sábado, 12 de fevereiro de 2022

Adega de Versos 70: Antonio Manoel Abreu Sardenberg

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) - 45 -

Verão é uma palavra curtinha, pequena, que quer dizer "algo de bom". Surgiu do latim "veris", que significa bom tempo.

Assim, desde priscos anos as pessoas esperavam chegar o verão para respirar dias mais alegres, mais soltos, à vontade.

Manhãzinhas, abrimos a janela, esticamos os braços e abraçamos os trinta graus de um janeiro calorento. Alguns reclamam, mas certamente a maioria de nós gosta mais dos dias em que pode andar à vontade em termos de vestimenta e alimentos leves.

O verão é a estação da leveza. Acordamos leves, trabalhamos leves, comemos leves, dormimos leves, sonhamos levezinho, acordamos levemente.

Preguiça pesada.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Leandro Bertoldo Silva (Maternidade)

Maternidade era uma das palavras esquecidas no seu dicionário. Era fácil demais para algumas pessoas pensarem nisso, não para ela, de corpo perfeito e vida em liberdade. Por isso, seu ventre crescido estava na contramão de todos e recordava sua rejeição. Daquele invólucro perfeito, ficariam cicatrizes, marcas que sobreporiam ao efemeramente físico e atingiriam sonhos interrompidos.

Dejanira era mulher do mundo. Esse era o resguardo que nunca pensou em abandonar, nem sequer substituí-lo por um momento que fosse. Sentia-se sem vida, apesar da vida que crescia dentro de si. E, agora, mesmo sendo duas, teimava em sua solidão. O tempo passava, mas não levava a angústia que aumentava a cada dia que a circunscrição de seu estado apontava. Já dividia seu alimento, mesmo sem sua permissão, como seria dividir o resto? Era o que pensava desolada e inquieta. Só havia um jeito: acabar logo com aquilo. Porém, o feto crescido já era uma criança e, antes mesmo de pensar em qualquer outra coisa, de seu corpo redondo começou a emergir um líquido que, ao rebentar da bolsa, jorrou junto com uma sensação indefinível que a urgência do momento não permitiu reflexões. Elas só vieram quando, já com a criança liberta deitada em seu peito em meio aos médicos, começou a cantarolar uma cantiga de ninar no mesmo momento em que seus seios saciavam o filho que calava a ouvir.

Seus olhos recém-maternos se iluminaram, e o coração, que antes rejeitava, agora acalentava e se punha a descobrir uma desconhecida impressão felina e protetora.

A mulher do mundo sem fronteiras não sabia se o choro convulso que irrompia naquele instante era amor ou remorso, talvez fossem os dois. Aquele momento eternizado na música que embalava sua criança fazia pensar: afinal, é a mãe quem dá à luz um filho ou é o filho que faz nascer a mãe?

Fonte:
Leandro Bertoldo Silva. Entrelinhas contos mínimos. Disponível na Árvore das Letras. 9 maio 2021. Texto enviado pelo autor.

Nic Cardeal (Poemas Avulsos)

COMO DESENHAR O VENTO

Antes do vento
você deve sentar-se à beira
tomar gosto por coisas voantes
saber distinguir o barulho de asas ao longe
cuidar para não colocar os pés sobre as miudezas do reino
então olhar o horizonte devagar
bem devagar
de um modo tão específico
que seja possível traçar as inquietudes do sopro.

– Sim, todo vento é uma soma incalculável de sopros,
cada sopro
uma ondulação da vida feita de sopros,
quem sabe de algum deus
[mas não te enganes, não o teu Deus, nem o meu Deus!]

Depois do vento
você deve sentar-se à beira
tomar tento por movimentos de dentro
saber conhecer de nuvens
e divagar
bem devagar
de um modo sereno
como se fora a rotina das borboletas
levando consigo, em saltitantes caminhos,
a lembrança da lentidão das lagartas.

Ainda que o vento não chegue tão cedo
você deve sentar-se à beira
e ouvir o sopro
– o suave murmúrio de um deus
a dizer que viver
não passa de um mero intervalo
entre alguns dos teus melhores infinitos.

Só então terás desenhado o vento.
O sopro.
À beira do teu tempo.
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ENIGMA

Depois dos olhos
– espelhos ou janelas d'alma –
haverei de restar-me inteira
ainda que desfeita a casa da pele que se faz de minha efêmera morada?

Depois do corpo
em que limites do tempo estarei erguida?
Restará identidade, ego, persona?
Como sairei da existência, depois de finda a carne e caídos os ossos de volta à terra?

Depois desse palco
haverá continuidade do ato?
Quem escreverá novo script, roteiro?
Em que cenário atuarei o retorno aos planos das possibilidades dos mundos?
Saberei resgatar minha alma destituída do que em mim transformou-se em ausência?
Haverá presença, certeza, consciência?

Depois do silêncio
serei eu da mesma essência do vento, da água, do sopro,
da luz que, mesmo adormecida, prossegue iluminando a escuridão da semente depois de mim parida?
De que adianta a vida sussurrando rouca à procura de razão
se não aprendemos nada sobre as passagens estreitas que nos espreitam, inquietas,
como oráculos misteriosos, soletrando-nos segredos de outros mundos,
fazendo-nos quase enigmas de nós mesmos
à procura da melhor revelação?

– Será a imaterialidade o melhor lugar de se habitar?
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TÃO INÚTIL QUANTO AS DISTÂNCIAS

Estender os dedos para tocar os céus, sonhar que se está tocando os céus,
como uma oração sem planejamentos, sem palavras.

Tocar os céus com a alma, em súbito desejo de esperança,
como a criança que sonha um sonho intensamente vívido,
porque vívida é a saudade que se alonga entre os olhos de quem fica.

Não adianta dizer que isso também passa,
que tudo passa,
se você ainda não percebeu,
apenas nós somos os passantes
– Você sabe por que passamos?

Porque vivemos fora do tempo
– ou no passado,
escancarando baús de recordações cortantes,
ou no futuro,
angustiando pretensos subjuntivos inexperientes.

Os pássaros não se importam em passar pela vida,
apenas vivem cada dia
como se fora um único e constante voo em direção ao Maior.

As abelhas colhem o néctar para o mel e,
enquanto exercem seu ofício,
não se preocupam com o mel
– por que se afligir com o que ainda não existe?

As estrelas que cintilam no céu já partiram
– somente sua luz ainda está a nos tocar os olhos –
colhemos lembranças tardias de sua imensidão.

Os gafanhotos vivem cerca de míseros oito meses
e, por não o saberem,
nada os incomoda além do momento contido no instante.

– Por que te preocupas com a distância entre teus dedos e a esperança?
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Nic Cardeal (Eunice Maria Cardeal), catarinense radicada em Curitiba/PR, graduada em Direito, é autora dos livros “Sede de céu – poemas” (Editora Penalux, 2019) e “Costurando ventanias – uns contos e outras crônicas” (Editora Penalux, 2021). Publicou textos em 46 antologias e coletâneas, no Brasil, na Alemanha e em Portugal. Faz parte do movimento “Mulherio das Letras” desde a sua criação, em 2017. Seus escritos estão compilados na página do Facebook, “Escrevo porque sou rascunho”. Possui textos publicados em diversas revistas e blogs eletrônicos. Também publica, como autora e colaboradora, na revista eletrônica ‘Revista Feminina de Arte Contemporânea Ser MulherArte’.

Fonte:
Enviado por Isabel Furini.

Samuel da Costa (Pessoas são como flores)



- Lembre se Lili meu anjo, às vezes pessoas parecem flores! - diz Rosa Sousa Andrade sentada revirando seu jardim diante da imponente mansão dos Sousa Andrade.

- Como assim Dona Rosa? - respondeu um tanto assustada a jovem que estava atrás e, em pé da sexagenária, Lilibete que se aproximou bem devagar. E não compreendeu como a velha senhora, um pouco surda e quase cega, poderá notar sua presença.

- São bonitas, frágeis, breves e às vezes espinhosas meu anjo! Então filha, quando se forma? - pergunta a elegante senhora, em tom maternal, sem se levantar, pois ainda estava sentada a cuidar das plantas.

- Fim deste ano, pretendo acabar a faculdade. Ainda esse ano Dona Rosa! - diz a jovem incisiva e desafiadora.

Por mais que se esforçasse, Lilibete não poderia imaginar como a senhora requintada a sua frente um dia foi amiga de infância de sua avó. Elas brincavam neste mesmo jardim quando crianças. Os Caetanos há séculos servem os Sousa Andrade, tempos que remontam a escravidão negra.

E que de uma forma ou outra este laço se mantivesse. Lilibete olhava para Dona Rosa que por momento algum não se deu o trabalho de levantar ou mesmo olhar para ela enquanto conversavam. E não poderia deixar de pensar, na frase irônica proferida pela velha senhora: ‘’- Ás vezes pessoas parecem flores!’’
Logo Lilibete conclui o óbvio, aquela velha senhora conservadora como era, mas parecia ter parado no tempo: sim, as pessoas são frágeis, selvagens, imprevisíveis, doces, breves e também cheias de espinhos. Que nossa passagem por aqui é breve, um lampejo apenas, neste ponto as duas mulheres tão diferentes entre si concordavam. E Rosa de Sousa Andrade trajando seu macacão cor-de-rosa com seu tom de voz deixava bem claro para Lilibete: Aquela mulher a detestava.

- O que veio fazer aqui menina?

- O Gustavo está me esperando!

- Sabe que não gosto desse tipo de coisa na minha casa menina, e não gosto mesmo!

Aquele namoro entre o neto da poderosa Rosa de Sousa Andrade com Lilibete Caetano era mais que um ‘’caso amoroso’’ entre as duas famílias. Histórias recheadas de romances proibidos, filhos ilegítimos e amores velados, e pura hipocrisia de uma cidade provinciana e interiorana. Gerando um ciclo de amor e ódio que parecia não ter fim, entre as duas famílias. Coisas que remetem ao tempo em que pessoas vindas da África eram vendidas em mercados públicos. Ao se reconhecerem e mais tarde se conhecerem na faculdade de direito Gustavo e Lilibete começarem e terminarem o namoro por várias vezes. Dona Rosa sempre atenta no que acontece na família, tinha motivos para se preocupar. Não bastará ver o neto Gustavo se envolver e, mais tarde presidir o Centro Acadêmico de Direito, com suas greves e passeatas. Agora esse caso do neto com uma negra filha da empregada, e pior de tudo uma Caetano. Aquilo era demais para a velha e conservadora Rosa Sousa Andrade. Não bastará o escândalo ficar muito sepultado, mas ainda vivo na cabeça de algumas pessoas. O escândalo velado que Rosa e Adélia eram irmãs por parte de pai, tais coisas vez ou outra surgiam e ressurgiam.

Para Rosa aquilo mais parecia um pesadelo sem fim, uma maldição que pairava entre os Sousa Andrade que os unia aos Caetano. Uma união que ela jurava não atingir sua geração e gerações futuras, e mandar os filhos estudarem fora da cidade e até no estrangeiro, por exemplo, não foi o bastante.

- Nós vamos nos casar Dona Rosa! E não há nada que a senhora possa fazer a respeito!

Diz a Lilibete incisiva. Ambos não sabiam, mas ao se casaram mesmo anos depois, mais que uma união entre famílias aquilo fora um acerto de contas com o passado. E sim pessoas são como flores como disse Rosa Sousa Andrade: breves, delicadas e insistentes no dom de renovar à vida.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 21

 

Sammis Reachers (Flashes: Pequenos toques de humor Ácido)

O motorista era o Jaime Cigano.

A mulher entra no veículo e, sem nem cumprimentar o profissional, indaga:

- Motorista, de que lado do ônibus fica o sol?

- Do lado de fora, senhora. Tenha um bom dia.
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Motorista Cocoroca, linha 730 (Charitas x Castelo), O chofer já cansado, devido ao engarrafamento quilométrico no centro do Rio. Tudo parado, em todas as direções: Minutos se passam e o veículo só consegue andar dez metros. Ele imobilizado na fila do meio, corre uma transeunte e bate com toda força na porta. Cocoroca, mesmo fora de ponto e sob o risco de tomar uma multa, abre. A mulher coloca um pé na escada e dispara:

- Oi, o trânsito está engarrafado?

Cocoroca não aguenta:

- Se ele estivesse dentro de uma garrafa... Mas me parece que congestionado ele está. Não lhe parece?
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O mesmo Cocoroca, a mesma linha. Uma chuva torrencial desabando, nosso amigo na última viagem para em frente à  Central do Brasil, para o embarque de passageiros. Ao abrir a porta, escuta esta:

- Quanto custa esse ônibus?

- Não sei... Isso só o dono da empresa pode lhe informar, pois foi ele quem comprou.
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Motorista Fernando e cobrador Silvio, carro cheio, ponto cheio, de repente uma mulher empaca na porta e pergunta, já berrando:

- Ô motorista, esse ônibus é o 49?

- É sim.

- E você vai direto nessa rua aqui? - disse ela, apontando para a frente, por sinal a única rua que havia.

- Não senhora, direto não. Eu vou parando.
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Motorista Hélio "Lindão":

- Seu motorista, esse ônibus pode levar meu cachorrinho?

- Aí do lado tá escrito "carrocinha"?
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Mesmo Hélio:

- Passa no shopping?

- Passa sim.

- Mas passa na porta?

- Eu nunca tentei, mas se tirar as escadas eu tento.

- Cavalo!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários. São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Rita Mourão (Poemas Escolhidos) = 5 =

DESCOMPASSO


Enquanto o tempo vagueia,
reinvento palavras que me abasteçam.
Trago em minha bagagem a solidão dos barcos vazios,
o marulhar do silêncio que só sabe dialogar com minha alma.
Viver é uma travessia arriscada, me aproximo de uma terceira margem,
Ela existe, ou é apenas uma simbologia?
Indago por mim. Só o ontem responde.
O tempo e eu, nunca estamos afinados.
Fui me perdendo quando me vi à deriva.
A vida me fez barco, o tempo tirou-me os remos.
E à revelia dos meus quereres, eu, esvaziada de mim,
adentro a densa neblina da terceira margem..
" Eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro".
Eu sem adornos de adjetivos.
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EPIFANIA


Tenho mais afinidade com o silêncio,
ele me fala de eternidade e a eternidade me atrai.
É entre vírgulas, interrogações e reticências
que aposso da epifania do meu existir,
milagre de uma nova anunciação.
O silêncio e eu sempre estamos alinhados.
As respostas que procuro
se encontram nas dobras da solidão
e a solidão só entende a linguagem do silêncio.
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INCÓGNITA

Toco-me e não me sinto.
O tempo me fez estranha de mim.
Perdi-me quando rasguei meus sonhos
e me fiz solidão.

Metade de mim é saudade,
a outra metade incógnita.
Será que um dia me encontrarei
pelos labirintos da vida?
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OUSANDO

Tenho os meus desertos íntimos,
recantos de miragens, reflexos de securas.
Enquanto o mundo se abastece de complexidades
eu me abasteço de ousadia.
Haverá sempre um verbo que me impulsiona,
não me satisfaço com tempos passivos,
quero a regência dos vocábulos fortes,
quero a profundidade de todas as auroras.
Descubro-me soletrando a palavra esperança
e me vejo às margens de um recomeço
porque viver é reaver distâncias
e poetar é um jeito de manipular lonjuras.
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RESGATE

Abre-te palavra, derrama sobre mim
a seiva que te faz viva.
Faça nascer sobre meu corpo o legado de outras vozes
que souberam reinventar o amor.
Quero-te plena,
alongando os substantivos que me circundam,
resgatando as palavras de amor que aos anos se subjugaram,.
Quero-te sobre a haste de um renovo completo,
sem que haja procuras recriadas.
Quero-te assim, densa, profunda, amante,
varando os desertos de um tempo de securas.
Quero-te, renascida, pronta para resgatar princípios.

Fonte:
Rita Mourão. Maria, Marias. Ribeirão Preto/SP: Ed. da autora, 2021.
Livro enviado pela poetisa

Cecy Barbosa Campos (Os serões)

Larissa não era exatamente bonita, mas possuía uma beleza que transcendia. Ela ainda acreditava no ser humano e sempre conseguia enxergar em seu semelhante alguma qualidade.

Sua vida não era nada fácil. Morava num quartinho pequeno com banheiro. Era anexo à casa principal, onde uma sua amiga trabalhava. Como não dormia no emprego, conseguiu que seus patrões alugassem os dois cômodos, por um preço módico, para Larissa.

Todas as manhãs, Larissa tomava o ônibus bem cedo, rumo à fábrica de tecidos onde trabalhava. O percurso era longo, os engarrafamentos constantes, e ainda poderiam surgir outros problemas no trânsito, principalmente se chovesse. A moça, que era muito disciplinada e temia chegar atrasada, saía com bastante antecedência e, durante o trajeto, tinha tempo suficiente para sonhar.

Sonhava com o dia em que conheceria um homem respeitoso e gentil, que cuidaria dela e a protegeria. Sonhava com o seu futuro, a cuidar dos filhos, da casa e do marido.

Acreditou que seu sonho estava prestes a se realizar, no dia em que conheceu Jurandir. Trabalhador e atencioso, não podia se encontrar com ela todas as noites após o trabalho, porque tinha que enfrentar longos serões na firma, o que lhe valia como horas extras. Também, nos finais de semana, fazia "bicos" como vigia de residências quando os proprietários viajavam.

Larissa, embora entristecida, achava lindo ver o homem que amava e que acreditava ser um marido em potencial, lutando por um futuro melhor. Quando não podiam se encontrar, Jurandir passava pela fábrica, à tardinha, ao final do expediente, para levar a namorada até o ponto de ônibus, passando antes numa lanchonete e fazendo que Larissa tomasse uma vitamina de frutas e abandonasse o refrigerante, sempre solícito em relação á saúde da amada.

Criada no interior, dentro de rígidos preceitos religiosos, Larissa tinha um comportamento bastante diferente do que era habitual na cidade grande. Preocupava-se com a virgindade antes do casamento, não gostava de exageros nas roupas e na maquiagem e primava pela discrição de suas atitudes. Jurandir mostrava-se encantado e sempre elogiava sua observância aos princípios em que fora criada.

Como quase não saía de casa por causa das ausências de Jurandir, este incentivava-a, carinhosamente, a passear no shopping ou visitar algum parente para se distrair. Foi assim que num sábado, Larissa decidiu-se a participar de um churrasco em comemoração ao aniversário de uma colega da fábrica.

Chegando ao subúrbio, desceu do ônibus e verificou as instruções que tinha anotado sobre o caminho a seguir. Não era longe, mas tinha que prestar atenção ao intrincado das ruas, pois não conhecia a região. De repente, procurando a placa para verificar se estava na direção certa, distraiu-se e esbarrou num menino que de mãos dadas com o pai, seguia à sua frente. A mãe, em adiantado estado de gravidez, de braços dados com o marido, levava pela mão a filha menor, uma menina com rosto de boneca emoldurado por cachinhos dourados.

Assustaram-se todos, virando-se instantaneamente para aquela estabanada que quase derrubara o garoto vestido com a camisa do Flamengo. Quando os olhos de Larissa encontraram-se com os atônitos olhos de Jurandir, ela deu um grito de horror e pôs-se a correr, desvairada.

Sem nem pensar no churrasco, voltou para o ponto de ônibus e prorrompeu num pranto convulsivo que confundiu, penalizou ou irritou a todos os passageiros.

Chegando ao seu humilde quartinho, lançou-se à cama sem interromper o choro incessante que a deixava quase sem ar.

As horas se passavam. Não sabia quantas. Quando começou a escurecer, bateram à porta. Sem pensar nada, levantou-se da cama e semi-torporizada foi abri-la. Jurandir entra, toma-a nos braços e seca suas lágrimas com beijos apaixonados. Dá uma série de explicações confusas e não convincentes. Porém, estava ali, abraçado a Larissa, que não tinha forças para rejeitá-lo.

Criou-se uma cumplicidade estranha entre as duas mulheres de Jurandir. O tempo livre do homem, que era muito pouco, tinha que ser cuidadosamente dividido entre as duas, pois agora, os serões se tinham tornado extremamente necessários, para que ele pudesse manter as duas famílias.

Larissa teve um casal de gêmeos e, logo depois, engravidou novamente. Não poderia perder na competição e dar a Jurandir três filhos era uma questão essencial.

Os conhecidos de Jurandir estranhavam aquela situação insólita e se perguntavam qual seria o charme daquele homem para conseguir controlar as duas mulheres que, pacificamente, aceitavam fazer a divisão democrática do marido.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 30: Barreto Coutinho

 

Dorothy Jansson Moretti (Aquela Velha Ponte da Barreira)

Eu estava lá e vi o primeiro trem a cruzar a ponte de madeira sobre o Rio Itararé.

Foi emocionante. A locomotiva tipo Maria-Fumaça veio se aproximando, as longas baforadas largando uma extensa espiral branca contra o céu.

O clima era de intensa expectativa; comprovava-se a resistência de uma ponte ferroviária de madeira, sobre o abismo tenebroso e legendário que é o Rio Itararé naquela sua extensão subterrânea, com suas múltiplas gargantas e grutas impressionantes, tão terríveis quanto belas.

O trem entrou devagarinho na ponte, as vigas potentes estalando ao peso do monstro de ferro. Ele foi avançando lentamente e ganhou a outra extremidade. Que emoção!

Foi uma festa aquela estreia. Havia muita gente. Minha mãe e meu pai (com sua inseparável câmera) estavam com Seu Paulo Ferreira, Dona Lucila e os filhos do casal.

Num lugar perigoso como é a Barreira, todo mundo sabe, era mais que natural a extrema vigilância que os mais velhos exerciam sobre nós, os pequenos. Mas Aimée e eu eramos duas garotinhas endiabradas. Não sei de que maneira conseguimos ludibriá-los e ali estávamos agora, bem longe das vistas de nossos pais e irmãos mais velhos, aprontando uma, que hoje me dá arrepios só de lembrar...

Paralela à grade, havia uma pequenina ponte de tábuas unidas, sem grades, que servia aos trabalhadores para o transporte de material mais leve, de um lado para o outro. Era estreita e precária, oferecendo apenas a segurança indispensável a homens adultos, afeitos como aqueles, aos perigos de uma tal construção.

Não lembro de quem partiu a genial ideia (nem fujo à responsabilidade), mas de repente eu e Aimée estávamos atravessando a tal pinguela! E às carreiras, saltando como dois cabritinhos. Num zás estavamos do outro lado, passando sobre a pavorosa garganta lá embaixo, aos gritinhos e pinotes, como se estivessemos pulando amarelinha nas calçadas de nossas casas.

E não contentes, revezavamo-nos, ficando ela numa das margens e eu na outra. A um grito de "Já!", partíamos em disparada e nos encontravamos no meio da pontezinha, saudando-nos às gargalhadas e correndo em direção à margem oposta. Uma farra!

Mas não chegamos a repetir muitas vezes a façanha. No melhor da festa fomos descobertas por nossos pais apavorados, que nos arrancaram dali e se não nos deram umas boas palmadas, foi única e exclusivamente devido ao pânico em que se encontravam, capazes somente de dar graças por terem chegado a tempo de evitar uma tragédia horrorosa...

Revejo as fotos que meu pai bateu nesse dia. Numa, o trem chegando à ponte; noutra, atravessando-a naquele instante memorável que presenciei na inocência travessa de minha infância,

Em várias fotos, ao lado da arrojada construção, aparece a pequena ponte, nosso descontraído brinquedo daquele dia inesquecível.

Hoje, nem amarrada a um cabo de aço me fariam atravessá-la. Mas houve um tempo em que eu era mais valente...

(Tribuna de Itararé - 05/09/84)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXVIII

SERIA POUCO...


MOTE:
A vida jamais se encerra...
E é bom sermos imortais,
amar você só na terra,
seria pouco demais!
A.A. de Assis
(Maringá/`PR)


GLOSA:
A vida jamais se encerra...

em torrentes de emoção,
é luta, é uma eterna guerra
nos campos do coração!

Precisamos ser felizes,
e é bom sermos imortais.
Não tenhamos cicatrizes
para, lembrá-las, jamais!

Sei que o destino não erra
ao ceder seu tempo, enfim:
amar você só na terra,
seria pouco pra mim!

Para esse amor tão bonito,
com seus suspiros, seus ais,
até mesmo o infinito
seria pouco demais!
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GEMIDOS...

MOTE:
A lua no céu desmaia
com os gritos ofegantes,
vindos à noite, da praia,
nos gemidos dos amantes!

Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

GLOSA:
A lua no céu desmaia

prateada, bela, em torpor,
quando fica de tocaia,
quase em êxtase de amor!

Ela vibra de emoção
com os gritos ofegantes,
que partem do coração
e se tornam ofuscantes!

E um doce beijo, ela ensaia,
escutando esses gemidos,
vindos à noite, da praia,
lá do universo, perdidos!

A Lua, realizada
nesses infindos instantes,
escuta vozes de fada
nos gemidos dos amantes!
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BERÇO DE TERNURA

MOTE:
Adormeceste em meus braços...
E eu pude ter a ventura
de ninar os teus cansaços
no meu berço de ternura…
Carolina Ramos
(Santos/SP)

GLOSA:
Adormeceste em meus braços,
aninhado nos meus seios,
rodeado por meus abraços,
respondendo aos meus anseios!

Vivi esse doce instante
e eu pude ter a ventura
de sentir quão excitante
é essa afeição tão pura!

Unindo, assim, nossos laços,
eu tive a felicidade
de ninar os teus cansaços
fantasiando a realidade!

Como perfume de flores,
que eu te embalei com doçura,
numa balada de amores,
no meu berço de ternura...
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BARCA DE NUVENS...

MOTE:
Em barca de nuvens sigo...
e o que vou pagando ao vento
para levar-te comigo
é suspiro e pensamento.
Cecília Meireles
Rio de Janeiro RJ, 1901-1964

GLOSA:

Em barca de nuvens sigo
num mundo de fantasia.
Não corro nenhum perigo,
pois me acompanha a alegria!

Pago um preço, um quase nada...
e o que vou pagando ao vento
são ilusões de uma fada,
que eterniza o meu momento!

Eu conquisto o vento amigo
com muito amor e carinho,
para levar-te comigo
para sempre em meu caminho!

Sinto vibrar a ternura
em meu coração sedento
e a canção, que surge, pura,
é suspiro e pensamento.
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MENSAGEM

MOTE:
Dá, a vida, teus sorrisos
e, das lágrimas, te afasta!
Para atingir paraísos,
essa mensagem te basta!
Delcy Canalles
(Porto Alegre/RS)

GLOSA:

Dá, a vida, teus sorrisos
agradece a cada dia,
sorrir, não trará prejuízos,
somente paz e alegria!

Cultiva a felicidade
e, das lágrimas, te afasta!
pois a tristeza, é verdade,
à tristeza, nos arrasta!

São conselhos bem precisos,
de uma musa da poesia,
para atingir paraísos,
nossa estrada é a utopia!

Segue, assim, por onde fores,
numa atitude entusiasta
para encontrar mil amores
essa mensagem te basta!
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O ORVALHO...

MOTE:
Pleno outono...e em meu atalho,
sem um amor que me acolha,
invejo a sorte do orvalho
que se abriga em qualquer folha.
Edmar Japiassú Maia

Nova Friburgo/RJ

GLOSA:

Pleno outono...e em meu atalho,
tentando me reencontrar,
da persistência me valho
e sigo a me procurar!

Sigo só, com a alma em pranto,
sem um amor que me acolha,
buscando ouvir o acalanto
que minhas mágoas recolha!

Com meu cabelo grisalho,
prateado como o luar,
invejo a sorte do orvalho
que faz da flor o seu lar!

Sendo gotas de carinho
e tendo a sorte da escolha,
louvo o orvalho em seu caminho,
que se abriga em qualquer folha.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2005.

Rachel de Queiroz (Bogun)

Sim, o gato se chama Bogun, depois eu explico por quê. Não há como um nome inspirador para estimular a criatura, e aquele nos parecia adequado. Gato cinzento, cor de nuvem escura, olhos elétricos, pelagem de seda, de raça persa azul, tão boa e tão antiga quanto a raça dum mandarim — e, tal como mandarim, nascera ele com estrela de ouro por cima do berço.

A princípio, como pesava apenas quatrocentos gramas (e trezentos deveriam ser apenas o pelo), não se lhe podia exigir muito. Afinal era apenas um baby, um filhote desmamado antes do tempo e que um pires de leite morno deixava bêbado. Mas como já era insolente, audacioso, cônscio de si! Que vida poderia caber dentro daquele novelo de quatrocentos gramas de seda gris? Talvez fosse pouca, mas pouca embora, era como uma faísca elétrica, que é só um risco fino de luz e mata um homem. Assim o gatinho: tão débil que um sopro forte o derrubaria — mas trazia dentro de si aquela centelha de independência e individualidade, aquela consciência de si, isolando-o, identificando-o entre todos os seres do mundo – gatos e elefantes, peixes e panteras, Um aperto com dois dedos o mataria; mas enquanto o não matasse, ele era só isso, o gatinho Bogun, capaz de enfrentar o mundo inteiro, destemeroso de bichos e de homens e de quaisquer outros inimigos; capaz de bocejar displicentemente na cara de um estranho, de estender a unha afiada para o nariz do cachorrão que o farejava intrigado; e depois que o cachorro recuava, Bogun fechava os olhos, displicente, como se dissesse: "Ora, é apenas um cão..."

Nunca miou. Solta às vezes um gemido áspero, quando tem fome ou tem raiva. Se tem medo, bufa. Porém miar, jamais.

Por tudo isso ganhou o nome de Bogun. Bogun se chamava o mais valente de todos os cossacos, moço-herói de um romance de cavalaria que nós dois aqui em casa adoravamos, na nossa adolescência, Bogun, bravo como um lobo, belo como um dia de sol, orgulhoso como Satanás. Olhamos os olhos amarelos do gato — iguais aos olhos do cossaco, que eram como dois topázios (assim dizia o livro) — e achamos que ficava bem.

Hoje, Bogun cresceu. Belo, não se nega, mais belo até do que prometia quando filhote. Mas o caráter — onde? Nada da inteireza, da valentia simples, da falta de complexidade do herói. Bogun é complicado e dúbio, tortuoso e imprevisto. Sibarita e displicente. Por exemplo — de pequenino, parecia ter alma de caçador. Era capaz de perseguir durante horas uma formiga ou um besourinho. Hoje ainda caça, sim; mas só se interessa por cigarras e mariposas. Um dia, por acaso, um rato de campo lhe atravessou o caminho; ele se afastou com dignidade e nojo e, durante dias, evitou aquele trecho do quintal cruzado por tal vermina. Às vezes acompanha de longe o voo dum passarinho — mas é como um devaneio, sem desejo e sem impulso. Creio que jamais conheceu na boca o sabor do sangue vivo de um bicho, abatido pela sua garra; suponho até que sentiria asco. Ele só gosta de filé mal passado, de risoto, de peixe magro —  sem molho. Leite, só tépido. E gosta de banho, sim, adora banhos! Num gato não é uma espécie de degenerescência? Fica de olhos entrecerrados, ronronando sentado na bacia, enquanto o ensaboam. Depois consente deliciado que o enxuguem na toalha felpuda, que o escovem, que o ponham ao sol, a secar. Por fim, fofo, macio, perfumado, quente do sol, quase tirando faísca no pelo cor de aço, vem se exibir orgulhosamente na sala, arqueia o dorso, ergue a cauda frocada — para que todos vejam quanto ele é lindo e rico, e gozador, e precioso, e inimitável.

Quando afinal satisfaz a vaidade, escolhe a cadeira de palhinha (detesta almofadas, acha-as ou quentes ou vulgares) bem fina, bem fresca, boceja, encrespando a língua rósea e áspera, espreguiça-se, estira elasticamente a garra afiada, repousa a cabeça entre as patas dianteiras e dorme.

E enquanto dorme, sem um cuidado, tem a certeza de que o bando de servos, de inferiores, que somos todos nós, lhe velam o sono.

Fonte:
Rachel de Queiroz. Pedra encantada e outras histórias. RJ: José Olympio, 2011.

Lucy Hay (Dicas de Escrita) Como escrever o esboço de um Enredo = Parte III, final


Dividindo textos que já existem em uma estrutura de enredo básica

1. Divida o enredo em três atos.

Caso tenha que dividir um texto que já existe em uma estrutura de enredo básica, comece separando a história em três atos. Quase todo livro se encaixa nesse modelo, seja qual for o gênero.

Abra um documento do Word ou pegue uma folha de papel e divida-a em três seções: Primeiro ato, Segundo ato e Terceiro ato.

Geralmente, esse tipo de estrutura tem duas páginas, dependendo do tamanho do livro. Seja conciso e concentre-se nos pontos-chave do enredo.

2. Resuma a cena de introdução incitante e o incidente.

Comece a seção Primeiro ato com a introdução do livro, lembrando que essa é a cena que apresenta os personagens e a ambientação. O protagonista também aparece nela. Seja breve, escrevendo de 100 a 150 palavras. Inclua os detalhes mais cruciais, como nomes de personagens, descrições físicas e de personalidade e onde tudo acontece.

O início da estrutura do Primeiro ato deve também incluir o incidente incitante, que lança o personagem na jornada ou missão. Esse incidente também pode levar ao conflito central do livro.

Por exemplo: em O Sol é para Todos, da escritora norteamericana Harper Lee, o incidente incitante acontece quando o advogado Atticus resolve defender um homem negro chamado Tom Robinson, que foi acusado injustamente de estuprar uma mulher branca.

3. Descreva o problema ou conflito central.

A última seção do Primeiro ato deve trazer o problema ou conflito central da história, ou seja, o principal obstáculo que o protagonista precisa enfrentar. É nesse ponto que a situação fica tensa e o personagem é obrigado a tomar uma decisão ou agir de determinada forma. No geral, o incidente incitante contribui com esse problema ou conflito.

Por exemplo: em O Sol é para Todos, o conflito central é consequência do incidente incitante, quando a decisão de Atticus de defender Tom Robinson deixa seus filhos Jem e Scout vulneráveis a agressões de outras crianças e por membros da comunidade.

4. Resuma o desastre central ou clímax.

O Segundo ato leva ao desastre principal ou ao clímax da história. Esse trecho acontece na altura de ¾ ou 75% do enredo, mas pode ser antecedido por vários incidentes menores e que caracterizam a ação em ascensão.

Por exemplo: em O Sol é para Todos, a ação em ascensão acontece quando o julgamento de Tom Robinson tem início e se prolonga por uma série de capítulos. Apesar de ele ser absolvido das acusações, o pai da mulher branca, Bob Ewell, ainda planeja se vingar de Atticus. Sendo assim, o clímax ocorre quando Ewell tenta atacar Jem e Scout. Felizmente, Boo Radley salva as crianças da ira do homem.

5. Descreva a resolução ou conclusão.


O Terceiro ato traz a resolução do enredo e indica o fim da jornada do protagonista. Muitas vezes, o personagem principal termina essa trajetória com uma visão diferente ou uma nova compreensão do mundo à sua volta.

Por exemplo: em O Sol é para Todos, a protagonista, Scout, entende que julgou errado as motivações de Boo Radley e começa a simpatizar com o personagem. Ela também passa a exercer o conselho de seu pai, Atticus, de demonstrar simpatia e compreensão pelos outros, em vez de destilar ódio e preconceito.

Fonte:
Traduzido de https://www.wikihow.com/Write-an-Outline-for-a-Story

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Varal de Trovas n. 547

 

Luís Fernando Veríssimo (A Russa do Maneco)

Todos ficaram muito intrigados quando o Maneco, logo o Maneco, apareceu com uma russa. Em pouco tempo “a russa do Maneco” se tornou o assunto principal da turma. Todas as conversas, cedo ou tarde, acabavam na frase “E a russa do Maneco?” e daí em diante não se falava em outra coisa. E, claro, quando o Maneco e a russa estavam com a turma, a russa era o centro de todas as atenções. Os homens de boca aberta, as mulheres tentando ser simpáticas mas odiando a russa.

Porque a russa do Maneco era linda como só as russas conseguem ser. Olhos claros e puxados, maçãs do rosto altas, um lábio inferior cheio e um pouco mais saliente do que o de cima, pele branca como as estepes, cabelos loiros como os trigais da Georgia, ou onde quer que nasça muito trigo por lá. E o corpo, o corpo…

– Bailarina ? sentenciou uma das mulheres, como se acusasse a russa de competição desleal.

Bailarina, sim, mas bailarina de um tipo especial: com anca e peito. Pernas longas. Mais alta do que o Maneco. Quando o Maneco a abraçava ela beijava o topo da sua cabeça. (Os homens suspiravam, as mulheres se revoltavam.) E a russa só sabia uma palavra em português, além de “bom dia” e “obrigado”:

– Manequinho.

Muitos da turma não conseguiam dormir, pensando no Maneco com a loira na cama, e no “Manequinho” dito com aquele sotaque russo, por aqueles lábios russos. Logo o Maneco!

O Maneco não explicava onde e como encontrara a sua russa. Só dizia, misteriosamente:

– A coisa mais fácil de conseguir, hoje, na Rússia, é plutônio e mulher.

Dando a entender que, além de uma mulher espetacular, também estaria envolvido com o tráfico clandestino de material radioativo. As duas principais sobras da derrocada do império soviético. O que deixava a turma ainda mais intrigada.

– Vem cá: o Maneco não é funcionário público?

Era. E, que se soubesse, nunca saíra do Brasil. Mas as pessoas, afinal, podem ter suas vidas secretas. E numa das suas vidas secretas, o Maneco encontrara a sua russa. Talvez negociando plutônio enriquecido para revender a algum grupo terrorista internacional. Depois de verem a russa beijando o topo da sua cabeça, ninguém duvidava de mais nada a respeito do Maneco. Se ouvissem dizer que o Maneco estava sendo caçado pela Interpol, ou que seria o novo marido da Nicole Kidman, ou as duas coisas, não duvidariam.

E especulações sobre que outras coisas o Maneco era e fazia que ninguém sabia passaram a dominar a conversa do grupo ? sempre que o assunto não era a russa.

E um dia o Maneco apareceu sem a russa. Arrá, pensaram todos. A russa finalmente se deu conta de quem o Maneco realmente é.

Qualquer que fosse a mentira que o Maneco usara para conquistá-la, estava desmascarada. A russa deixara o Maneco, as coisas voltavam aos seus lugares.

O mundo voltava à normalidade. Estava restabelecida a lógica, segundo a qual uma russa daquelas não podia ser de um Maneco daqueles. Que fim levara a russa?

– Olha ? disse o Maneco ? russa não é fácil, viu?  – Repetiu: – Russa não é fácil!

E contou que as russas eram possessivas, e ciumentas, e atrasadas, pois não admitiam que um homem podia ter duas ou três namoradas ao mesmo tempo e…

Naquele momento gritaram do bar que havia um telefonema, uma mulher chorosa querendo falar com o “Manequinho”, e o Maneco começou a fazer sinais frenéticos e a dizer: “Diz que eu não estou, diz que eu não estou.”

Sensação na turma. O Maneco é que deixara a russa! E se com a russa o Maneco já era o assunto preferido da turma, sem a russa passou a ídolo.

Fonte:
Luís Fernando Veríssimo. Amor Veríssimo. Publicado em 2014.

Hinos do Brasil (Estados: Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul)

Hino do Estado do Rio Grande do Norte

Letra por Dr. José Augusto Meira Dantas
Melodia por José Domingos Brandão


Rio Grande do Norte esplendente
Indomado guerreiro e gentil,
Nem tua alma domina o insolente,
Nem o alarde o teu peito viril!

Na vanguarda , na fúria da guerra
Já domaste o astuto holandês!
E nos pampas distantes quem erra,
Ninguém ousa afrontar-te outra vez!

Da tua alma nasceu Miguelinho,
Nós, como ele, nascemos também,
Do civismo no rude caminho,
Sua glória nos leva e sustém!

A tua alma transborda de glória!
No teu peito transborda o valor!
Nos arcanos revoltos da história
Potiguares é o povo senhor!

Foi de ti que o caminho encantado
Da Amazônia Caldeira encontrou,
Foi contigo o mistério escalado,
Foi por ti que o Brasil acordou!

Da conquista formaste a vanguarda,
Tua glória flutua em Belém!
Teu esforço o mistério “inda” guarda
Mas não pode negá-lo a ninguém!

É por ti que teus filhos descantam,
Nem te esquecem, distante, jamais!
Nem os bravos seus feitos suplantam
Nem teus filhos respeitam rivais!

A tua alma transborda de glória!
No teu peito transborda o valor!
Nos arcanos revoltos da história
Potiguares é o povo senhor!

Terra filha de sol deslumbrante,
És o peito da Pátria e de um mundo
A teus pés derramar trepidante,
Vem atlante o seu canto profundo!

Linda aurora que incende o teu seio,
Se recama florida e sem par,
Lembra uma harpa, é um salmo, um gorjeio,
Uma orquestra de luz sobre o mar!

Tuas noites profundas, tão belas,
Enchem a alma de funda emoção,
Quanto sonho na luz das estrelas,
Quanto adejo no teu coração

A tua alma transborda de glória!
No teu peito transborda o valor!
Nos arcanos revoltos da história
Potiguares é o povo senhor!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

 
Hino do Estado do Rio Grande do Sul
Letra por Francisco Pinto da Fontoura
Melodia por Joaquim José de Mendanha


Como a aurora precursora
do farol da divindade
foi o Vinte de Setembro
o precursor da liberdade.

Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra
De modelo a toda terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra

Mas não basta pra ser livre
Ser forte, aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo

Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra
De modelo a toda terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra
= = = = = = = = = = = = =
“Estrofe suprimida em 1966”
Entre nós, reviva Atenas
Para assombro dos tiranos
Sejamos gregos na glória
E na virtude romanos.

Fontes:
Wikipedia
RN
RS

Benedita Azevedo (Dias de Leitura)

Lúcia era uma professora de classe especial e procurava estimular as crianças para a leitura. Andava com uma pasta cheia de livros que as crianças chamavam de biblioteca.

- Vamos turma, hoje é dia de Leitura!

- Oba! Quero ouvir a história do João e Maria - pediu Sérgio, uma das cinco crianças com as quais Lúcia trabalhava na escola.

- Eu quero a do Patinho feio – atropelou Luisinho; ele tinha dificuldades para andar, devido à paralisia infantil que o acometera aos 3 anos - vestia uma linda jaqueta vermelha, gorro azul com vermelho e luvas azuis.

- Eu quero a do gigante, aquele do pé de feijão – choramingou Paulinha, vestindo um macaquinho amarelo e gorro de pompom da mesma cor.

- Tia Lúcia, eu queria a história da Cinderela e a carruagem de abóbora – solicitou Solange, com seu cachecol amarelo e o gorro com pompom vermelho.

- Tia Lúcia, será que tem aquela historinha que fala porque o canguru salta em duas patas? – mais uma vez solicita Sérgio, todo agasalhado, usando óculos, com pinta de intelectual.

- Será que na sua biblioteca tem a história do Pinóquio? Eu gosto quando o nariz dele cresce. Quem manda ser mentiroso, não é tia? – Comentou Paulinha, encolhendo-se de frio, ajeitando as luvas amarelas e colocando o gorro-cachecol.

- Será que dá para contar a lenda do Negrinho do pastoreio, aquele que foi enterrado no formigueiro? – pediu Solange, com seu gorro de listras vermelhas e brancas, enterrado até as sobrancelhas.

As crianças não davam folga para Lúcia falar. Todos falavam atropelando-se verbalmente. Por fim ela que observava a reação de cada um, pediu que eles a ouvissem.

- Eu tenho um lindo livro de capa azul, cheio de estrelas cor de ouro, onde poderemos passear por todas essas lindas histórias e até viajar no arco-íris.

- Viajar no arco-íris? Aquele todo colorido? Mas a gente pode mudar, tia! Quando alguém viaja nele, quem é homem pode virar mulher e quem é mulher pode virar homem quando chegar do outro lado! – tagarelou Flora que se mantivera calada até aquele momento.

- Mas no meu arco-íris, não acontece isso não! A gente embarca no meio de um campo cheio de flores, viaja pelas estrelas e pode passar por todas as histórias que vocês querem ouvir.

- Então vamos logo, entrar no livro de estrelas e viajar no arco-íris. – falaram as crianças em coro.

- Vamos lá, todos estão bem agasalhados? Pois viajaremos por lugares muito frios. – anunciou a tia Lúcia, já bem agasalhada, com seu casaco de lã grossa, botas e um lindo gorro, para proteger suas orelhas do frio. - Visitaremos “João e a Maria” fugindo do quarto da bruxa. O patinho feio virando um lindo Cisne. João chegando às nuvens no pé de feijão e descendo com o saco de ouro. A Cinderela no seu lindo vestido de tafetá dourado bordado com pedras preciosas e os sapatinhos de cristal, dançando com seu príncipe. Depois encontraremos o Pinóquio com seu grande nariz e a fada de cabelos azuis, que o fez descobrir que não valia a pena mentir. Pegamos o Pinóquio e vamos até o Rio Grande do Sul salvar O Negrinho do Pastoreio do formigueiro.

Lúcia sentou-se no meio da sala com todas as crianças. Abriu o livro azul com estrelas douradas e em pouco tempo todos viajavam pelas histórias, da preferência de cada um.

Minha Estante de Livros (“Senhora”, de José de Alencar)


Sendo um dos últimos de Alencar, Senhora é um romance urbano que retrata o casamento por interesse numa sociedade de aparências do século XIX, mesma época em que o autor vivia. Nessa obra pertencente à época literária do Romantismo já é possível observar características do Realismo e do Naturalismo. Através dos diálogos e discussões entre Fernando e Aurélia, podemos notar a visão crítica que estes possuem da sociedade, onde o casamento não é apenas por amor, e mais por interesse.

O romance pertence a segunda metade do século XIX, onde a sociedade vivia de aparências e contradições. Alencar critica a sociedade, não de uma perspectiva esperançosa de mudanças, mas de perspectivas atuais e sem soluções aparentes. O casamento por interesse era um costume social muito criticado pelo autor.

A obra Senhora, de José de Alencar é dividida em quatro partes. A primeira delas, nomeada de “O preço do casamento”, começa descrevendo uma jovem moça chamada Aurélia, rica e frequentadora de bailes da alta sociedade. Aurélia, sendo órfã e herdeira de uma grande fortuna, estava sempre acompanhada de sua parenta D. Firmina e acreditava que todos só se interessavam por ela por causa de sua beleza e do seu dinheiro.

Em um baile de costume, Aurélia começou a se questionar sobre sua educação e seu destino. Escreveu uma carta ao Sr. Lemos dando-lhe a missão de arrumar seu casamento com o atual noivo de Adelaide Amaral, o Fernando Seixas. Seixas era pertencente a uma família de situação pouco favorável e pretendia arrumar um casamento com uma moça rica para oferecer melhores condições para sua mãe e suas irmãs, e também para seus luxos.

Lemos faz a proposta de casamento a Seixas, que mesmo sem conhecer a noiva, recebe um adiantamento do alto dote e aceita o compromisso. Quando foi apresentado à Aurélia, Seixas sente uma profunda humilhação, pois em tempos passados tinha rompido um noivado com ela para ficar noivo de Adelaide, que era mais rica. Na noite de núpcias, Aurélia chama seu então marido de homem vendido.

Na segunda parte, chamada “Quitação”, é contada a história de Aurélia. D. Emília era sua mãe e Pedro Camargo, seu pai. Pedro era filho bastardo de um rico fazendeiro e casou-se com Emília sem conhecimento de seu pai. Anos depois, acaba morrendo e seu pai não conhece sua neta. D. Emília fica em má situação para criar sua filha. Nesse momento, Seixas se elege como pretendente de Aurélia e assume o compromisso de se casar com ela. Porém, se arrepende por ter se apaixonado por uma moça pobre e órfã e assume compromisso com Adelaide, moça rica na sociedade. Perto de falecer, o avô de Aurélia a procura e deixa para ela toda sua fortuna. Após a morte de sua mãe, Aurélia tem como tutor Sr. Lemos, seu tio, e como acompanhante, D. Firmina.

A terceira parte tem como título “Posse” e descreve a rotina de Aurélia e Fernando enquanto casal. Eles vivem uma vida de aparência; desfilam de mãos dadas, trocam carinhos e gentilezas diante de bailes ou de amigos. Mas quando estão sozinhos, trocam palavras ferinas e acusações. Fernando se vê como um escravo de Aurélia, tendo ela como sua dona e a obedece em todos os seus desejos.

Na quarta e última parte, “Resgate”, temos os principais acontecimentos da trama. Os desejos não realizados de Aurélia e Fernando são passados pelo autor com muito erotismo. Porém, por orgulho, Fernando e Aurélia não se deixam envolver. Podemos notar nessa parte a visível transformação de Fernando que passa a recusar o luxo que tanto já desejara. Fernando passa então a trabalhar dedicadamente e faz um negócio importante, em que arrecada um valor e devolve para Aurélia todo o dinheiro do dote. Ele então pede o divórcio. Comprovada a mudança de Fernando, Aurélia lhe mostra o seu testamento escrito no dia do casamento, onde é deixada para Fernando toda sua fortuna e é declarado o seu amor por ele. O casamento então se consuma e os dois se tornam um casal de amantes.

ANÁLISE


Aurélia, personagem principal do livro Senhora, de José de Alencar, participa da tríade do autor – juntamente com Lucíola e Diva – em que representa o “perfil de mulher” da sociedade brasileira através de uma visão romântica. Através desse perfil, Alencar busca compreender os sentimentos e os motivos que os impulsionam, através do relato minucioso dos pensamentos e ações da mulher. Aurélia, sendo pobre, era frágil, meiga, compreensiva e sonhadora. Após a decepção que teve com Fernando ao ser abandonada em troca de um casamento por interesse, passa a ser fria, calculista e temperamental. Aurélia faz questão de, por vaidade, mostrar à sociedade que é rica e dona de Fernando.

Já Fernando inicia o enredo sendo um homem extremamente interesseiro e sedutor que mesmo estando apaixonado por Aurélia, desmancha seu noivado com ela para assumir compromisso com Adelaide, que era rica. Porém, ao se casar com Aurélia e se sentir humilhado diante da situação, ocorre uma transformação em sua personalidade. Para se transformar no par de Aurélia e completar o romance com um desfecho feliz, essa mudança de comportamento é necessária ao enredo. Fernando passa a ser um homem compromissado com o trabalho e tem por objetivo principal devolver à Aurélia o valor correspondente ao dote que recebeu, para assim ficar livre.

Senhora faz parte da fase literária que chamamos de Romantismo. Entretanto, em várias passagens e através dos personagens do enredo, podemos notar características pertencentes ao estilo do Realismo já se mostrando. Alencar faz uma dura crítica ao costume da época em que casamento muitas vezes não era visto como uma união de um casal apaixonado e sim como um negócio, em que dotes são pagos.

Personagens


Aurélia Camargo
: Jovem rica de 18 anos órfã, chama atenção de todos pela sua beleza e excentricidade. Muitos moços da sociedade a desejam como esposa, porém, ela pede a seu tio que faça um acordo com Fernando Seixas e casa-se com ele. Aurélia demonstra inteligência e planejamento de suas ações, para que tudo saia conforme seus planos.

Fernando Seixas
: Jovem de 18 anos que, apesar de sua família viver de maneira muito simples, tinha uma pose e um lugar de respeito na sociedade. Interesseiro, procura casamento com uma moça rica para melhorar sua situação financeira. É servidor público. Só após o casamento com Aurélia é que começa a ocorrer uma transformação em sua personalidade.

D. Emília: mãe de Aurélia, casa-se com Pedro por amor e deixa sua família para viver esse amor.

Lemos: Irmão mais velho de D. Emília que só aparece após saber que sua sobrinha herdou uma valiosa herança. A pedido de Aurélia, arruma seu casamento com Fernando.

Pedro Camargo: filho bastardo de Lourenço Camargo, casa-se escondido de seu pai com D. Emília e morre, deixando Aurélia órfã.

D. Firmina: mora com Aurélia e a faz companhia.

Adelaide
: Ex-noiva de Fernando, é apaixonada por Torquato e por ele ser pobre, só consegue se casar com a ajuda de Aurélia.

Torquarto Ribeiro
: moço pobre e apaixonado por Adelaide, foi muito amigo de Aurélia quando ela era pobre.

Eduardo Abreu: Apaixonado por Aurélia, paga as despesas do sepultamento de D. Emília, mesmo estando viajando.
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José de Alencar nasceu no Ceará em 1829 e em 1830 muda-se para o Rio de Janeiro, junto com sua família. Aos 14 anos, mudou-se para São Paulo, onde inicia sua faculdade de Direito. Destacou-se como um grande romancista de nossa literatura, além do romance urbano Senhora, publicou outras tendências de romance, como o romance indianista Iracema e o romance regionalista O gaúcho. Além de escritor, foi também crítico teatral e político. Morreu aos 48 anos em 1877, na cidade do Rio de Janeiro.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 15


 

Helena Kolody (Mendigos)


Para lá da ponte preta, havia só duas casas.

Logo depois da ponte, o casebre da Bruta Béstia. E muito mais longe, no mato cerrado, a choupana do lazarento, sempre fechada.

Quando o bando de crianças ia colher guabirobas, quase sempre encontrava a Bruta Béstia, a caminho da cidade. Era uma italiana grande e feia, de nariz vermelho, cabelos emaranhados fugindo do lenço sujo. Trazia sempre um filho ao colo. Seguiam-na os outros filhos, os menores vestidos apenas com uma camisinha que mal chegava ao umbigo. Era uma tropilha bizarra.

A mais velha, ruiva, de olhos gateados; o segundo, louro; havia um quase mulato. Ranhentos e sarnosos, dava nojo olhá-los.

Ninguém sabia o nome da mulher. Aparecera Deus sabe donde e como exclamasse frequentemente: “bruta béstia!”, pegara-lhe o apelido.

A alegria da criançada era gritar-lhe, pelas costas e prudentemente à distância:

— Bruta béstia!

A mulher virava-se como se alguém a houvesse mordido.

— Bruta béstia é a tua mãe!

E desfiava um rosário de impropérios.

A gurizada guinchava de gosto. Quanto mais feios os palavrões, maiores as gargalhadas.

A raiva da mulher ia amainando. Então, como quem atira ao fogo uma braçada de lenha, tornavam a gritar:

— Bruta Béstia!

Reacendia-se-lhe a cólera.

Afinal, a mulher desistia da luta, arrebanhava os filhos e seguia rumo à cidade, onde ia esmolar. Ir juntar guabirobas era melhor que o melhor dos brinquedos. Meninos e meninas, munidos de cestas, varavam o Matinho — assim o povo chamava o grande terreno desabitado, que ficava para cá da ponte preta.

Os meninos marinhavam pelas enormes guabirobeiras e sacudiam-lhes os galhos. O capim ficava juncado de guabirobas graúdas e amarelas. Começava, então, a disputa pelas melhores.

— Essa “gavirova” é minha.

— Fui eu que vi primeiro.

Às vezes, um pé vingativo esmagava a fruta.

— Ói a tua gavirova!

Mas as cestas se enchiam. Na volta, as crianças vinham a chupar as frutas melhores. Muitas vezes, acontecia de chegarem em casa com umas poucas guabirobas feias e amassadas.

Só quando começavam a escassear as frutas do lado de cá é que passavam, com certo receio, para o outro lado da ponte preta, onde a estrada deserta corria pelo mato cerrado. Mas a tentação era grande. Um informava:

— Eu sei de uma gavirovêra, lá do outro lado... Dá cada gaviróva deste tamanho!

E lá iam todos.

Ao avistarem o casebre do morfético, instintivamente se afastavam. Às vezes, o mais curioso ia espiar pelas frestas.

De longe, gritava-lhe a irmã:

— Espera, Toninho, que vô contá pra mamãe!

O lázaro era o papão da cidade. As mães ameaçavam os filhos. Não vá pra rua, que o lazarento te pega. As crianças iam mesmo, mas tinham um medo do lazarento! Corria a notícia de que os leprosos procuravam passar aos outros a sua moléstia, acreditando que assim ficassem limpos. Mas aquele leproso nunca fizera mal a ninguém. Vinha sempre mendigar na cidade.

Lembro-me bem da primeira vez que o vi. Eu havia chegado do sítio por aqueles dias e fui brincar na praça, com outra menina. Eu nunca tinha visto praça. Aquela era um grande gramado, ensombrado de árvores e cortado em diagonal por uma ruazinha. Era domingo e havia muitas meninas brincando na praça.

Ao chegarmos, uma se destacou e veio ao nosso encontro.

— Quem é essa menina?

— É a neta de D. Jandira.

A outra foi logo convidando:

— Vâmo brincá de pega?

Fez-se o círculo. A menina foi tirando a sorte:

Um, dois, três, quatro,
Quantos pelos tem o galo
Acabado de nascer?
Um, dois, três, quatro.

Aquelas em que terminava a quadrinha, iam saindo.

Afinal, ela anunciou:

— Mãe é a Lila. O “frái” é o coreto. Não vale correr na rua.

Eu fiquei atrapalhada. Baixinho, perguntei à companheira:

— Onde é o coreto?

— Ali, naquela casinha redonda, no meio da praça — disse alto a menina, apontando o coreto.

As outras riram. Senti que fiquei vermelha.

Afinal, começou o brinquedo.

Os gritos das perseguidas pela “mãe” enchiam a praça. A miúdo, soava, em triunfo: mãe! E lá ia um tapa nas costas da alcançada.

Mudavam os papéis e recomeçava a correria. De quando em quando, uma gritava: “frái!” e sentava-se, ofegante, na escadinha do coreto.

Eu estava quase à parte e acabei por ficar apreciando o jogo.

A certa altura, uma avisou:

— Ói o lazarento!

Num fechar de olhos, debandaram todas.

Fiquei ali, apatetada. Lazarento!

Só então, reparei naquele homem que vinha pela rua da praça. Passou bem perto de mim, enorme e vermelho. O rosto era dum rosado vivo, os olhos lacrimejantes, os lábios e o nariz muito inchados, as orelhas crescidas e pendentes. A roupa parecia querer rebentar, de tão justa. Na mão enorme, levava um bastão, com que ajudava os passos. Andava devagarinho, arrastando os pés, embrulhados em trapos ensanguentados e metidos em chinelas. Não olhava para ninguém e parecia não ouvir.

Debalde as meninas, agrupadas no outro extremo da praça, esganiçavam, num coro desatinado:

— Lazarento!

Naquele dia, Toninho fora sozinho ao mato colher guamirim. Fartara-se daquela frutinha de sabor acre, que lhe deixara pretos os dentes, a boca, os dedos. Na volta, passou rente à casa do leproso e não pude deixar de ir olhar pelas frestas.

Estava entretido na sua bisbilhotice, quando se sentiu agarrado. Ao voltar o rosto, deu com a cara vermelha do morfético, que o apertou contra si e esfregou a sua face no rosto do menino.

Toninho estava mudo de horror.

— Dez com este! — disse, em triunfo, a voz rouca do leproso. Solto, o menino largou-se a correr, gritando e limpando o rosto.

E nunca mais se viu o lazarento na cidade, nem se soube do seu paradeiro.

Fonte:
Luís Bueno (org). O tempo visto daqui : 85 cronistas paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura, 2018.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 15 –

 Ante um conselho que é justo
eu me curvo e me ajoelho
e pago por qualquer custo
o custo de um bom conselho!
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Aos corpos que, entre os farrapos
dormem sujos pelo chão...
Restam-lhes pois entre os trapos,
velhos trapos de ilusão!!!
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Ao vencer tempo e distância,
a velhice, abraço e aceito;
mas os bons tempos da infância
são crianças no meu peito!
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Busquei, na fonte de um templo,
a paz de um novo horizonte;
e achei essa paz no exemplo
que há no silêncio da fonte!…
= = = = = = = = = = = = =

Deus pôs no amor tanta essência,
que, o seu grande Benfeitor,
não permite que a ciência
ponha limites no amor!
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Esse dia me distrai,
e enche-me de amor, de afetos;
dos afetos, por ser pai
das filhas e dos meus netos!
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Há uma paz no olhar da mata
quando a brisa em leve açoite,
soprando a velha cascata
embala o pranto da noite!
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Lembrando os tempos antigos,
mesmo apesar da distância...
Escuto os passos amigos
dos meus amigos de infância!
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Levi, ao ver que me olhava,
confesso aqui, entre nós,
que era o neto que faltava
na vida de seus avós!
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Mãe, é poema de amor
que, a qualquer filho se apega;
alívio que afasta a dor
da cruz que o filho carrega!
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Mãe - nessas tuas letrinhas
ouço os mais lindos fonemas
que formam todas as linhas
dos versos dos meus poemas!
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Nos momentos mais grotescos,
quando chove no sertão...
A chuva pinta arabescos
de esperanças pelo chão!
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Nossos sonhos sintetizam
a paz de todos os temas
que, docemente, deslizam
nos versos dos meus poemas!
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Nos teus bilhetes queimando
vi com certo desconforto...
Frases de amor me acenando
das cinzas de um sonho morto!
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O entardecer se assemelha
a um fogaréu tão bonito,
que a tinta de cor vermelha
se espalha em todo o infinito!
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Os teus cansaços não vão
impedir que o teu suor,
seja o fermento do pão
que te alimenta melhor!
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Por esse amor que carrego,
não vejo maldade alguma;
sou tão cego, quanto um cego
que não vê coisa nenhuma!
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Prefiro os caminhos tortos
aos enlevos mais risonhos,
a ver os meus sonhos mortos
entre as cinzas de outros sonhos!
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Qual velho papel carbono,
quase sem tinta e sem cor...
Vai-se o meu sonho sem dono
buscando sonhos de amor!
= = = = = = = = = = = = =

Quando escuto a tua voz,
há um silêncio que me acalma!...
E, é nesse instante, entre nós,
que escuto a voz de minha alma!
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Sinto na mãe que se enlaça
nos braços de uma criança...
Que um sonho de amor se abraça
aos bracinhos da esperança!
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Soprei cinzas!... E, ao soprá-las,
entre as cinzas da lembrança...
Escutei todas as falas
do meu tempo de criança!
= = = = = = = = = = = = =

Sou como as folhas sem dono
que se arrastam pelo chão,
nas tardes tristes de outono
depois que os ventos se vão!
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Tua carta de alforria
eu queimei sem embaraços,
porque quero todo dia
ser escravo de teus braços!
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Vivo cercado de afetos!
Na paz do mesmo endereço...
Vejo em meus filhos e netos
a vida em seu recomeço!
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Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Emiliano Perneta (Sensações e bizarrias)


Não sou sectário de nenhum sistema filosófico. Não sigo Schopenhauer, nem sigo Augusto Comte. Sou às vezes mais pessimista que o primeiro, porque acrescento à sua frase: “A vida não merece ser vivida” a seguinte: “Não devíamos ter nascido”. Sou mais otimista que o segundo, porque há dias em que rio tão feliz e satisfeito, tão alegre e vibrante, que parece que o universo inteiro ri comigo. Glória, áurea vaidade, que se desfaz no túmulo, no nirvana!

É um engano dizer-se que o artista ambiciona a glória. A glória consiste neste contentamento íntimo, duradouro e eterno, que o artista traz dentro de si, de poder criar obras-primas e executá-las.

Eu devia ter entrado para a Academia aos 13 anos de idade, porque só nessa idade eu poderia suportar as tolices dos meus colegas, berrar nas eleições, entusiasmar-me na festa 11 de agosto.

Como um homem custa a descobrir uma coisa que estava em si mesmo há tempo! Ele proclamava a mortalidade, o desespero dos conhecimentos dos mistérios, e entretanto ele mentia, porque sempre no fundo da sua alma, não sei onde, ele conservava a esperança de que viria a saber destes mistérios, e só agora é que ele descobriu isso!

Dizei tudo quanto tendes de dizer enquanto é cedo, porque senão tempo virá em que tudo ouvireis, tudo quererei dizer e não o podereis.

Dá-se um fato, o imbecil sempre o compreende torto; não lho expliqueis, é pior, compreende de outro modo, mais estupidamente ainda. Como um homem de espírito se torna fútil no meio de imbecis!

Evolução! Isto não passa de uma cruz que a imbecilidade põe aos ombros dos homens de talento e que estes conduzem pela via infinita e dolorosa do Progresso. Eu não sei fazer inveja aos outros porque não a sinto. Ou por outra: sinto-a de um modo tão esquisito, com tanta nobreza, que a raros poderia fazer experimentar o mesmo sentimento.

Quando ouço um imbecil dizer uma barbaridade, que é o que sempre ele diz, a respeito da poesia ou qualquer outra coisa sagrada, eu tenho vontade de protestar. Mas se avanço a primeira frase, paro logo desanimado, com uma preguiça mortal de remover aquela estupidez mais pesada que uma montanha.

Olho para o céu. Está escuro e odiento. Nestas ocasiões, sinto uma irritação nervosa contra a fatalidade que me condenou a viver sob esta abóbada — de camadas gasosas e de mistérios — a mesma irritação que sentiria se visse-me preso num subterrâneo.

O único modo de ser-se amigo dos homens e principalmente de seu dono — é ser-se baixo, adulador, paciente, humilde e serviçal como um cão. É por isso que o cão é o emblema da amizade.

Religião! Tirai-me este peso dos ombros. Eu, às vezes, sinto em mim todo o cansaço da humanidade sob esse fardo eterno.

Fonte:
Luís Bueno (org). O tempo visto daqui : 85 cronistas paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura, 2018.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

Versejando 100

 

Eduardo Affonso (Na Pressão…)

Não tenho medo de solidão.

Não tenho medo de cair no banheiro, bater a cabeça no tento de mármore do box e só me encontrarem quando eu já tiver escorrido pelo ralo e não restar nem o esqueleto, porque os cachorros terão levado os ossos para a sala e tudo que restará de mim será um fêmur meio roído, na boca do Tião.

Não.

Eu tenho medo é de panela de pressão.

A panela de pressão é uma esfinge. Uma bomba-relógio. Um campo minado.

Meu pai, homem intimorato, daqueles de andar com duas armas – uma na canela, outra embaixo do sovaco – só foi derrotado pelo câncer e pela panela de pressão (não nessa ordem, obviamente).

Ele entrava na cozinha apenas para perguntar por que é que o almoço ainda não estava pronto. Ele almoçava às 11 horas em ponto, para poder estar no Fórum pontualmente ao meio-dia. Por volta de 10h45, começava o inferno astral da minha mãe:

– Conceição, já são quase 11 horas. Cadê o almoço, Conceição?

Minha mãe suspirava resignada, e cozinhava, de modo que às 10h59 a primeira travessa chegasse à mesa, onde meu pai já a esperava, de garfo e faca na mão.

Um dia – morávamos em Visconde do Rio Branco – meu pai extrapolou sua jurisdição.

Invadiu a cozinha e resolveu pular os intermediários e pressionar diretamente a panela de pressão.

A panela, claro, não tinha a paciência infinita da minha mãe.

Seguiu-se uma explosão. Quando cheguei em casa não entendi o que havia acontecido, ou de onde surgira aquele teto cravejado de feijão.

Ninguém se feriu, e, tirando o feijão e o teto, salvaram-se todos. Meu pai deve ter entendido que ninguém está acima das leis da física. Que tudo neste mundo tem seu tempo, cada coisa tem sua ocasião.

O feijão com arroz, aquele dia, foi só arroz, quebrando – ao que eu saiba, pela primeira e única vez – uma milenar tradição.   Minha mãe saboreou, grão por grão, essa vitória, obtida por interposta panela.

Fim do flexibeque.

Um lar só é um lar quando tem tapetinho na porta e panela de pressão. O tapetinho eu não tenho, mas comprei a panela, há alguns anos. Trouxe-a para casa como quem abre os portões para um cavalo de Tróia, sabendo o que ele guarda na barriga.

Usei-a poucas vezes, durante as faringites – quando uma sopa descia bem melhor que um sanduíche. Mas sempre o fiz com respeito, quase com reverência.

Levanto a válvula com a ponta dos dedos e espero que a panela desabafe, se acalme, sinta que está entre amigos. Depois, dou-lhe uma ducha de água fria, para aquietar-lhe os ânimos. Ela ainda resmunga um pouco, solta algum vapor pelas ventas, e só quando parece pacificada é que dou um passo para trás e destravo a tampa.

Tem funcionado.

Hoje, vencendo um trauma de décadas, cozinhei feijão. Escapamos incólumes: eu, a panela, o teto, o fogão.

Mais algumas experiências bem sucedidas com essa criatura explosiva e já me sentirei capaz de arriscar alguma coisa com uma mulher de Escorpião.