sábado, 23 de janeiro de 2021

Versejando 28


 

Varal de Trovas 469

 


Arthur de Azevedo (Um capricho)


Em Mar de Espanha havia um velho fazendeiro, viúvo que tinha uma filha muito tola, muito mal-educada, e sobretudo, muito caprichosa. Chamava-se Zulmira.

Um bom rapaz, que era empregado no comércio da localidade, achava-a bonita, e como estivesse apaixonado por ela, não lhe descobria o menor defeito.

Perguntou-lhe uma vez se consentia que ele fosse pedi-la ao pai.

A moça exigiu dois dias para refletir.

Vencido o prazo, respondeu:

- Consinto, sob uma pequena condição.

- Qual?

- Que o seu nome seja impresso.

- Como?

- É um capricho.

- Ah!

- Enquanto não vir o seu nome em letra redonda, não quero que me peça.

- Mas isso é a coisa mais fácil...

- Não tanto como supõe. Note que não se trata da assinatura, mas do seu nome. É preciso que não seja coisa sua.

Epidauro, que assim se chamava o namorado, parecia ter compreendido. Zulmira acrescentou:

- Arranje-se!

E repetiu:

- É um capricho.

Epidauro aceitou, resignado, a singular condição, e foi para casa.

Aí chegado, deitou-se ao comprido na cama, e, contemplando as pontas dos sapatos, começou a imaginar por que meios e modos faria publicar o seu nome.

Depois de meia hora de cogitação, assentou em escrever uma correspondência anônima para certo periódico da Corte, dando-lhe graciosamente notícias de Mar de Espanha.

Mas o pobre namorado tinha que lutar com duas dificuldades: a primeira é que em Mar de Espanha nada sucedera digno de menção; a segunda estava em como encaixar o seu nome na correspondência.

Afinal conseguiu encher duas tiras de papel de notícias deste jaez!

"Consta-nos que o Revmo. Padre Fulano, vigário desta freguesia, passa para a de tal parte."

"O Ilmo. Sr. Dr. Beltrano, juiz de direito desta comarca, completou anteontem 43 anos de idade. S. Sª, que se acha muito bem conservado, reuniu em sua casa alguns amigos."

"Tem chovido bastante estes últimos dias", etc.

Entre essas modestas novidades, o correspondente espontâneo, depois de vencer um pequenino escrúpulo, escreveu:

"O nosso amigo Epidauro Pamplona tenciona estabelecer-se por conta própria."

Devidamente selada e lacrada, a correspondência seguiu, mas...

Mas não foi publicada.
* * *

O pobre rapaz resolveu tomar um expediente e o trem de ferro.

- À Corte! À Corte! – dizia ele consigo; ali, por fás ou por nefas*, há de ser impresso o meu nome!

E veio para a Corte.

Da estação central dirigiu-se imediatamente ao escritório de uma folha diária, e formulou graves queixas contra o serviço da estrada de ferro. Rematou dizendo:

- Pode dizer, Sr. redator, que sou eu o informante.

- Mas quem é o senhor? perguntou-lhe o redator, molhando uma pena; o seu nome?

- Epidauro Pamplona.

O jornalista escreveu; o queixoso teve um sorriso de esperança.

- Bem. Se for preciso, cá fica o seu nome.

Queria ver-se livre dele. No dia seguinte, nem mesmo a queixa veio a lume.

Epidauro não desesperou.

Outra folha abriu uma subscrição não sei para que vítimas; publicava todos os dias a relação dos contribuintes.

- Que bela ocasião! murmurou o obscuro Pamplona.

E foi levar cinco mil-réis à redação.

Com tão má letra, porém, assinou, e tão pouco cuidado tiveram na revisão das provas, que saiu:

Epifânio Peixoto 5$OOO

Epidauro teve vergonha de pedir errata, e assinou mais 2$OOO.

Saiu:

"Com a quantia de 2$, que um cavalheiro ontem assinou, perfaz a subscrição tal a quantia de tanto que hoje entregamos, etc.

Está fechada a subscrição."
* * *

Uma reflexão de Epidauro:

Oh! Se eu me chamasse José da Silva! Qualquer nome igual que se publicasse, embora não fosse o meu, poderia servir-me! Mas eu sou o único Epidauro Pamplona...

E era.

Daí, talvez, o capricho de Zulmira.
* * *

Uma folha caricata costumava responder às pessoas que lhe mandavam artigos declarando os respectivos nomes no Expediente.

Epidauro mandou uns versos, e que versos! A resposta dizia: "Sr. E. P. Não seja tolo."
* * *

Como último recurso, Epidauro apoderou-se de um queijo de Minas à porta de uma venda e deitou a fugir como quem não pretendia evitar os urbanos, que apareceram logo. O próprio gatuno foi o primeiro a apitar.

Levaram-no para uma estação de polícia. O oficial de serviço ficou muito admirado de que um moço tão bem trajado furtasse um queijo, como um reles larápio.

Estudantadas... refletiu o militar; e, voltando-se para o detido:

- O seu nome?

- Epidauro Pamplona! bradou com triunfo o namorado de Zulmira.

O oficial acendeu um cigarro e disse num tom paternal:

- Está bem, está bem. Sr. Plampona. Vejo que é um moço decente – que cedeu a alguma rapaziada.

Ele quis protestar.

- Eu sei o que isso é! – atalhou o oficial. – De uma vez em que saí de súcia com uns camaradas meus pela Rua do Ouvidor, tiramos à sorte qual de nós havia de furtar uma lata de goiabada à porta de uma confeitaria. Já lá vão muitos anos.

E noutro tom:

- Vá-se embora, moço, e trate de evitar as más companhias.

- Mas...

- Descanse, o seu nome não será publicado.

Não havia réplica possível; demais, Epidauro era por natureza tímido.

O seu nome, escrito entre os dos vagabundos e ratoneiros, era uma arma poderosíssima que forjava contra os rigores de Zulmira; dir-Ihe-ia:

- Impuseste-me uma condição que bastante me custou a cumprir. Vê o que fez de mim o teu capricho!
* * *

Quando Epidauro saiu da estação, estava resolvido a tudo!

A matar um homem, se preciso fosse, contanto que lhe publicassem as dezesseis letras do nome!
* * *

Lembrou-se de prestar exame na Instrução Pública.

O resultado seria publicado no dia seguinte.

E, com efeito, foi: "Houve um reprovado."

Era ele!

Tudo falhava.
* * *

Procurou muitos outros meios, o pobre Pamplona, para fazer imprimir o seu nome; mas tantas contrariedades o acompanharam nesse desejo que jamais conseguiu realizá-lo.

Escusado é dizer que nunca se atreveu a matar ninguém.

A última tentativa não foi a menos original.

Epidauro lia sempre nos jornais:

"Durante a semana finda, S.M. o Imperador foi cumprimentado pelas seguintes pessoas, etc.

Lembrou-se também de ir cumprimentar Sua Majestade.

- Chego ao paço, pensou ele, dirijo-me ao Imperador, e digo-lhe: - Um humilde súdito vem cumprimentar Vossa Majestade, e saio.

Mandou fazer casaca, mas no dia em que devia ir a Cristóvão, teve febre e caiu de cama.
* * *

Voltemos a Mar de Espanha:

Zulmira está sentada ao pé do pai. Acaba de contar-lhe a que impôs a Epidauro. O velho fazendeiro ri-se a bandeiras despregadas.

Entra um pajem.

Traz o Jornal do Comércio, que tinha ido buscar à agência de correio.

A moça percorre a folha, e vê, afinal, publicado o nome de Epidauro Pamplona.

– Coitado! murmura tristemente, e passa o jornal ao velho.

É no obituário:

"Epidauro Pamplona, 23 anos, solteiro, mineiro. – Febre perniciosa."

O fazendeiro, que é estúpido por excelência, acrescenta:

- Coitado! Foi a primeira vez que viu publicado o seu nome.
_____________________
* fás ou por nefas - por bem ou por mal.
  
Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Possíveis. Publicado em 1889.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 8


dois loucos no bairro

um passa os dias
chutando postes para ver se acendem

o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco

todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também
* * * * * * * * * * * * * * * *  

bate o vento eu movo
volta a bater de novo
a me mover eu volto
sempre em volta deste
meu amor ao vento
* * * * * * * * * * * * * * * *  

hoje o circo está na cidade
todo mundo me telefonou
hoje eu acho tudo uma preguiça
esses dias de encher linguiça
entre um triunfo e um waterloo
* * * * * * * * * * * * * * * *  

você
que a gente chama
quando gama
quando está com medo
e mágua
quando está com sede
e não tem água
você
só você
que a gente segue
até que acaba
em cheque
ou em chamas
qualquer som
qualquer um
pode ser tua voz
teu zum-zum-zum
todo susto
sob a forma
de um súbito arbusto
seixo solto
céu revolto
pode ser teu vulto
ou tua volta
* * * * * * * * * * * * * * * *  

esperas frustras
vésperas frutas
matérias brutas
quantas estrelas
custas?
* * * * * * * * * * * * * * * *  

oração de pajé

que eu seja erva raio
no coração de meus amigos
árvore força
na beira do riacho
pedra na fonte
    estrela
        na borda
             do abismo
* * * * * * * * * * * * * * * *  

dia
dai-me
a sabedoria de caetano
nunca ler jornais
a loucura de glauber
ter sempre uma cabeça cortada a mais
a fúria de décio
nunca fazer versinhos normais
* * * * * * * * * * * * * * * *  

ver
é dor
ouvir
é dor
ter
é dor
perder
é dor

só doer
não é dor
delícia
de experimentador
* * * * * * * * * * * * * * * *  

lembrem de mim
como de um
que ouvia a chuva
como quem assiste missa
como quem hesita, mestiça,
entre a pressa e a preguiça
* * * * * * * * * * * * * * * *  

como um coto caro ao roto
incrédulo tiago
toco as chagas
que me chegam
do passado
mutilado

toco o nada
aquele nada que não para
aquele agora nada
que tinha
a minha
cara

nada não
que nada nenhum
declara tamanha danação

Fonte:
Paulo Leminski. Distraídos venceremos. Publicado em 1987.

Carina Bratt (O violento silêncio de um novo recomeço)


Depois que a nossa vida foi completamente destruída, seja por desfazimento de um casamento, pela perda do emprego onde ganhávamos razoavelmente bem, pelo falecimento de algum ente querido, ou qualquer outro item que eu não tenha citado neste pequeno rol, como recomeçar? Muitas e muitas vezes nos quedamos diante dos escombros com esta indagação entalada na goela: como recomeçar?

Existe alguma cartilha, ou um truque para se tirar de dentro de uma cartola (como os ilusionistas, nos palcos da vida circense, um buquê de flores, ou uma pombinha branca, ou via igual, da manga da blusa, um pacote de dinheiro, para saldarmos todas as nossas dívidas e começarmos do nada, ou seja, do zero?). A resposta é NÃO.

Na verdade, não colocaram, ao nosso dispor, para consultas rápidas e rasteiras, nenhum dispositivo prático —, um modelo livre de trapaças —, um livreto padrão, correto e sem erros, bonitinho e bem elaborado, bem escrito, explicando, com todos os passos corretos para serem seguidos, à risca, e vencermos as dificuldades e intempéries.

Quando nos pegamos acabadas, literalmente no fundo do poço, estraçalhadas, nada vem em nosso socorro, a não ser os destroços de nós mesmas. Grudados neles, o estupor de um silêncio pesado e denso, que nos fere, que nos machuca, que nos leva às raias da neurastenia. Nestas horas, diante do espelho do nosso destino, contamos somente com a nossa coragem, ou com o que dela sobrou intacta.

Tentamos nos reerguer, nos levantarmos do tombo dos fracassos e dissabores (sejam eles, quais forem). Enfim, arriscamos, aventuramos, ousamos sair ilesas da vida abrupta, despedaçada, juntando os caquinhos, um por um, aqui e ali, depois e acolá, colando de volta, num trabalho de pacienciosidade (tipo as formiguinhas), até completarmos todo o mosaico dos nossos sonhos destruídos.

A reconstrução é difícil, penosa, cansativa, por vezes temerária. Às vezes, levamos anos e anos para nos aprumarmos, até vermos de novo, diante de nossa estupefação, os horizontes brilharem à frente de nossos percalços e estorvos, incômodos e entojos, irritações e achaques.

Cair é fácil. Basta estarmos em pé. Tropeçar, idem. Um simples descuido, um cochilo, um desvario e pimba, damos com tudo no rés do chão. Difícil é levantarmos, notadamente se não tivermos um alicerce, um suporte à altura de nosso tombo. Geralmente (dependendo do baque, as feridas, as contusões e as lesões produzidas por este declínio), arranjamos feridas profundas, mágoas difíceis de serem cicatrizadas.

Apesar dos pesares que surgirem, ou que nos vierem molestar, não importam as avarias produzidas. Temos, nestas horas, a obrigação, o dever, a tarefa imperativa de sermos fortes o bastante, robustas o suficiente para nos colocarmos em posição de luta e de peleja. Encararmos o porvir e, partirmos com tudo, para a guerra.

Quando falamos em guerra, devemos esclarecer que a vida é um eterno conflito de interesses, onde concebemos matar um inimigo oculto a cada dia. Os antagonistas encobertos e clandestinos são muitos e os mais diversificados. Apesar destas pedras no meio do caminho, jamais pensamos ou imaginamos em desistir das refregas, das contendas e das repressões.

Em mente, sempre, a ideia auspiciosa de sacudirmos a poeira das roupas. O anfêmero* nos ensina, a duras penas, que nunca deveremos desistir do combate. Vencer e vencer se tornou, não só uma saída à nossa volta mas, sobretudo, uma trilha aberta no meio do nada, nos impondo mecanismos de defesa para o enfrentamento diante da vida madrasta.

Neste tom, ainda que aos trancos e barrancos, seja rastejando, capengando, pulando numa perna só, temos que ter a iniciativa, a dignidade, o senso prático de nos aprumarmos. Mantermos a cabeça erguida, os sentidos a todo vapor e partirmos em busca dos objetivos almejados.

Em tempo algum jogarmos a tolha, ou darmos meia volta, fugindo das agruras e ensombramentos que vierem nos fazer frente, grosso modo, nos peitar. Ainda que tudo esteja a nosso desfavor ou que o dia a dia se apresente esquisito e tenebroso, nada de desânimos. Bola pra frente. Chutar pra gol é a meta, o propósito, a ambição, acima de qualquer outra coisa.

As vias pelas quais teremos que nos embrenhar estão diante de nossos narizes, aguardando a nossa coragem, a nossa valentia, a nossa ousadia e, claro, estas rotas contam com o nosso apetite voraz de engolirmos cada adversidade revestida de um espectro mal acabado que, porventura, venha pintar no pedaço, intencionando a se meter a besta com a nossa obstinação de vencermos e sermos novamente felizes. Temos, todas nós, o direito líquido e certo de sermos felizes.

O avejão* que nos rodeia está por aí, à solta. Belo e folgado. É uma aparição sem voz, sem rosto, sem braços e pernas. Apesar de uma completa manquitola, fará de tudo para nos impedir de seguirmos adiante, em busca do nosso sucesso. Todo recomeço não deixa de ser um afronte, um agravo à nossa sensibilidade feminina.

E nós, como Mulheres com ‘M’ Maiúsculo, o Belo Sexo, o Encanto da melhor parte da maçã, não poderemos jamais ser capachos desta ou de qualquer outra infâmia que se nos apresente com agressividade, imposições, brutalidades ou descomedimentos imoderados. Nascemos para os reveses, renascemos das cinzas, viemos de um Universo Divino prontas e aptas para sermos completas e felizes. Surja, pois, o que surgir, haja o que houver, ainda que chova canivetes, TEREMOS O MUNDO INTEIRO AOS NOSSOS PÉS.
_____________________
Vocabulário:
Anfêmero – cotidiano.
Avejão – espectro, assombração, fantasma.


Fonte:
Texto enviado pela autora.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Versejando 27

 

O Voo da Gralha Azul

 











https://voodagralhaazul.blogspot.com

O Voo da Gralha Azul (Um Blog exclusivamente de Trovas)



https://voodagralhaazul.blogspot.com

VISITE:
359 postagens.
Mais de 300 trovadores registrados no blog.
Milhares de trovas.
Trovas premiadas.
Concursos com inscrições abertas.
Regras e Dicas de trovas.

ASSINE:

No lado direito do blog https://voodagralhaazul.blogspot.com há
Receba as postagens em seu Email. ASSINE AQUI!!!

Coloque seu email, o programa enviará um email pedindo confirmação (veja na caixa de entrada ou no spam de seu email). Após confirmar, você receberá as postagens sempre que houver, na íntegra.
 
COLABORE:
Envie suas trovas, ou de trovadores de sua região, vivos ou falecidos para gralha1954@gmail.com. Coloque no assunto: Colaboração para o Voo da Gralha Azul.

Rubem Braga (A primeira mulher do Nunes)


Hoje, pela volta do meio-dia, fui tomar um táxi naquele ponto da Praça Serzedelo Correia, em Copacabana. Quando me aproximava do ponto notei uma senhora que estava sentada em um banco, voltada para o jardim; nas extremidades do banco estavam sentados dois choferes, mas voltados em posição contraria, de frente para o restaurante da esquina. Enquanto caminhava em direção a um carro, reparei, de relance, na senhora. Era bonita e tinha ar de estrangeira; vestia-se com muita simplicidade, mas seu vestido era de um linho bom e as sandálias cor de carne me pareceram finas. De longe podia parecer amiga de um dos motoristas; de perto, apesar da simplicidade de seu vestido, sentia-se que nada tinha a ver com nenhum dos dois. Só o fato de ter sentado naquele banco já parecia indicar tratar-se de uma estrangeira, e não sei por que me veio a ideia de que era uma senhora que nunca viveu no Rio, talvez estivesse em seu primeiro dia de Rio de Janeiro, entretida em ver as árvores, o movimento da praça, as crianças que brincavam, as babás que empurravam carrinhos. Pode parecer exagero que eu tenha sentido isso tudo de relance, mas a impressão que tive é que ela tinha a pele e cabelos muito bem tratados para não ser uma senhora rica ou pelo menos de certa posição, deu-me a impressão de estar fruindo um certo prazer em estar ali, naquele ambiente popular, olhando as pessoas com um ar simpático e vagamente divertido. Foi o que me pareceu no rápido instante em que nossos olhares se encontraram.

Como o primeiro chofer da fila alegasse que preferia um passageiro para o centro, pois estava na hora de seu almoço, e os dois carros seguintes não tivessem nenhum chofer aparente, caminhei um pouco para tomar o que estava em quarto lugar. Tive a impressão de que a senhora se voltara para me olhar. Quando tomei o carro e fiquei novamente de frente para ela, e enquanto eu murmurava para o chofer o meu rumo – Ipanema – notei que ela desviava o olhar; o carro andara apenas alguns metros e, tomado de um pressentimento, eu disse ao chofer que parasse um instante. Ele obedeceu. Olhei para a senhora, mas ela havia voltado completamente a cabeça. Mandei tocar, mas enquanto o velho táxi rolava lentamente ao longo da praia eu fui possuído pela certeza súbita e insistente de que acabara de ver a primeira mulher do Nunes.

– Você precisa conhecer a primeira mulher do Nunes – me disse uma vez um amigo.

– Você precisa conhecer a primeira mulher do Nunes – me disse outra vez outro amigo.

Isso aconteceu há alguns anos, em São Paulo, durante os poucos meses em que trabalhei com o Nunes. Eu conhecera sua segunda mulher, uma morena bonitinha, suave, quieta – pois ele me convidara duas vezes a jantar em sua casa. Nunca me falara de sua primeira mulher, nem sequer de seu primeiro casamento. O Nunes era pessoa de certo destaque em sua profissão e afinal de contas um homem agradável, embora não brilhante. Notei, entretanto, que sempre que alguém me falava dele era inevitável uma referência à sua primeira mulher.

Um casal meu amigo, que costumava passar os fins de semana em uma fazenda, convidou-me certa vez a ir com eles e mais um pequeno grupo. Aceitei, mas no sábado fui obrigado a telefonar dizendo que não podia ir. Segunda-feira, o amigo que me convidara me disse:

– Foi pena você não ir. Pegamos um tempo ótimo e o grupo estava divertido. Quem perguntou muito por você foi a Marissa.

– Quem?

– A primeira mulher do Nunes.

– Mas eu não conheço …

– Sei, mas eu havia dito a ela que você ia. Ela estava muito interessada em conhecer você.

A essa altura eu já sabia várias coisas a respeito da primeira mulher do Nunes; que era linda, inteligente, muito interessante, um pouco estranha, judia italiana, rica, tinha cabelos castanho-claros e olhos verdes e uma pele maravilhosa – “parece que está sempre fresquinha, saindo do banho”, segundo a descrição que eu ouvira.

Quando dei de mim eu estava, de maneira mais ingênua, mais tola, mais veemente, apaixonado pela primeira mulher do Nunes. Devo dizer que nessa ocasião eu emergia de um caso sentimental arrasador – um caso que mais de uma vez chegou ao drama e beirou a tragédia e em que eu mesmo, provavelmente, mais de uma vez, passei os limites do ridículo. Eu vivia sentimentalmente uma hora parda, vazia, feita de tédio e remorso; a lembrança da história que passara me doía um pouco e me amargava muito. Além disso minha situação não era boa; alguns amigos achavam – e um teve a franqueza de me dizer isso, quando bêbado – que eu estava decadente em minha profissão. Outros diziam que eu estava bebendo demais. Enfim, tempos ruins, de moral baixa e ainda por cima de pouco dinheiro e pequenas dívidas mortificantes. Naturalmente eu me distraía com uma ou outra historieta de amor, mas saía de cada uma ainda mais entediado. A imagem da primeira mulher do Nunes começou a aparecer-me como a última esperança, a única estrela a brilhar na minha frente. Esse sentimento era mais ou menos inconsciente, mas tomei consciência aguda dele quando soube que ela ganhara uma bolsa esplêndida para passar seis meses nos Estados Unidos. Senti-me como que roubado, traído pelo governo norte-americano. Mas a notícia veio com um convite – para o jantar de despedida da primeira mulher do Nunes.

Isso aconteceu há quatro ou cinco anos. Mudei-me de São Paulo, fiz algumas viagens, resolvi parar mesmo no Rio – e naturalmente me aconteceram coisas. Nunca mais vi o Nunes. Aliás, nos últimos tempos de nossas relações, eu me distanciara dele por um absurdo constrangimento, o pudor pueril do que ele pudesse pensar no dia em que soubesse que entre mim e a sua primeira mulher… Na realidade nunca houve nada entre nós dois; nunca sequer nos avistamos. Uma banal gripe me impediu de ir ao jantar de despedida; depois eu soube que sua bolsa fora prorrogada, depois ouvi alguém dizer que a encontrara em Paris – enfim, a primeira mulher do Nunes ficou sendo um mito, uma estrela perdida para sempre em remotos horizontes e que jamais cheguei a avistar.

Talvez fosse mesmo ela que estivesse pousada hoje, pelo meio-dia, na Praça Serzedelo Correia, simples, linda e tranquila. Assim era a imagem que eu fazia dela; e tive a impressão de que seu rápido olhar vagamente cordial e vagamente irônico tentava me dizer alguma coisa, talvez contivesse uma espantosa e cruel mensagem: “eu sei quem é você; eu sou Marissa, a primeira mulher do Nunes; mas nosso destino é não nos conhecermos jamais…”

Fonte:
Revista Manchete. RJ. Outubro de 1957

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 7 –

Augusto Gil
Porto, 1873 – 1929, Lisboa

DE PROFUNDIS CLAMAVI AD TE DOMINE

Ao charco mais escuso e mais imundo
chega uma hora no correr do dia
em que um raio de sol, claro e jucundo,
o visita, o alegra, o alumia;

pois eu, nesta desgraça em que me afundo,
nesta contínua e intérmina agonia,
nem tenho uma hora só dessa alegria
que chega às coisas ínfimas do mundo!...

Deus meu, acaso a roda do destino
a movimentam vossas mãos leais
num aceno impulsivo e repentino,

sem que na cega turbulência a domem?!
Senhor! não é um seixo que esmagais;
olhai que é – o coração de um homem!...
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Camilo Pessanha
Coimbra, 1867 – 1926, Macau

CAMINHO (I)

Tenho sonhos cruéis: n’alma doente
sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro
do peito afugentar bem rudemente,
devendo, ao desmaiar sobre o poente,
cobrir-me o coração de um véu escuro!...

Porque a dor, esta falta d’harmonia,
toda a luz desgrenhada que alumia
as almas doidamente, o céu d’agora,

sem ela o coração é quase nada:
um sol onde expirasse a madrugada,
porque é só madrugada quando chora.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Eugênio de Castro
Coimbra, 1869 – 1944

A COROA DE ROSAS

A fim, oculto amor, de coroar-te,
de adornar tuas tranças luminosas,
uma coroa teci de brancas rosas,
e fui pelo mundo afora, a procurar-te.

Sem nunca te encontrar, crendo avistar-te
nas moças que encontrava, donairosas,
fui-as beijando e fui-lhes dando as rosas
da coroa feita com amor e arte.

Trago, de caminhar, os membros lassos,
acutilam-me os ventos e as geadas,
já não sei o que são noites serenas...

Sinto que vais chegar, ouço-te os passos,
mas ai! nas minhas mãos ensanguentadas
uma coroa de espinhos trago apenas!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Fausto Guedes Teixeira
Lamego/Alto Douro, 1871 – 1930, ????

EU QUERO OUVIR O CORAÇÃO FALAR

Eu quero ouvir o coração falar
e não os homens a falar por ele!
Enquanto a gente fala, há de parar
no peito a vida estranha que o impele.

Independente à forma de o expressar,
o sentimento existe, e ai daquele
coração triste que se julgue dar
na cerração em que a palavra o vele.

Astro no peito, é sobre a língua chaga.
Dizer uma alegria ou um tormento
é um mar em que sempre se naufraga.

Era a essência de Deus vista e atingida!
Se é a força da vida o sentimento,
fez-se a palavra pra mentir a vida.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

José Duro
Lisboa, 1875 – 1899

DOR SUPREMA

Onde quer que ponho os olhos contristados
– costumei-me a ver o mal em toda a parte –
não encontro nada que não vá magoar-te,
ó minh’alma cega, irmã dos entrevados.

Sexta-feira santa cheia de cuidados,
livro d’Ezequiel. Vontade de chorar-te...
E não ter um pranto, um só, para lavar-te
das manchas do fel, filhas de mil pecados!...

Ai do que não chora porque se esqueceu
como há de chamar as lágrimas aos olhos
na hora amargurada em que precisa delas!

Mas é bem mais triste aquele que olha o céu
em busca de Deus, que o livre dos abrolhos,
e só acha a luz das pálidas estrelas...

Fonte:
Sergio Faraco (org.) Livro dos sonetos: 1500-1900. Porto Alegre/RS: L&PM, 2016.

Rachel de Queiróz (Terra nova)


Diz que certa vez o duque de Windsor, em Paris, foi visitar a exposição que lá fazia Portinari e se interessou por comprar um quadro:

―  O senhor não terá alguma pintura de flores?

E Candinho, botando o seu olho azul e irônico no ex-rei:

―  Não senhor. Só tenho miséria.
*

Assim me sinto hoje em dia. Queria escrever uma história gentil, contando a adaptação de uma família pau-de-arara que deixou as asperezas da catinga nativa pelas grandezas de São Paulo. Mas não saem flores, só sai miséria.

Começa o caso com o embarque de trem no Quixadá, em procura do Crato, ponto final da linha de ônibus para São Paulo.

Mas passemos por alto essa viagem de quatrocentos e tantos quilômetros no trem superlotado, atrasado, descarrilado; a chegada ao Crato já tarde da noite, a procura de pensão, as crianças chorando, as trouxas perdidas, nem uma porta aberta onde se comprasse uma bolacha.

Passemos, ah passemos ainda mais por alto a viagem de ônibus, três mil e quatrocentos quilômetros através da Transnordestina e depois a Rio-Bahia e depois a Via Dutra. Tudo são dores e enjoo, calor e poeira, sacolejos e esperas de dias quando há um prego, sempre no maior desconforto, sem falar na saudade e no medo da mudança, que isso já nem são desconfortos, são metafísicas. E a gente queria contar uma história gentil.

Depois vem a chegada em São Paulo.

Foi Ribamar, o irmão, que numa loucura de generosidade mandou chamar a tribo toda, incluindo a mãe viúva, os irmãos casados, a mana solteira e os dois sobrinhos órfãos. Pagou as passagens, mas não os pôde esperar na estação. O ônibus não tem hora de chegada, quando muito tem um dia, e isso não contando os pregos. Felizmente o Ribamar teve a ideia de mandar em carta o número do telefone de um botequim de onde o poderiam chamar por favor na obra em que trabalhava.

Mas aí veio o problema de falar no telefone, coisa que ninguém da família sabia. E de onde telefonar? O Eliseu, o mais velho e mais expedito, teve a ideia de perguntar a um passante se ele sabia onde é que ficava aquele telefone. O paulista aí gozou a besteira do baiano, e o Eliseu foi se danando, porque para começo de conversa ele não é baiano, nunca teve parente baiano e até não gosta muito de baiano. Mas o paulista depois de gozar um pouco, mostrou a sua boa vontade e deu o telefonema, chamando o Ribamar. Que mandou a família esperar com paciência na rodoviária, enquanto ele tomava condução e os alcançava. Se acomodaram mal e mal pelos bancos da estação e ficaram esperando. Horas, horas. Cansados, com fome. E o frio? Frio aliás já vinha ocupando lugar importante na vida deles, penetrando os uniformes de brim dos homens, os vestidos delgados das mulheres, desde que haviam começado a escalar as altitudes de Minas Gerais. E agora ali na cidade, enquanto uma garoa fina começava a penetrar o ar escuro, o frio passava pelos panos de algodão como luz pelo vidro, furava a pele e ia morder os ossos.

Afinal apareceu o Ribamar ―  de óculos escuros, blusão de couro, quem visse dizia que era um aviador. Falando animado, mas sentia-se que estava um pouco tonto com aquele povaréu todo que lhe caía assim às costas, nove pessoas!

Como é que ia botar tudo no quartinho de aluguel que arranjara numa favela improvisada pros lados da Cantareira, por nome a Nova Bahia?

Aliás, segundo explicava um carioca lá residente, o povo só chama aquilo de favela é por ignorância. Porque favela, em linguagem do Rio, quer dizer morro, paisagem, arquitetura de passarinho e não aqueles barracos sujos entre a lama e o alagadiço. Favela é berço de samba, que o carioca dizia. Mas o pessoal deu para chamar favela a tudo que é acampamento de pobre e depois do diário da Carolina ficou por favela mesmo e pronto. Ninguém pode com literatura.

A tia da namorada do Ribamar arranjara-lhe um cartão de matrícula para a família na seção de empregos das Obras Sociais de São Jorge.

Mas caridade particular, quando é feita em escala muito larga, vira igual coisa de governo: se burocratiza. As moças da Obra têm muita boa vontade, fazem as cartas de recomendação solicitando emprego às firmas, mas não vão saber se as cartas são atendidas, não é mesmo?

Seria impossível acompanhar cada pobre. Ver se o bilhete é recebido. Se o hospital tem leito vago. Se há vaga de emprego.

Organiza-se uma imensa máquina para trabalhar pelo amor de Deus ― mas parece que Deus não gosta de máquinas. Ademais, os caminhos de Deus são tão difíceis. Quem faz o gesto já acha que fez muito. E acaba ficando tudo na formalidade da apresentação — depois se entrega a Deus. E parece que até Deus se cansa.

Fica o coitado andando de Pilatos a Herodes, com o cartãozinho da Obra. Quando os homens do emprego desenganam logo, ainda bem, mas quando ficam cozinhando com pouco fogo ― venha amanhã, venha depois, só passadas cinco horas, amanhã não que é sábado, segunda também não, pensando bem só na terça... E o pobre tomando condução pra lá e pra cá, e gastando sapato, e paciência, e esperança... Ai, só quem sente sabe.

No fim foram vendo que só podiam contar com eles mesmos, e como eram nove, não incluindo o Ribamar, era afinal bastante gente.

Quem primeiro se empregou foi mesmo o Eliseu. Numa construção. Imagine quem toda a vida foi vaqueiro, no costume de não carregar nem o próprio corpo, pois só andava montado, virar servente de pedreiro, com o mestre a toda hora gritando pela massa, e o pobre de chouto com a lata na cabeça. Já estava de moleira baixa de tanto carregar peso.

E ainda se dava por feliz porque sendo ele o primeiro a se empregar, foi a bem dizer também o único. Os outros ainda estão na mão. A Zuila se colocou de aprendiz num salão de manicure, mas sem salário. O Francisquinho está pensando em sentar praça para ter caderneta de serviço militar. Os pequenos precisam é de escola. A velha, quando arranja o quê, cozinha. E tudo comendo, vestindo, andando, gastando calçado e condução. E tirando de onde?

O Ribamar que o diga — já vendeu o blusão de couro, os óculos, e empenhou o relógio.

Ai, São Paulo é muito bom, mas cidade grande é fogo. E o Ceará tão longe! E ainda por cima ser tratado de baiano.
*

Desculpem. Mas eu não disse que só tinha miséria?

Fonte:
O Cruzeiro. RJ: 16 jun 1962

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Versejando 26

 

Varal de Trovas 468

 


Fernando Sabino (Ocasiões de ficar calado)


— Como vai indo seu marido, que há tanto tempo não vejo?

— Meu marido morreu há dois anos, o senhor não sabia?

Cumprida a primeira parte da gafe, saio impávido para a segunda:

— Que coisa terrível, eu não sabia! Me desculpe, mas andei viajando...

E não tendo mais o que dizer, repito para o cavalheiro que a acompanha:

— Terrível, não acha?

Mas ele não pensa assim:

— Não acho não: sou o atual marido dela.

A consciência de que a gafe em geral se compõe de duas partes distintas. Ficar sempre na primeira, jamais tentar consertar. Ao contrário da Loteria Federal, não insista, desista! Eis o que eu, empedernido praticante, tenho a aconselhar aos meus companheiros de infortúnio. A gafe é vertiginosa e se faz anteceder de uma espécie de aviso, antecipa-se na sensação de que caminhamos no ar, como num desenho animado:

— Como foi bom encontrar você! Eu já estava achando esta festa chatíssima. Vamos embora daqui?

— Não posso, sou a dona da casa.

Ou esta outra, mais comum ainda:

— Com aquela mulher ali eu não dormia nem de graça.

— Aquela mulher ali é a minha esposa.

Se o infeliz acrescentar que neste caso dormia sim, não estará apenas caindo de quatro: estará se precipitando no abismo da mais imperdoável inconveniência, que vem a ser a repetição literal de uma velha anedota.

São gafes tradicionais, decorrentes em geral das relações de parentesco ou dos encontros de circunstância, a que os mais insensatos como eu raramente escapam. Não há como resistir ao poder magnético dos assuntos traiçoeiros, que vão espalhando armadilhas a cada passo, e nos levam sempre a falar em corda justamente na casa do enforcado.

Se sabemos que a gafe é irreversível, por que tentamos teimosamente remendá-la, afundando-nos cada vez mais?

É que ela nem ao menos é sincera. Fôssemos autênticos e verazes na convivência, a gafe se desarmaria ao peso de sua própria legitimidade. E deixaria de ser gafe.

Foi essa, pelo menos, a solução encontrada por um amigo meu, vítima também dessa maldita sina, e que ontem me dizia ter-se conformado, passando a praticá-la deliberadamente.

— Você é parente dele? Que horror!

— Morreu? Meus parabéns.

— Não sei como você, tão simpática, pode ter um marido tão chato.

— Fui cair logo ao seu lado neste banquete, mas veja só que azar o meu.

— Aliás, pelo que eu soube, a senhora não é tão velha quanto parece.

— Não aguentei ler até o fim. Ah, foi o senhor que escreveu? E ainda tem coragem de confessar?

Com isso, ele passou a ser considerado homem do mais fino espírito — excêntrico, desconcertante, é verdade — mas de esmerada educação. Apesar de tudo, outro dia recebeu o troco que lhe era devido, funcionando desta vez como receptor de uma gafe, ao dizer a uma jovem, que está escrevendo um romance: a história de um mau-caráter. 
 
E ela, inocentemente:

— Autobiográfico?

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 4 –


A mão do bem que nos rege,
mostra-nos gestos de amor,
até na mão que protege
a inocência de uma flor!
= = = = = = = = = = =
Amor de mãe, que esplendor,
ó, que divino mister...
Deus pôs a essência do amor
no coração da mulher!
= = = = = = = = = = =
À noite, o que me conduz,
me acompanha e me rastreia,
é o tênue raio de luz
da solidão da candeia!
= = = = = = = = = = =
Cantas preso, canarinho
consolando a tua dor!
Eu também canto sozinho
preso às redomas do amor!
= = = = = = = = = = =
Contra o Sol, não há censura
e, ao bom pintor se assemelha,
quando pinta com ternura
a aurora, de cor vermelha!
= = = = = = = = = = =
Daquele amor tão risonho
que moldou nosso roteiro...
Guardo o derradeiro sonho
como se fosse o primeiro!
= = = = = = = = = = =
De volta à tapera antiga,
ouço uma voz que à distância,
era a mesma voz amiga
que eternizou minha infância!
= = = = = = = = = = =
Feliz, não dá passos vãos
a lua, era seu caminhar,
enquanto, entrelaça as mãos
na barba branca do mar!
= = = = = = = = = = =
Minha fronte encanecida,
já, pelo tempo, aos borralhos,
põe as auroras da vida
nos meus cabelos grisalhos!
= = = = = = = = = = =
Não há estação perdida
para quem no amor se esmera!
Quem ama o outono da vida,
vive a eterna primavera!
= = = = = = = = = = =
No aceno das horas mansas,
vejo na humilde casinha,
da infância, as ricas lembranças
da pobre mansão que eu tinha!
= = = = = = = = = = =
O amor, em seus embaraços,
e às vezes, com seus desvãos...
Entrelaçou nossos braços
e amordaçou nossas mãos!
= = = = = = = = = = =
O mar, de fatos e lendas
quando se zanga e se alteia,
se joga em lençóis de rendas
e espicha os braços na areia!
= = = = = = = = = = =
O poeta, em suas cantigas,
em noites calmas, dá provas
de esquecer queixas antigas,
cantando as mágoas mais novas!
= = = = = = = = = = =
O poeta e o passarinho,
são parecidos demais:
Quanto mais longe do ninho
mais cantam tristes seus ais!
= = = = = = = = = = =
O sino desperta o sono
da tarde que silencia,
enquanto a lua sem dono
enche a noite de poesia!
= = = = = = = = = = =
O tempo é roda fremente
num parque de diversões,
moendo os sonhos da gente
nessa roda de ilusões!
= = = = = = = = = = =
Que ingratidão tão mesquinha,
que ausência de amor e brilho,
viver a mãe tão sozinha
ao lado do próprio filho!
= = = = = = = = = = =
Quem contempla o amor, percebe
e, a todo instante, deduz...
Que, em tudo quanto recebe,
há uma centelha de luz!
= = = = = = = = = = =
Quem crê na fé, na alegria,
não torna seus sonhos vãos.
Pois, cada mão que nos guia,
tem digitais de outras mãos!
= = = = = = = = = = =
Se a cruz pesar mais, descreve
o que dela se deduz:
Que tudo quanto se deve,
Deus põe nos braços da cruz!
= = = = = = = = = = =
Se for falta de agasalho,
ou porque não tenho escolha,
a escolha do meu trabalho
se agasalha em qualquer folha!
= = = = = = = = = = =
Se o amor é cego e reclama,
reclama sem sentir dor;
quando um cego acende a chama,
é um feliz cego de amor!
= = = = = = = = = = =
Tuas juras, sempre vãs,
compromissos de ninguém,
são velhas juras pagãs
ferindo o orgulho de alguém!
= = = = = = = = = = =
Vejo que teus velhos braços
mantém a mesma medida,
com que mediste os meus passos
na primavera da vida!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Monteiro Lobato (Toque outra)


— ORA TOQUE, Sinhazinha, toque!

— Mas eu não sei...

— Não faz mal, toque assim mesmo, não se faça de rogada. Aquela valsinha...

A pálida menina geme novos luxinhos faceiros, torce os pingentes da almofada e por fim levanta-se, toda dengues, a desculpar-se.

— Vou errar tudo, não tenho estudado há muitos dias, estou esquecida...

— Não faz mal, toque!...

Sinhazinha senta-se ao piano, folheia a maçaroca de músicas e preguiçosamente abre diante de si uma valsa de Aurélio Cavalcanti. E toca: blem, blem, belelém...

A sala então, que só por aquilo esperava, afunda na conversa. O barulho do piano, abafando o tom geral da palestra, dá azo à delícia dos duos, em que cada um pega de cochicho com quem mais o atende. As matronas, donas de casa, caem no assunto dileto — os criados!

— Ai, os criados! Que gente, prima! Que pestes! Não fazem “isto” sem uma pessoa estar em cima; se vão a compras, roubam no troco... E não se lhes diga uma palavrinha! Pedem a conta e dizem desaforos, os demônios...

As meninas rodeiam o moço, que impa como um galo e desdobra o farnel da banalidade tão cara às mulheres; todas ouvem-no atentas, bebem-lhe os ditos, riem das suas pilhérias, acham-no “levado”.

Titinha diz, sorvendo-o com os olhos:

— Este seu Raul é mesmo da pele!

Num desvão da janela cochicha-se um namoro; a das Dores conta à do Carmo que não gosta mais do Luisinho por umas certas coisas que viu no último baile. Do Carmo comenta, sentenciosa:

— Os homens! Os homens!...

Duas em outro canto riem perdidamente, em casquinadas argentinas. Nisto Sinhazinha acaba a valsa. A sala dá pela coisa, interrompe a tagarelice e pede mais:

— Muito bem, Sinhazinha, muito bem! Toque outra!...

Sinhazinha ataca uma scottish.

A sala retoma os temas interrompidos.

— Mas... como eu ia contando...

Impossível negar as vantagens sociais da música.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades mortas. s/d.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) – 13. Conto – O Revólver da Paixão

Foco Narrativo

Narrado em 1ª pessoa.
Uso constante do modo imperativo.
 
Espaço
A alma de uma mulher, com sentimentos apaixonados e contraditórios.

Personagens
Narradora – mulher apaixonada e o homem que a deixou. Personagem relata em uma carta seu amor doentio – dominadora. Ela lhe pede que volte e reconhece que não é capaz de controlar seu ciúme.

O conto trata de uma carta em que uma mulher comunica seus sentimentos, ora ameaçadores, ora ternos, contraditórios sempre. Desculpa-se, faz exigências para de novo desculpar-se, de novo exigir. Ela se comunica através da dor que sente de ter sido preterida, de ter perdido aquele a quem ainda ama e sem o qual julga não poder viver.

Conforme o sociólogo italiano Francesco Alberoni (1986), “o enamoramento é um processo no qual a outra pessoa, aquela que encontramos e que nos correspondeu, se nos impõe como o objeto pleno do desejo”, e é esse processo que ocorre com a protagonista do conto “O revólver da paixão”, que é obcecada pelo homem que a abandona. Ainda conforme Alberoni, “a relação de enamoramento é um processo, um achar e perder. A pessoa amada é, ao mesmo tempo, constante e precária, única e diversa, ser empírico e ser ideal”.

De acordo com Roland Barthes (2003), a carta de amor é ao mesmo tempo vazia (codificada) e expressiva (carregada da vontade de significar o desejo). Esse “conto-carta”, que se encaixa nessa descrição de Barthes, começa da seguinte forma: “Eu sei que errei, mas não me deixe agora. Eu protestei contra o que me parecia sua culpa”.

Percebe-se, que ela está ressentida e não aceita o término do relacionamento, não aceita que o homem viva longe de sua presença, de seu amor. Para pedir perdão e se queixar, ela se reporta diretamente ao sujeito amado – talvez por isso a escolha, por parte de Nélida, do gênero carta, que permite a genuína expressão em primeira pessoa, a expressão da voz do sujeito enamorado, que nesse caso é a mulher.

Ao afirmar que se perdeu nas palavras que o homem lhe disse, a narradora também atribui a ele a responsabilidade por seu estado: ela não apenas se enamorou, sozinha, mas foi conquistada; e por isso o amado é, para a mulher, covarde e culpável, por despertar seu amor e abandoná-la. Nesse conto, no qual o amor cortês também se deixa entrever, é a mulher quem assume o papel de vassalo no relacionamento: é quem se submete ao objeto amado, quem está sedenta de (mais) dependência . Assim, a narradora-personagem de “O revólver da paixão” sente medo de perder o homem a quem ama. Isso seria, para ela, a morte:

“A verdade é que a tua perda me ameaça. A tua perda é uma sentença de morte. Morte que não suporto, não permito. Teu dever é amar-me, é continuar na minha cama, na minha vida, na minha memória. Na memória que projeta teus mil retratos tirados ao longo da vida que nos atou com cordas e arame”.

Os sentimentos da protagonista em relação ao amado são, como podemos perceber, paradoxais, tendo em vista que ela o ama ao mesmo tempo em que o odeia e sente raiva dele, deseja sua morte ao mesmo tempo em que tem medo de perder seu amor, além de afirmar que não quer vê-lo, enquanto anseia por sua presença. Esses sentimentos paradoxais são próprios do desejo e do sentimento amorosos, que nos impelem a idealizar o outro e a querê-lo mais que tudo, mesmo sabendo que ele é humano e falho, como nós. Por mais que nos decepcionemos com o ser amado, o amor e o prazer de amar nos levam a ansiar por ele, a perdoar e esquecer os erros e ofensas cometidas contra nós, contanto que essa pessoa esteja disposta a continuar conosco e retribuir o que sentimos por ela. Por isso a narradora pede que o homem volte:

Ah, amado, volte depressa, antes que outras cartas te persigam, e fique a vida difícil para nós

Logo, perto ou longe do ser amado, o sujeito amoroso nunca está completamente satisfeito ou pleno. Ainda assim, a narradora-personagem continua a pedir o retorno do homem:

Volte, porque te espero. E se voltares, que fiques sempre comigo. Não prometo comportar-me a ponto de que vivas o amor com suavidade. [...] Amanhã te escreverei, de novo capitulo ante o meu amor.

Ela admite, então, que cede, transige ante seu amor, pois não tem forças para lutar contra esse sentimento. Como esse amor é mais forte do que ela, não há nada que possa fazer para apagá-lo ou mitigá-lo, por isso a narradora-personagem para de escrever, para que possa apenas sentir o amor, em toda a sua intensidade. Talvez o que ela ame, de fato, não seja o homem, mas o sentimento que ele causa nela, que faz com que se sinta viva, uma vez que o amor pode ser também uma expressão da vida, um modo de sentir e estar no mundo.

Fontes:
– Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013
– Joyce Glenda Barros Amorim. Amor, Poder e Violência em Contos de Nélida Piñon. Dissertação de Mestrado. 88 p. Belo Horizonte:UFMG, 2015. (excertos)

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 25 –

 


Mario Quintana em Prosa e Verso 13


5005618942

Não existe no mundo tanta gente como o número de ordem que me deram no cartão de identidade, que não vou te mostrar porque não poderias lê-lo antes de o ter dividido da direita para a esquerda em grupos de três, para depois o pronunciares cuidadosamente da esquerda para a direita. Sei que o mesmo acontece contigo, mas que te importa, que nos importa isso — antes que um dia nos identifiquem a ferro em brasa, como fazem os estancieiros com o seu gado amado?

Esse número, de quintilhões ou quatrilhões, não me lembro mais, me faz recordar que venho desde o princípio do mundo, lá do fundo das cavernas, depois de pintar nas suas paredes, com uma habilidade hoje perdida, aqueles animais que vejo nos álbuns, milagre de movimento e síntese. Agora sou analítico, expresso-me em símbolos abstratos e preciso da colaboração do leitor para que ele “veja” as minhas imagens escritas.

Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas. Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha, nem desconfia que se acha conosco desde o início das eras. Pensa que está somente afogando os problemas dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar inquietação do mundo!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

AH! ESSAS PRECAUÇÕES...

Para desespero de seus parentes, o velho rei Mitridates, como todo mundo sabe, conseguiu tornar-se imune a todos os venenos... até que um bom tijolaço na cabeça liquidou o assunto.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

HISTÓRIA URBANA

Dona Glorinha lê o convite de enterro de João, cujo sobrenome não declaro aqui, para evitar essas divertidas e constrangedoras explicações e declarações de nome igual, mera coincidência etc. Dona Glorinha conhecera João “no seu tempo” de ambos e depois nunca mais o tinha visto — pois constitui um dos mistérios labirínticos das cidades grandes isso de conhecidos e namorados se perderem definitivamente de vista. Dona Glorinha, pensando isto mesmo com outras palavras, vai ao velório de João, encaminha-se direto a ele, ergue-lhe o lenço da face, exclama: “Mas como ele está bem conservado!”

Fonte:
Mário Quintana. A Vaca e o Hipogrifo. Publicado em 1977, pela editora Garatuja (Porto Alegre).

Álvares de Azevedo (Poemas Escolhidos) – 2 –

I


Para cantar de amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento;
Ouvi pois o meu fúnebre lamento;
Se é, que de compaixão sois animados:

Já vós vistes, que aos ecos magoados
Do trácio Orfeu parava o mesmo vento;
Da lira de Anfião ao doce acento
Se viram os rochedos abalados.        

Bem sei, que de outros gênios o Destino,
Para cingir de Apolo a verde rama,
Lhes influiu na lira estro divino:

O canto, pois, que a minha voz derrama,
Porque ao menos o entoa um peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama.                
* * * * * * * * * * * * * * * *  

II

Leia a posteridade, ó pátrio Rio,
Em meus versos teu nome celebrado;
Por que vejas uma hora despertado
O sono vil do esquecimento frio:

Não vês nas tuas margens o sombrio,
Fresco assento de um álamo copado;
Não vês ninfa cantar, pastar o gado
Na tarde clara do calmoso estio.

Turvo banhando as pálidas areias
Nas porções do riquíssimo tesouro
O vasto campo da ambição recreias.

Que de seus raios o planeta louro
Enriquecendo o influxo em tuas veias,
Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

III

Pastores, que levais ao monte o gado,
Vêde lá como andais por essa serra;
Que para dar contágio a toda a terra,
Basta ver se o meu rosto magoado:

Eu ando (vós me vêdes) tão pesado;
E a pastora infiel, que me faz guerra,
É a mesma, que em seu semblante encerra
A causa de um martírio tão cansado.

Se a quereis conhecer, vinde comigo,
Vereis a formosura, que eu adoro;
Mas não; tanto não sou vosso inimigo:

Deixai, não a vejais; eu vo-lo imploro;
Que se seguir quiserdes, o que eu sigo,
Chorareis, ó pastores, o que eu choro.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

IV

Sou pastor; não te nego; os meus montados
São esses, que aí vês; vivo contente
Ao trazer entre a relva florescente
A doce companhia dos meus gados;

Ali me ouvem os troncos namorados,
Em que se transformou a antiga gente;
Qualquer deles o seu estrago sente;
Como eu sinto também os meus cuidados.

Vós, ó troncos, (lhes digo) que algum dia
Firmes vos contemplastes, e seguros
Nos braços de uma bela companhia;

Consolai-vos comigo, ó troncos duros;
Que eu alegre algum tempo assim me via;
E hoje os tratos de Amor choro perjuros.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

V

Se sou pobre pastor, se não governo
Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;
Se em frio, calma, e chuvas inclementes
Passo o verão, outono, estio, inverno;

Nem por isso trocara o abrigo terno
Desta choça, em que vivo, coas enchentes
Dessa grande fortuna: assaz presentes
Tenho as paixões desse tormento eterno.

Adorar as traições, amar o engano,
Ouvir dos lastimosos o gemido,
Passar aflito o dia, o mês, e o ano;

Seja embora prazer; que a meu ouvido
Soa melhor a voz do desengano,
Que da torpe lisonja o infame ruído.

Fonte:
Álvares de Azevedo. Sonetos. s/d.

Júlia Lopes de Almeida (A Boa Lua)


À Maria Clara da Cunha Santos


O milho caía em granulações de ouro, por entre os dedos rugosos, curtos, cor de fumo seco, do velho Samé.

Os bisnetos riam-se às escâncaras, acompanhando o andar vacilante do bisavô, que mal arrastava os pés doentes sobre os laivos azinhavrados do chão úmido. Chovera, e o campo abria-se por ali fora, nu, só com uns velhos tocos de madeira podre, onde zumbiam abelhas e despontavam róseas orelhas-de-pau pra lhes ouvir a música.

O tio Samé fizera cem anos pelo S. Miguel; dera de enfraquecer, pelos últimos tempos; estava a acabar todos os dias.

Nos seus olhinhos garços já havia a névoa da idiotia, a ausência da alma, que se lhe desprendia do corpo aos pedaços.

Caíam-lhe falripas brancas, ásperas e lisas, como pálida moldura às carquilhas do seu rostinho sumido, de maxilas salientes e pele azeitonada. Todo ele era miúdo e enrugado. O pobre tinha perdido a fé e a memória das coisas, menos do tempo das sementeiras e das colheitas. Contava as luas, sabia de cor o calendário. Não atinava com os nomes dos netos nem da criançada. Confundia todos: já nem sabia o número dos filhos nem a graça da sua defunta mulher, que o fora por longuíssimos anos, nem mesmo saberia responder pelo seu nome – Samuel, que lhe valera o doce apelido de Samé; contudo, aconselhava do seu canto quando se devia cortar a mandioca, bater o arroz, colher o feijão ou a batata, e o seu aviso era ouvido como de sábio, seguido como de Deus!

Inda assim, se morria alguma criança em casa, a mãe, desesperada, ressumava rancor contra esse velho, teimoso em viver e que bem poderia ter-se ido embora, em lugar do filhinho inocente. E nesses dias a comida era-lhe atirada como a um cão intruso, sem direito ao carinho de ninguém.

Com cem anos e cinco meses, ainda o Samé quis ajudar numa sementeira de milho. A lua era boa, grossas carradas haveriam de ranger por ali, atulhadas de espigas maduras, secas, aos montões.

Os netos enchiam a roça de barulho; uma gralhada! Ele media os passos, silencioso; de tempos a tempos entreabria os dedos e os grãos de milho caíam, um a um, como contas de um rosário de ouro partido por um santinho velho, das antigas lendas.

E foi andando assim, devagar, devagar, com as pernas em tesoura, os pés cada vez mais inchados, o olhar embebido no sol, que abria no fundo horizonte um enorme meio círculo vermelho.

Os netos cantavam alto, os bisnetos riam ao longe, ruidosamente; e aquela bulha era para ele como a do vento que passasse, arrastando folhas mortas, varrendo caminhos, abrindo ramadas, carregando sementes e fecundando a terra. Sorria o velhinho para o sol poente como a um amigo velho de quem se despedisse com um afago, quando os pés já dormentes lhe negaram outras passadas e ele caiu para a frente, sobre o peito chato.

Não lhe doeu a queda; a terra estava fofa, a carne amortecida; teve uma tontura, sumiu-se-lhe tudo da lembrança; mas a pouco e pouco voltou-lhe a ação e procurou levantar-se, tateando um velho tronco negro, cavernoso, que ali estava em frente, roído de bichos, mal ligado à terra.

Tio Samé não conseguiu mover-se, mas reparou que irrompia daquela ruína um galhito verde e tenro, macio ao tato, doce à vista, e quedou-se a olhá-lo espantado, com a boca aberta, a baba em fio, as falripas brancas caídas sobre as largas orelhas.

Julgara aquela árvore morta havia muito, e num relance fugitivo invejou as coisas que duram longo tempo, ou que não morrem nunca, como aquele sol vermelho sempre quente e aquele tronco que nas suas fibras despedaçadas ainda encontrava seiva para novas gerações! E o tio Samé beijou a terra, o seu único amor verdadeiro, beijou-a uma, duas, muitas vezes, com os braços abertos, as unhas fincadas no chão.

– Bisavô morreu! gritaram de longe; e vieram buscá-lo ao colo, como a uma criança.

Levaram-no para dentro, afirmando que ele estava no fim. Uma neta fez-lhe a cama de limpo, outra vazou-lhe o caldo pela boca, alagando-lhe o peito, com impaciência. A nora acendeu o oratório e baixou da parede o crucifixo de ébano.

Samé passeava os seus olhinhos de cem anos por tudo, como a perguntar – para quê?

Estavam feitos os preparativos para a morte.

Quando ela entrasse encontraria chamas de velas, toalhas de crivo, ramos de flores, imagens de santos e uma alma abençoada pelo padre, que um dos bisnetos fora chamar à pressa.

O padre veio e, perguntando ao Samuel pelos seus pecados, ouviu em resposta que as sementes germinariam depressa, porque a terra estava úmida e o sol ardente...

Riram-se uns, sorriam outros. O padre afastou-os e, tornando à cabeceira do velhinho, disse-lhe:

– Todo homem vive sujeito à tentação do inimigo; confessa sem pejo os teus pecados!

Samuel respondeu, sorrindo, que a lua ia ser propícia: os pescadores fariam boas pescas, os agricultores ótimas colheitas. A estação seria favorável aos pobres.

Caiu a absolvição sobre a cabeça branca do velho.

Filhos e netos rezaram uma ladainha arrastada e tristonha. Samé ouvia aquele ruído sem determinar-lhe o sentido, como se fora o de vento passando à noite fora das portas de sua casinha rústica. Depois da ladainha a ceia, depois da ceia o sono – todos adormeceram; só o tio Samé ficou abrindo para a lamparina os seus olhinhos de cem anos e foi assim que ele viu uma sombra esguia, longa, desenrolar-se das traves do teto e descer devagar, devagar, pela parede fronteira, sem barulho, com a cautela de um assassino...

Tio Samé tremeu. Uma das netas dormia ali mesmo, no chão, com o seio nu, os braços nus, o queixo erguido, a garganta bem iluminada. A cobra desceu e sumiu-se entre os lençóis, sem nem mesmo fazer rumor na esteira... Samé abanava os braços, mudo, inerte e espavorido, até que a rapariga, sacudida por uma convulsão tremenda, gritou alto, e o réptil fugiu, cascalhando, pela parede acima...

Na manhã seguinte morria a neta do velho Samé; mas ele ficou ainda, movendo os dedos trêmulos sobre o lençol branco, no gesto de semear a terra e aproveitar a boa lua…

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) – 12. Conto – Disse um Campônio à Sua Amada

Ambiente

Interior de um coração perdidamente apaixonado.

Foco Narrativo
Narrado em 1ª pessoa

Personagens

Narrador – vivencia uma paixão incontrolável... que o leva a ser capaz de verdadeiros desatinos... como ofertar o próprio coração... ele era uma pedra mas, perto dela, perde a força, a resistência.
Amada – não corresponde com a mesma intensidade – está longe dele.
Ana – uma intermediária entre os 2

O título do texto é o primeiro verso de uma canção antiga de Vicente Celestino (Coração Materno), que foi gravada mais recentemente por Caetano Veloso. Como na letra da canção, trata de um amor não correspondido, aqui expresso através de carta. Trata-se de uma paixão tão Intensa que ele não consegue dominar, foge-lhe do controle. Não diminui apesar da indiferença dela, que é como uma pedra, um rochedo difícil de ser escalado. Como na canção, ele é capaz de fazer o impossível para conquistar seu amor, como fazer-se pássaro, navegar, partir-se em pedaços.

Disse um Campônio à sua amada, é um conto que poderia ser definido como uma bela declaração de amor. Um homem do campo transmite a delicadeza dos seus sentimentos à mulher amada:  

Assim, eu faço discreto pedido, não me arraste contigo quando te  fores. Ou não me aceites, ainda que te peça para seguir o teu caminho. Não quero despojar-me de um coração que te ofereci com tanta opulência. (...) Do teu camponês que se despede sem saber que é para sempre.

Apesar da ausência de diálogos, a narrativa não é monótona pois cada personagem apresenta seus monólogos e o silêncio é preenchido pelas reflexões do próprio leitor.


Fonte:
Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 467

 


Leon Eliachar (Aulas práticas para alunos teóricos)


A humanidade divide o seu tempo em duas partes: guerra e paz. Durante a paz, vive discutindo a guerra e durante a guerra vive implorando a paz.

A  guerra foi inventada por um sujeito que morreu na guerra. A paz ainda não foi inventada.

Há vários tipos de guerra: a guerra fria, a guerra quente,  a guerra morna, a guerra requentada e a guerra propriamente dita: dessa  ninguém escapa, porque todo mundo é convocado antes mesmo de começar a guerra.

Antigamente, a guerra era feita a pé: quando os soldados chegavam no país inimigo a guerra já tinha acabado. Hoje, a guerra é mais ligeira: basta apertar um botão que ela começa e acaba ao mesmo tempo - e quando acaba não se encontra nem o botão.

Durante a paz, os homens se preparam para a guerra, construindo tanques, aviões, submarinos, foguetes, táxis e ônibus elétricos.

Quem foge da guerra se chama desertor, quem fica se chama herói. O desertor foge da guerra pra não morrer nas mãos do inimigo, mas acaba morrendo nas mãos do amigo: é fuzilado. O fuzilamento é um processo de matar o sujeito que escapa da guerra - ao invés de morrer distraído, morre prevenido.

Antes de ir pra guerra, os médicos submetem os soldados a um exame físico completo: quem tiver boa saúde, pode ir e morrer tranquilo. Quando o homem se matricula na guerra, recebe um uniforme: quando entra na guerra, pinta o uniforme todinho pra ninguém ver que ele está de uniforme.

Existem guerras famosas: a de 14, porque sobraram catorze; a dos Cem Anos, que quando acabou só tinha velhinho, e a de 39 - que todo mundo pensa que acabou.

Antigamente, se fazia a guerra com baioneta calada, mas isso foi no tempo do cinema mudo. Hoje, a baioneta não só fala mas também canta - como se pode ver nos musicais de Hollywood.

Muitos combatentes são considerados malucos porque voltam pra casa com psicose de guerra, mas os psiquiatras não se preocupam a mínima com a psicose de paz - que é muito pior. E por incrível que pareça, o soldado mais conhecido da guerra é o soldado desconhecido.

Fonte:
Leon Eliachar. O homem ao zero. Publicado em 1967.

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 6 –


Antônio Sardinha
Monforte/Alentejo, 1888 – 1925, Elvas/Alentejo

VESPERAL

Se eu te pintasse, posta na tardinha,
pintava-te num fundo cor de olaia,
na mão suspensa, nessa mão que é minha,
o lenço fino acompanhando a saia!

Vejo-te assim, ó asa de andorinha,
em ar de infanta que perdeu a aia,
envolta numa luz que te acarinha,
na luz que desfalece e que desmaia!

Com teu encanto os dias me adamasques,
linda menina ingênua de Velásquez
a flutuar num mar de seda e renda.

Deixa cair dos lábios de medronho
a perfumada voz do nosso sonho,
mas tão baixinho que só eu entenda!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Fernando Pessoa
Lisboa, 1888 – 1935

QUANDO OLHO PARA MIM...


Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
que me extravio às vezes ao sair
das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
pertencem ao meu modo de existir,
e eu nunca sei como hei de concluir
as sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
se na verdade sinto o que sinto. Eu
serei tal qual pareço em mim? Serei

tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Florbela Espanca
Vila Viçosa/Alentejo, 1894 –  1930, Matosinhos/Douro

AMAR

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
mais este e aquele, o outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disse que se pode amar alguém
durante a vida inteira é porque mente.

Há uma primavera em cada vida:
é preciso cantá-la assim florida,
pois se Deus nos deu voz foi pra cantar.

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
que seja a minha noite uma alvorada,
que me saiba perder... pra me encontrar...
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Marta de Mesquita da Câmara
Lisboa?, 1894 – ????

CONTRASENSO

Oh! meu amor, escuta, estou aqui.
Pois o teu coração bem me conhece:
eu sou aquela voz que, em tanta prece,
endoideceu, chorou, gemeu por ti!

Sou eu, sou eu que ainda não morri
– nem a morte me quer, ao que parece –
e vinha renovar, se inda pudesse,
as horas dolorosas que vivi.

Oh! que insensato e louco é quem se ilude!
Quis fugir, esquecer-te, mas não pude...
Vê lá do que os teus olhos são capazes!

Deitando a vista pelo mundo além,
desisto de encontrar na vida um bem
que valha todo o mal que tu me fazes!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Nunes Claro
Lisboa, 1878 – 1949

SONETO

Vieste tarde, meu amor. Começa
em mim caindo a neve devagar...
Morre o sol; o outono vem depressa,
e o inverno, finalmente, há de chegar.

E se hoje andamos juntos, na promessa
de caminharmos toda a vida a par,
daqui a pouco o teu amor tem pressa
e o meu, daqui a pouco, há de cansar.

Dentro em breve, por trás das velhas portas,
dando um ao outro só palavras mortas
que rolam mudas sobre nossas vidas,

ouviremos, nas noites desoladas,
tu, a canção das vozes desejadas,
eu, o chorar das vozes esquecidas.

Fonte:
Sergio Faraco (org.) Livro dos sonetos: 1500-1900. Porto Alegre/RS: L&PM, 2016.

Dílson Catarino (Como uma vírgula acabou com um namoro no dia dos namorados)


Conta-se que, em Palmeirinha do Vale, cidade de dezessete mil viventes, que se situa perto de Santana do Arrebol do Oeste, havia uma professora de português, extremamente rígida, de nome Austeresa de Jesus. Ela era de tal modo rigorosa para com os alunos que estes temiam encontrá-la mesmo no dia a dia, na praça central, na mercearia, na farmácia.

Dizem que ela interpelava seus pequenos educandos, estivessem onde estivessem, sobre as mais variadas regras gramaticais. Ai de quem não soubesse a resposta: ela sacava seu caderninho rosa, anotava o nome da vítima, a pergunta que lhe fizera, a resposta dada –ou a falta dela– e o quanto valia relativamente à nota escolar.

Dependendo do grau de dificuldade da pergunta, ela diminuía 0,1, 0,2 ou 0,5 da nota que o aluno tirasse na prova seguinte. Era um suplício para as pobres crianças palmeirinhenses.

Quando Austeresa era jovem, enamorou-se de um belo rapaz, também professor de português, de nome Telos Alonso. Ele, porém, não tinha a mesma capacidade intelectiva dela nem a mesma habilidade em sala de aula nem a mesma rigidez. Era um moleirão a bem dizer, que nem gostava muito de estudos aprofundados. As maldizentes até comentavam que ele não era homem para uma mulher como Austezinha, como a chamavam carinhosamente.

O namoro entre eles durou exatamente onze meses e vinte e sete dias. O estopim para o término do relacionamento foi um cartão que ele lhe mandara no dia dos namorados em que escrevera “Para a minha namorada Austereza de Jesus”. Ao ler esses dizeres, quase teve uma síncope; chegou a perder o juízo. Pegou de uma caneta e imediatamente escreveu-lhe uma pequena carta, em que dizia:

Telos Alonso, é de conhecimento geral em Palmeirinha que tolero os maiores sofrimentos, que suporto as maiores provações. É, no entanto, também comentário corrente que há duas situações que jamais enfrentarei: traição e erro gramatical. E você, meu ex-amado, acabou de cometer ambos: você, professor de português, sabe muito bem que os nomes próprios femininos formados pela posposição do sufixo -esa ao radical se escrevem com S, não com Z.

Como meu namorado há quase um ano ainda erra meu nome, trocando letras? Não me importo tanto pelo erro de meu nome, mas importo-me –e muito– com o trocar letras. Poderia ter-me chamado de Austerise; não me atenazaria tanto, pois teria usado as letras adequadas: nomes femininos terminados em -ise se escrevem com S, como Denise e Anelise; mas ignorar que se escrevem com -ês e -esa nomes de pessoas, como Inês, Teresa e o meu, logicamente, Austeresa, adjetivos pátrios, como português e portuguesa, e títulos sociais ou nobiliárquicos, como camponês e camponesa, marquês e marquesa e ainda princesa, a maneira como me tratava, é demais para mim.

Fico agora a pensar: cada vez que me chamava de princesa, sua mente produzia princeza? Não. É demais para mim. Não suporto tal provação. E a traição? Como a descobri? Você mesmo se delatou: ‘…minha namorada Austereza’. Assim escreveu você; sem vírgula. Assim escolheu me mostrar que tem outra namorada. Não teve coragem de me contar pessoalmente, contou-me por subterfúgio, e eu entendi.

Ao não colocar vírgula entre meu nome e o substantivo que ele especifica, mostrou-me que não sou a única. Se o fosse, ter-me-ia escrito ‘…minha namorada, Austeresa’, com vírgula. Muito perspicaz foi você, dar-me a conhecer uma situação por meios gramaticais: substantivo próprio que especifica substantivo comum, sem vírgula entre eles, restringe, ou seja, há mais de um: ‘Professora Austeresa’, sem vírgula, pois não sou a única professora, há muitas; mas substantivo próprio que especifica substantivo comum, com vírgula entre eles, explica, ou seja, só há um: ‘…minha namorada, Austeresa’, com vírgula; eu seria a única, mas não o sou; sei-o agora.

Aliás, nem me importo mais com o namoro. Mesmo não havendo a traição, não quero mais tê-lo como namorado, pois dois erros de português em uma única frase cometidos por um ‘professor de português’ é demais para mim. Adeus.


Fonte:
Língua Portuguesa