e coisa de beatice, que era sogra do tabelião. Depois disso, Rosalina leva Ivo à casa da velha Romana, onde naquela noite rezava-se a novena. “Colocou-se o rapaz de modo que pudesse espiar o rostinho de Marta, oculto sob o capuz da mantilha.”

O rapaz acaba sendo admitido no cartório. Um dia, ao escrever um edital que começava por M., inicial de Marta, enfeitou a letra com tantos “emblemas de amor” – anjinhos, flores, colibris – que foi mandado embora do cartório. Mas continuava se encontrando furtivamente com Marta.

Uns minoritas (religiosos da Ordem de São Francisco) fâmulos do prelado Almada perturbam a vida da família do tabelião, e Ivo prega-lhes peças. O tabelião queixa-se ao Ouvidor Geral, que abre uma devassa. No dia em que o ouvidor partiria em viagem ao Espírito Santo, o prelado, em represália, excomunga-o em público com toda a solenidade do latim: te excommunicamus... O ouvidor leva o caso (“grave atentado cometido contra a majestade de El-Rei, nosso senhor, e sua autoridade que a todos nós fiéis súditos, cumpre defender”) ao Senado da Câmara.

Ivo organiza um motim de estudantes e em plena noite a população, desperta por um sino e atraída por um clarão ao Rossio do Carmo (atual Praça XV), depara, no alto do pelourinho, como uma alegoria ou caricatura que debochava do prelado e da fradaria, pintada por Ivo.

A população está revoltada com as arbitrariedades do prelado e, para apaziguá-la, um moleque e um caboclo acabam servindo de bodes expiatórios para as estripulias dos minoritas. O tabelião flagra Ivo surrupiando um beijo de Marta e leva o casal ao cartório para casá-los. A condição: que Ivo abandone a pintura.

"Desenha-se, portanto, em O Garatuja, a cidade colonial de São Sebastião, com figuras reais e inventadas, exibindo costumes, trajes, modismos de linguagem, amores, encontros e revolução. Nesta volta ao passado, em fatos e linguagem, a leitura torna-se a aventura de reconhecer o Rio de hoje no referenciado, do século XVII, procurando sacudir o 'mofo literário' e entender, sobretudo, a imagem da cidade e de seu povo.”

Um comentário:

elisa disse...

Amei todo o conteúdo
Parabéns amigo, bem escolhidos contostmb Quintana.
Boa noite bom fim semana;