segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Fernando Sabino (Sem tirar patente)

Estou convencido de que errei de profissão, ao escolher a literatura. O que eu sou mesmo é inventor. E um grande inventor. Com o auxílio de minha filha Mariana, que rima com bacana, inventei o telefone portátil, a televisão de bolso, o rádio de pulso e a bicicleta voadora. Só não inventei o pó de pirlimpimpim.

Antes que esta crônica entre em colapso, num delírio de paranoia, e eu me diga inventor da luz elétrica e Pai da Aviação (embora não negue que tenha parte na invenção do zepelim), deixa eu dizer que minha inventiva não voa a tais alturas, nem sustento ter-me chamado Edson, Marconi ou Santos Dumont, noutras encarnações.

Apenas lamento que invenções um pouco menos espetaculares, como as que citei, custem tanto a ser produzidas.

Outras já o foram, antecipando-se à patente que delas eu deveria ter tirado. Há anos, por exemplo, que amaldiçoo essa invenção diabólica usada para tirar cópia, chamada papel carbono: amarrota-se com facilidade, suja a ponta dos dedos e as demais folhas de papel em branco, resiste ao uso da borracha, acaba produzindo cópias manchadas ou ilegíveis. Não se falando na sua intolerável propensão a colocar-se invertida entre as folhas de papel, produzindo ao fim uma belíssima cópia, mas para ser lida ao espelho, nas costas do original. Sempre desejei que existisse um carbono resistente, com tinta indelével como a das próprias fitas de máquina.

Pois finalmente aqui está o carbono de plástico, que dá cópias iguais ao original, e que alguém chamado Burroughs patenteou antes de mim, sob o n.° 876.854.

Em compensação, e ainda nos domínios da máquina de escrever, continuo esperando que industrializem o dispositivo que inventei para corrigir no papel os erros datilográficos. Um espertinho quis se antecipar e me apareceu no mercado com uma tirinha de papel carbono branco, do tamanho de um band-aid (extraordinária invenção!), a ser inserida entre a fita e o papel, para apagar as letras erradas, batendo-as novamente.

O processo, em si, é correto, mas minha invenção é melhor. E aqui a ofereço gratuitamente ao primeiro aventureiro que quiser lançar mão dela, o tal Burroughs, por exemplo: a própria fita da máquina deveria ter uma faixa de tinta branca, sobre a qual reescreveríamos o que deve ser apagado.

Outras invenções me fazem ferver a cuca, e vivo encafifado pelo fato de não virem logo à luz do dia. As que me inspiram os objetos de dar corda, como os antigos fonógrafos, por exemplo: se existem relógios e brinquedos de corda, por que não podem existir, baseados em igual sistema, motores de verdade, até mesmo de automóvel?

Antes que acabe descobrindo o moto-contínuo, detenho-me diante daquele menino da anedota, que dizia aos pais ter descoberto numa loja de antiguidades uma vitrola maravilhosa, que funcionava sem corrente elétrica, sem pilha, sem nada.

E está certo o diabo do menino. Nada mais prático foi até hoje inventado, para resolver o problema infernal de um automóvel com bateria descarregada, que aquele ferro torto com o qual se punha antigamente o motor em funcionamento, e que se chamava manícula. Manícula! Com nome tão fabuloso, só podia ser mesmo uma grande invenção.

Outras grandes invenções, como a caneta esferográfica, o saca-rolhas de ar comprimido ou a sandália japonesa, enchem-me de inveja por não terem nascido antes de minha poderosa imaginação criadora. Tão poderosa, que já concebeu a simbiose do bidê e do vaso sanitário, com chuveirinho regulável, e descobriu que a serra de pão é o melhor instrumento para descascar abacaxi.

Não se falando no aperfeiçoamento introduzido numa das mais prodigiosas criações de nosso tempo, que reconheço não ter sido minha, e a cujo inventor rendo aqui minhas homenagens: o fecho eclair. Para ser perfeito, sem risco de enguiçar a todo momento ou, quando na roupa, beliscar a pele do freguês, não deveria ser de dentes de metal, mas de trilhos de plásticos fechados sob pressão. Quando vi pela primeira e única vez a moderna versão que inventei, no fecho de uma pasta que a Varig me deu, entre as lembranças que costuma oferecer aos seus passageiros em viagem internacional, maravilhado exclamei: o que é a Natureza! E vi reafirmada a minha crença no progresso da Humanidade.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

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