sábado, 12 de fevereiro de 2011

Carlos Alberto de Assis Cavalcanti (Livro de Trovas)


Tinha viúva demais
no velório do bacana,
todas choravam iguais:
enganaste, seu sacana!

Os moradores do além
não causam mal aos de cá,
mas os que moram aquém
é que nos mandam pra lá.

Discursava no plenário,
se dizendo popular,
mas na hora do salário,
só pensava em se aumentar.

Se antigamente era a mão
que o noivo à noiva pedia,
agora os dois, de antemão,
já nem mais esperam o dia...

Há quem diga que a mentira
tem pernas curtas pra andar,
mas o dono dela estira
as suas para ajudar.

Há quem chore por defunto
bem na beira do caixão,
mas ninguém quer ficar junto
do finado sob o chão.

No domingo, bem contrito,
comunga da eucaristia;
na segunda, bem aflito,
comunga da carestia.

No passado, bem remoto,
havia a mata e o primata;
no presente, se bem noto,
nem primata, nem a mata.

Logo se fez um tumulto
na prova de Português,
achar um sujeito oculto.
pois aluno quer de vez

De que adianta tua cobiça,
teu rasante olhar de abutre,
se há de ser também carniça
essa carne que te nutre.

Se dizia o mais temido
lá no morro do presunto,
sendo assim foi promovido
de valente pra defunto.

Quando o homem é o predador
das belezas naturais,
não respeita nem a dor
que provoca aos animais.

Tão radical se mantinha
quando entrava em discussão,
que nem ele mesmo tinha
pra peleja a solução.

Era um deputado obeso,
mesmo estando em exercício,
tinha um salário de peso
pra tão pouco sacrifício.

Fontes:
UBT Nacional
Curriculo Lattes

Carlos Drummond de Andrade (Poesias Avulsas)


A HORA DO CANSAÇO

As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos, por um outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho de eterno fica esse gosto ocre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.

AMAR-AMARO

porque amou por que amou
se sabia
p r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o s
ternos ou desesperados
nesse museu do pardo indiferente
me diga: mas por que
amar sofrer talvez como se morre
de varíola voluntária vágula evidente?

ah PORQUE AMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos ecos
lúgubres de você mesm(o,a)
irm(ã,o) retrato espetáculo por que amou?

se era para
ou era por
como se entretanto todavia
toda via mas toda vida
é indignação do achado e aguda espotejação
da carne do conhecimento, ora veja

permita cavalheir(o,a)
amig(o,a) me releve
este malestar
cantarino escarninho piedoso
este querer consolar sem muita convicção
o que é inconsolável de ofício
a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima
a vida também
tudo também
mas o amor car(o,a) colega este não consola nunca de nuncarás.

O AMOR BATE NA AORTA

Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não posso compreender...

NÃO SE MATE

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, pra quê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que não amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia.
Joaquim se suicidou e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

DENTADURAS DUPLAS

Dentaduras duplas!
Inda não sou bem velho
para merecer-vos...
Há que contentar-me
com uma ponte móvel
e esparsas coroas.
(Coroas sem reino,
os reinos protéticos
de onde proviestes
quando produzirão
a tripla dentadura,
dentadura múltipla,
a serra mecânica,
sempre desejada,
jamais possuída,
que acabará
com o tédio da boca,
a boca que beija,
a boca romântica? ... )

Resovin! Helocite!
Nomes de países?
Fantasmas femininos?
Nunca: dentaduras,
engenhos modernos,
práticos, higiênicos,
a vida habitável:
a boca mordendo,
os delirantes lábios
apenas entreabertos
num sorriso técnico
e a língua especiosa
através dos dentes
buscando outra língua,
afinal sossegada...
A serra mecânica
não tritura amor.
E todos os dentes
extraídos sem dor.
E a boca liberta
das funções poético-
sofístico-dramáticas
de que rezam filmes
e velhos autores.

Dentaduras duplas:
dai-me enfim a calma
que Bilac não teve
para envelhecer.
Desfibrarei convosco
doces alimentos,
serei casto, sóbrio,
não vos aplicando
na deleitação convulsa
de uma carne triste
em que tantas vezes
me eu perdi.

Largas dentaduras,
vosso riso largo
me consolará
não sei quantas fomes
ferozes, secretas
no fundo de mim.
Não sei quantas fomes
jamais compensadas.
Dentaduras alvas,
antes amarelas
e por que não cromadas
e por que não de âmbar?
de âmbar! de âmbar!
férricas dentaduras,
admiráveis presas,
mastigando lestas
e indiferentes
a carne da vida!

A MÃO SUJA

Minha mão está suja.
Preciso cortá-la.
Não adianta lavar.
A água está podre.
Nem ensaboar.
O sabão é ruim.
A mão está suja,
suja há muitos anos.

A princípio oculta
no bolso da calça,
quem o saberia?
Gente me chamava
na ponta do gesto.
Eu seguia, duro.
A mão escondida
no corpo espalhava
seu escuro rastro.

E vi que era igual
usá-la ou guardá-la.
O nojo era um só.

Ai, quantas noites
no fundo de casa
lavei essa mão,
poli-a, escovei-a.
Cristal ou diamante,
por maior contraste,
quisera torná-la,
ou mesmo, por fim,
uma simples mão branca,
não limpa de homem,
que se pode pegar
e levar à boca
ou prender à nossa
num desses momentos
em que dois se confessam
sem dizer palavra...
A mão incurável
abre dedos sujos.

Eu era um sujo vil,
não sujo de terra,
sujo de carvão,
casca de ferida,
suor na camisa
de quem trabalhou.
Era um triste sujo
feito de doença
e de mortal desgosto
na pele enfarada.
Não era sujo preto
- o preto tão puro
numa coisa branca.
Era sujo pardo,
pardo, tardo, cardo.

Inútil reter
a ignóbil mão suja
posta sobre a mesa.
Depressa, cortá-la,
fazê-la em pedaços
e jogá-la ao mar!
Com o tempo, a esperança
e seus maquinismos,
outra mão virá
pura - transparente -
colar-se a meu braço.

A. A. de Assis (60 Trovas de Saudade)


01
Curvada ao peso da idade,
a vovó serena e bela
distrai o tempo e a saudade
entre o novelo e a novela...
A. A. DE ASSIS

02
Saudade é tarde chorando
um tempo em que foi aurora,
ao ver a noite levando
o brilho do sol embora.
ADÉLIA VICTÓRIA FERREIRA

03
Para matar as saudades,
fui ver-te em ânsias, correndo...
– E eu, que fui matar saudades,
vim de saudades morrendo!
ADELMAR TAVARES

04
Noites feitas de saudade,
de lembranças, de meiguice...
Tão curtas na mocidade,
e tão longas na velhice!
ALFREDO DE CASTRO

05
Morre o amor... o espólio é feito...
tudo partido em metade;
minha, inteira, por direito,
só ficou mesmo a saudade.
ALMERINDA LIPORAGE

06
Maria, só por maldade,
deixou-me a casa vazia...
Dentro da casa: saudade!
E na saudade: Maria!
ANIS MURAD

07
Velhice é um tempo que encerra
saudades e desenganos.
Por isso é que Deus, na Terra,
só viveu trinta e três anos!
ANTÔNIO ROBERTO FERNANDES

08
Saudade, ponte encantada
entre o passado e o presente,
por onde a vida passada
volta a passar novamente!
ARCHIMIMO LAPAGESSE

09
A minha roça eu troquei
pelas luzes da cidade.
Nesse dia eu comecei
meu plantio de saudade!
ARLINDO TADEU HAGEN

10
Saudade, palavra doce,
que traduz tanto amargor!
Saudade é como se fosse
espinho cheirando a flor!
BASTOS TIGRE

11
Quando a saudade me embala,
o teu nome a repetir,
o silêncio tanto fala,
que não me deixa dormir!
CAROLINA RAMOS

12
Não me importo se demoras,
quando a tristeza me invade.
Para que contar as horas,
se já não sinto saudade?...
CLENIR NEVES RIBEIRO

13
A todo mundo insinuas
que não mando no que é teu,
mas tenho saudades tuas
e o dono delas sou eu.
COLBERT RANGEL COELHO

14
Gostar de ti, quem não há de?
Inspiras tal simpatia,
que a gente sente saudade
se deixa de ver-te um dia.
COLOMBINA

15
Desprezei tua amizade,
queria mais, muito mais!...
Hoje sou nau da saudade,
apodrecendo no cais.
CONCEIÇÃO DE ASSIS

16
Não há palavra nenhuma
tão grande quanto "saudade",
que em sete letras resuma
a dor e a felicidade!
DIAMANTINO FERREIRA

17
Deprimida, com saudade,
por saber que foste embora,
só me restou a vontade
de eu mesma jogar-me fora...
DJALDA WINTER SANTOS

18
Numa página, a saudade;
no verso – não tem escolha –
quase sempre a mocidade
faz parte da mesma folha!...
DOMITILLA BORGES BELTRAME

19
Trem-de-ferro, o teu apito
lembra-me um sino plangente:
tanta mágoa no teu grito,
tanta saudade na gente!
DOROTHY JANSSON MORETTI

20
Saudade, ninguém por certo
a definiu deste jeito:
– saudade é um mundo deserto
que temos dentro do peito!
DULCE SIQUEIRA

21
Beijo-lhe a foto!... E, na espreita
deste amor que eu idolatro,
minha saudade se ajeita
no retrato três por quatro...
EDMAR JAPIASSÚ MAIA

22
Saudade – lembrança triste
de tudo que já não sou...
Passado que tanto insiste
em fingir que não passou!
EDGARD BARCELOS CERQUEIRA

23
A saudade se embaraça
e a paixão se intensifica...
– Não pelo instante que passa,
mas pelo instante que fica!
EDUARDO A. O. TOLEDO

24
Orgulho bobo... vaidade...
caprichos do amor sobejo...
Eu, morrendo de saudade,
fingir que nem te desejo!
ELISABETH SOUZA CRUZ

25
Ia um casal caminhando,
bem velho, trôpego o passo...
Era a Saudade, levando
o Passado pelo braço...
ELTON CARVALHO

26
... E se morresse a saudade?
Fatalmente, eu morreria...
Pois é essa doce maldade
o alimento do meu dia!
FERNANDO CÂNCIO ARAÚJO

27
Na ausência que não nos poupa,
saudade é formiga arisca
que fica dentro da roupa
e volta e meia belisca.
FLÁVIO ROBERTO STEFANI

28
A espera é aquele momento
em que a saudade dispara
e o relógio fica lento,
fica lento e quase pára...
GÉRSON CÉSAR SOUZA

29
A saudade da saudade
varreu de mim a alegria,
levando a felicidade
que eu pensava que existia!
GISLAINE CANALES

30
Qual um pastor diligente
cuidando do seu rebanho,
pastoreio no presente
minhas saudades de antanho.
GUTEMBERG ANDRADE

31
Temos certeza da idade
quando as rugas do sol-posto
passeiam com a saudade
na tarde do nosso rosto.
HÉRON PATRÍCIO

32
A vida pôs, por maldade,
tanta distância entre nós,
que, quando eu canto, é a saudade
que faz a segunda voz...
IZO GOLDMAN

33
Nem sempre a felicidade
vem da vitória ou da fama:
pode estar numa saudade
ou nos sonhos de quem ama!
JEANETTE MONTEIRO DE CNOP

34
Com a saudade eu reparto
minhas noites de abandono;
mal apago a luz do quarto,
ela vem tirar meu sono...
JOAQUIM CARLOS

35
Saudade – estranha ilusão
que a solidão recompensa;
presença no coração
maior que a própria presença!
J. G. DE ARAÚJO JORGE

36
Saudade, momento onírico;
saudade, momento trágico;
saudade, momento lírico;
saudade, momento mágico!
J. J. GERMANO

37
O apito daquele trem
que te levou da cidade
foi um soluço, meu bem,
dando começo à saudade!
JOSÉ ANTÔNIO DE FREITAS

38
Amor há no coração
que é feito brasa apagando.
Se vai virando carvão,
surge a saudade soprando...
JOSÉ FABIANO

39
Entre a tua e a minha idade,
filho meu, quanta distância...
– És a infância da saudade!
– Sou a saudade da infância!
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO

40
Ante a dor que me espezinha,
a esperança se evapora...
Até a saudade que eu tinha
não quis ficar... foi embora!
JOSÉ MESSIAS BRAZ

41
Mamãe fazia a polenta,
papai pitava um cigarro.
– Hoje a saudade é que esquenta
o velho fogão de barro!...

42
Saudade, que dor enorme,
é triste o nosso sentir:
você se deita e não dorme
e nem me deixa dormir!
JOSÉ VALDEZ DE CASTRO MOURA

43
Meu amor foi-se acabando...
mas a saudade chegou:
– chuva boa refrescando
o chão que o sol causticou.
LILINHA FERNANDES

44
Lembra a saudade uma estrela
nas águas de um ribeirão
que fica sempre a retê-la,
enquanto as águas se vão...
LUIZ ANTÔNIO PIMENTEL

45
Se a saudade fosse fonte
de lágrimas de cristal,
há muito havia uma ponte
do Brasil a Portugal!
LUIZ OTÁVIO

46
Tímida, meio sem jeito,
uma saudade enxerida
entrou aqui no meu peito...
e hoje manda em minha vida!
MARIA MADALENA FERREIRA

47
A distância, achando meios
para unir nossas metades,
somou nossos devaneios
e dividiu as saudades !...
MARIA NASCIMENTO

48
Saudade... perfume triste
de uma flor que não se vê.
Culto que ainda persiste
num crente que já não crê.
MENOTTI DEL PICHIA

49

A saudade às vezes fala
e até grita – quem diria! –
quando a rede, a sós, se embala
numa varanda vazia...
MIGUEL RUSSOWSKY

50
A tristeza que me invade
e que nunca chega ao fim
é a esquina de uma saudade
que eu dobro dentro de mim.
MILTON NUNES LOUREIRO

51
É tanto o amor que me invade
quando em seus braços estou,
que cada instante é saudade
do instante que já passou!
NEWTON MEYER

52
Dona Saudade, velhinha,
bordadeira paciente,
não tem agulha nem linha,
mas borda os sonhos da gente!
ONILDO DE CAMPOS

53
Ah, coração, tem piedade...
Batendo tão forte assim,
vais acordar a saudade
que dorme dentro de mim!
ORLANDO BRITO

54
Saudade, saudade minha,
quanta saudade restou;
saudade, saudade eu tinha,
saudade, saudade eu sou.
OTAVIO VENTURELLI

55
Poeta, gêmeo do santo:
sofre muito e não blasfema;
faz dos gemidos um canto,
faz da saudade um poema.
PADRE CELSO DE CARVALHO

56
Ao mesmo tempo em que mata,
mata e faz viver também...
Saudade é dor que maltrata,
maltrata fazendo bem!
PEDRO EMÍLIO DE ALMEIDA E SILVA

57
Quando o passado me embala
e o sono, aos poucos, se evade,
até o relógio da sala
vem acordar a saudade!
RODOLPHO ABBUD

58
A saudade que me resta
vai comigo, quando eu vou
à procura de uma festa
que há muito tempo acabou.
SEBAS SUNDFELD

59
Teu retrato até rasguei
para fugir à verdade...
"Sem lembranças"... eu pensei,
mas ninguém rasga a saudade!
THEREZA COSTA VAL

60
Saudade!... Foto em pedaços,
que eu colei, com mão tremida,
tentando compor os traços
de quem rasgou minha vida!...
WALDIR NEVES

Fonte:
Disponível em Biblioteca Virtual "Cá Estamos Nós"., dezembro de 2005.

Lucia Constantino (Poetrix)


AMOR PROFUNDO

Um amor profundo torna a vida calma.
Rio que atravessa um mundo
pra dormir na foz da alma.

CORPO CÓSMICO

No corpo cósmico
as diferenças só refletem
a grandeza de Deus.

SEGREDO

Tempo provisório de minha presença.
Amparo-me na Luz. Preciso dela em mim.
Sempre acesa.

GRAMÁTICA POÉTICA

Companheirismo,
generosidade e solidariedade.
Têm que ser verbos ao homem de Letras

PRECISO DE TI

Dá-me Teu ombro.
Esta é uma dor gigante
e não sei mais o meu tamanho

GERADOR

O que vem do Alto
vem de dentro.
O olhar tem que ser sol

PRESENÇA DA VIDA

Em cada ser, um pequeno sol.
Em cada sol, a presença divina.
Células de Deus - Um e Todos.

SUBLIME ENCONTRO

Dize-me com quem andas.
Te pedirei que me leves junto.
Dentro do teu coração.

DESPERTO...

Não verei o tempo dormir
como a neve em seu berço.
Sou filha do sol - aqueço

UM SONHO....

Que fosse assim. Um mundo pátrio.
O Hino Nacional da Terra,
cantado a plenos corações.

INTERLÚDIO

Fala-me a sede de viver
no verde lume que clareia
essas manhãs do meu entardecer.

EVENTO

Queria entender a Luz
quando passa pelo rosto.
E o que ela deixa, que não enxergamos

AO RAIAR DA MANHÃ

Orvalho dormindo na flor.
Despertam meus olhos
essas lágrimas do céu

E ELA DISSE:

Se eu tivesse ego
seria maior que vossa Terra.
Vossos versos são frutos do universo

Fonte:
http://www.luciaconstantino.prosaeverso.net/publicacoes.php?categoria=S

Goulart Gomes (Sobre o Poetrix... )


O POETRIX surgiu em 1999, com a publicação do livro TRIX – Poemetos Tropi-kais, de Goulart Gomes, premiado com Menção Especial pela Academia Carioca de Letras e União Brasileira de Escritores – RJ, em 2000.

1. No POETRIX, o título é desejável, mas não exigível. Ele exerceria uma função de complementaridade ao texto, definindo-o ou sendo por ele definido.

2. Não existe rigor quanto ao número de sílabas, métrica ou rimas no POETRIX, mas o uso do ritmo e da similaridade sonora das palavras, sim.

3. O uso de metáforas e outras figuras de linguagem são uma constante no POETRIX, assim como a criação de neologismos.

4. A interação autor/leitor deve ser provocada através da subliminaridade do POETRIX.

5. O POETRIX é necessariamente uma arte minimalista, ou seja, ele procura transmitir a mais completa mensagem com o menor número de palavras.

6. O POETRIX considera Passado, Presente e Futuro como uma só dimensão: TEMPO, podendo ser utilizado indistintamente.

7. No POETRIX o observador (autor), as personagens e o fato observado podem interagir, criando condições suprarreais ou ilógicas ("non sense").

O POETRIX é tipicamente urbano. Ele também aproxima-se das leituras visuais, concretas, do epigrama e do caligrama, podendo ganhar formas animadas.

Sobre a estrutura dos POETRIX

"Dos poetrix", porque mesmo no plural, ainda poetrix, duplix, triplix, multiplix.

Apesar de ser linguagem poética recente, e linguagem viva, portanto sujeita a alterações e evolução, como todas são, como linguagem, é convenção. E é dessa convenção são extraídas as considerações abaixo expostas:

- Tema: O poetrix não se subordina a qualquer tema, conceitual ou formalmente. Não está restrito a quaisquer eventos, estações do ano, momentos da vida e da natureza. Sendo uma poesia "urbana" não exclui a vida do campo. Como manifestação livre trata de idéias e momentos que tenham inspirado seu autor. Também não é "arte engajada". Estética e logicamente trata de sensações físicas, ambientais, percepções visuais e paisagísticas, emoções, conceitos, sociedade e pensamento. Se não dá espaço, por ser minimalista, a "derramamentos" emotivos não deixa de registrar momentos de fortes emoções, comunicadas em sínteses, muitas vezes fortíssimas. O envolvimento autor_e_obra e antropomorfismos não são vedados (diferentemente dos haicais, que parecem não recomendar tais conteúdos). Temporalmente, não está vinculado ao passado, presente ou futuro, e o seu tempo nem é linear ou cíclico. Pode nem mesmo se tratar de um tempo real.

- Título: nos poetrix o título é obrigatório e parte importante do mesmo. Pode funcionar como um mote, integra-se ao poema, dá-lhe coerência, produz contradições que levam ao "susto" ou estranhamento bem vindo e induz ao desenvolvimento da poesia. Não deve ser elaborado de forma a que o poetrix seja uma quadra sem título que se disfarça em terceto.

- Terceto: uma estrofe composta de três versos livres quanto a rima (que também pode ser usada, quando natural e bela), e onde o rítmo deve ser compatível com o assunto e a natureza do tema (parece que isso é da poesia).

- Versos: O tamanho dos versos também é livre, não tendo um rígido número de sílabas (como os 5/7/5 dos haicais tradicionais). A contagem das sílabas deve ser feita até a última tônica de cada verso. No total, o poetrix comporta no máximo 30 sílabas, naturais ou modificadas por contrações, elisões, sinéreses e sinalefas.

- Figuras de linguagem, gramaticais e de estilo: Tratando-se de poesia minimalista, recorre a essas figuras para no continente permitido, conseguir expressar o conteúdo que se pretende, ou que aflora. Metáforas e elípses são permitidas e mesmo recomendadas por questões estéticas ou práticas. Polissemia, catacréses, aliterações, hipérbatos, zeugmas, anacolutos, etc... um arsenal à disposição do poeta.

- Grafismos: além das letras do alfabeto, sinais gráficos, os convencionais, são usados com certa freqüência. Parênteses, hífens, signos da matemática, interrogações, exclamações, pontos, chaves e reticências...

- Neologismos e deformações das palavras. Regionalismos e estrangeirismos : também e tudo à disposição do autor.

- Concretismo: embora ainda se ensaiando e não discutido mais profundamente, por manipulação da geometria dos versos e pela construção de signos a partir dos sinais gramaticais, o concretismo se insinua e se esboça em algumas composições.

- Poesia compartilhada: Os poetrix se desdobram pelo encadeamento de dois ou mais poetrix de autores que se alternam, dando origem aos duplix, triplix e multiplix.

GRAFITRIX:

Entre as formas múltiplas do Poetrix reconhecidas pelo Movimento Internacional Poetrix (MIP), está o GRAFITRIX, que é um Poetrix inspirado por uma imagem ou associado a ela. Em geral, escreve-se o poetrix sobre a foto ou o desenho.

O GRAFITRIX é uma criação de Murillo Falangola.

Fonte:
http://poetrixando.blogspot.com/

Goulart Gomes (Dez Dicas para um Bom Poetrix)



1. EVITE AS ORAÇÕES COORDENADAS.
Um poetrix não é uma frase fatiada em três partes. Vamos tomar um exemplo:

TELEFONEMA

passei a noite em casa
esperando que ela ligasse
mas ela não ligou

Isso não é um poetrix, é a primeira oração de um texto! Está simplesmente horrível! Mas, notemos como ele poderia ficar bem melhor, se a idéia fosse expressada de outra forma:

TELEFONEMA

noite em branco
telefone mudo
até o amanhecer

2. EXPLORE O PODER DO TÍTULO.
Uma das grandes vantagens do poetrix é a existência do título, o que não há no hai-kai. Por vezes, ele pode ganhar uma característica de “verbete”, sendo definido pela estrofe. Suprimam o título e observem diferença que faz:

SEMÁFORO

pensei ser outra lua
olho verde contra o céu
fugaz, no meio da rua

Outro trunfo é que o título não entra na contagem de sílabas. Assim, alternativas criativas podem ser formuladas. Num exercício “exagerado” desta possibilidade, uso como exemplo:

ESTUDO SOCIOANTROPOLÓGICO DE UM COMUM CIDADÃO LATINOAMERICANO DE CLASSE SOCIAL DESFAVORECIDA, À LUZ DA NOVA ORDEM MUNDIAL, IMPACTADA PELA GEOPOLÍTICA DO PETRÓLEO, NUM ENFOQUE MÍSTICO-TRANSCENDENTAL, CORROBORADO PELOS IDEAIS FREUDIANOS-LENINISTAS, SEM ASPIRAÇÕES EPICURISTAS

nasceu
cresceu
desencarnou

3. MINIMALIZE.
Corte tudo o que está sobrando. Escrever um poetrix é lapidar um diamante. Nenhum texto fica pronto “de primeira”. É preciso, sempre, trabalhá-lo. Literatura é 10% inspiração e 90% transpiração. Com o poetrix, apesar de pequeno, não é diferente. Exemplo:

ANTES:

DRAGÃO

com a cabeça no ar
e com os pés no chão
é um homem? não, um dragão

DEPOIS:


DRAGÃO

cabeça no ar
e pés no chão
homem? dragão

4. PESQUISE.
Enriqueça o seu texto com informações pertinentes. Vejam este poetrix:

XENOGLOSSIA

na Planície de Sine-Ar
decifrar tua língua
em minha Torre de Babel

Após ter a idéia, fui à Bíblia obter mais informações sobre a Torre de Babel. Lá descobri que ela foi supostamente erguida na planície de Sinear. Em latim, “sine” quer dizer sem. A informação caiu perfeitamente: a língua, a torre, alguém “sem ar”... Uma pequena informação pode fazer uma grande diferença.

5. NÃO CONFUNDA POETRIX COM HAICAI.
Para isso, é importante conhecer, também, os fundamentos do haicai (ver texto que disponibilizei sobre o assunto em www.prefacio.net). Para começar: se o tema do seu poetrix é a Natureza, desconfie. Pode ser que nasça um haicai, e não um poetrix.

6. UTILIZE FIGURAS DE LINGUAGEM.
Em todas as formas poéticas, o uso de figuras de linguagem, metáforas, tropos e imagens enriquecem bastante o texto. Por vezes, é necessário “substantivá-lo”.

QUANDO A MARÉ ENCHER

Verdi no azul do mar
tocardo forró no piano
pra Netuno e Yemanjá

7. ACABE COM AS CONJUNÇÕES ADVERSATIVAS:
Mas, Contudo, Porém, Todavia, Não Obstante, Entretanto, No entanto, geralmente não servem para nada em um poetrix, assim como a conjunção explicativa Pois.

8. NÃO FORCE RIMAS.
Poetrix não é soneto. Às vezes pode-se dispensar completamente uma rima, utilizando-se bem o ritmo, a sonoridade e a riqueza semântica das palavras.

9. POETRIX NÃO É PROVÉRBIO.
Muito menos, frase de pára-choque de caminhão. Evite coisas como (blargh!):

ARROCHA

mulher e parafuso:
comigo
é no aperto

(Só um texto explicativo, mesmo, para me fazer criar uma “coisa destas”! Que sacrifícios a gente não faz pela Literatura!)

10. O NÃO-DITO FALA MAIS QUE O DITO.
Não pense que seu leitor é burro. Não dê tudo “mastigado”. Faça com que seu texto “dialogue” com o leitor, permita que ele faça sua própria “viagem” nas palavras:

ÁCIDO

a água furou a pedra
moinhos de amsterdã
a manhã será mais bela

HOLOKAUSTO

há o que não houve
retalhos de nylon
cogumelo atônito

E, para finalizar, não esqueça:
O POETRIX é um poema composto de título e uma estrofe de três versos (terceto) com um máximo de trinta sílabas métricas.

Fonte:
http://www.goulartgomes.com/visualizar.php?idt=409722

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.124)

Uma Trova Nacional

Grita a sogra, lá do morro,
ao ver o genro chegar:
– não te chamo de cachorro
que é pra não te elogiar!
(HÉRON PATRÍCIO/SP)

Uma Trova Potiguar

Ao final do casamento
toda mulher é um sócio,
que leva o faturamento
sem abrir mais o negócio...
(HELIODORO MORAIS/RN)

Uma Trova Premiada

2008 > Bandeirantes/PR
Tema > TRABALHO > Menção Especial

Vendo o luxo da cigarra,
que não trabalha... faz “ponto”,
a formiga quer, na marra,
alterar aquele conto!
(SELMA PATTI SPINELLI/SP)

Simplesmente Poesia

– Carlos Drummond de Andrade / MG –
A hora do cansaço

As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos, por um ou outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho de eterno fica esse gozo acre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.

Uma Trova de Ademar

Trabalho só é bacana
se tiver, por sua vez,
uma folga por semana
e férias de mês em mês!
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

“Limpou” o supermercado
e desculpou-se ao ser presa:
- Não é roubo, delegado,
é mania de limpeza!
(MARIA DOLORES PAIXÃO/MG)

Estrofe do Dia

Por causa de um café morno
mamãe terminou morrendo,
se pai foi corno, não é,
você continua sendo;
se meu pai foi, não sabia
você é corno sabendo.
(JOÃO FURIBA/PE)

Soneto do Dia

– Soneto a cinco Mãos –
UM JANTAR NO “PAU DE ARARA”

Quando o garçom chegou, desajeitado,
servindo a mesa, com total descaso,
a sopa que me trouxe em prato raso
esparramou-se, ao chão... por todo lado!
(Heloísa Zanconato)

Confesso que fiquei bem irritado
e a minha reação foi “um arraso”:
– Chutei cadeiras, destruí um vaso
e botei p’ra correr o desgraçado!
(Renata Pacolla)

Depois me arrependi – (pobre garçom!)
que, educado não foi para ser bom
e servir com respeito a freguesia...
(Thalma Tavares)

Então, dei uma “grana’ para o “cara”,
que veio do Pará num “pau de arara”
e há tempo uma gorjeta merecia!!!
(EduardoToledo)

Fonte:
Ademar Macedo

Machado de Assis (Análise dos Contos de “Várias Histórias”: 13. Um Apólogo)


Análise realizada pelo Prof. Bartolomeu Amâncio da Silva. Bacharel em Letras, pela USP, professor de literatura da rede Objetivo (colégios e cursos pré-vestibular).
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O conto na íntegra pode ser acessado em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/02/machado-de-assis-conto-um-aplogo.html
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Famoso conto que narra o desentendimento entre a agulha e a linha.

A primeira vangloriava-se por ser responsável pela abertura do caminho para a segunda. Tudo isso ocorre enquanto a costureira ia preparando o vestido de uma baronesa.

No final, com a ida da nobre para a festa, a linha joga na cara que, se a agulha abrira caminho, agora iria voltar para a caixa de costura, enquanto o fio iria no vestido freqüentar os salões da alta sociedade.

A frase final do conto, de alguém que ouvira essa história (um professor de melancolia) – “Também tenho servido de agulha a muita linha ordinária” –, é bastante sintomática. Faz lembrar um aspecto muito comum na obra machadiana que é, na busca por status, as pessoas acabarem sendo usadas e depois descartadas.

É o que ocorre, por exemplo, em Quincas Borba, na relação entre o casal Palha e Rubião. Ou mesmo em Memórias Póstumas de Brás Cubas, na conveniência do casamento entre Eulália Damasceno de Brito (linha) e Brás Cubas (agulha).
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Continua… Análise do Conto “D. Paula”
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Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/v/varias_historias

11a. Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto (Convite de Lançamento)


A 11ª edição da Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto terá início em 26 de Maio de 2011 e término em 5 de Junho e contará com uma programação cultural com mais de 600 atrações e eventos em todas as áreas artísticas e para todas as idades. Alguns deles:

— Serão mais de 25 shows com artistas de renome nacional e a abertura de cada evento será feita por artistas locais;

— Salão de Ideias com grandes nomes da literatura nacional e convidados estrangeiros vão conversar, debater com o público e participar de sessões de autógrafos;

— Exposições de artes visuais e outras atividades culturais ligadas aos homenageados da Feira que são a Grécia, o Estado de Santa Catarina, o escritor José Saramago, o patrono Maurílio Biagi Filho, a autora infanto-junvenil Luciana Savaget e o autor da terra homenageado Saulo Gomes;

— Palavra Cantada com apresentações diárias das obras de compositores da música popular brasileira com as letras analisadas e comentadas por especialistas;

— Serestas e saraus literários;

— Sessões de autógrafos com aproximadamente 100 autores nacionais, regionais e locais;

— Sessões de contadores de estórias voltadas às crianças da rede municipal da cidade e da região com horário marcado. Este evento é muito importante porque as cidades da região trazem os alunos para assistirem às apresentações;

— O Cinema na Feira é montado em um espaço na praça onde são apresentados os documentários, curtas locais e grandes filmes do cinema mundial e os nacionais baseados em livros que podem ser encontrados na Feira;

— Concertos da Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto e apresentações de corais da cidade;

— Oficinas de literatura, cursos, workshops e palestras para professores;

— Dança de leitura dramática, cultura negra e cordel;

— A Vila do Livro é um estande só para crianças, que mostra de maneira lúdica a elaboração do livro;

— Estande das Editoras Universitárias oferece um desconto de até 60% na venda de livros.

Sobre a Fundação Feira do Livro

Criada em fevereiro de 2004, a Fundação Feira do Livro é uma entidade sem fins lucrativos, constituída utilidade pública municipal e estadual. A Fundação tem por principal finalidade a promoção da cultura, da educação, da difusão do livro e da leitura e, prioritariamente, a formação de leitores.

Esse objetivo se realiza através de projetos, ações, campanhas e estudos relativos à leitura e à formação desses novos leitores. A Fundação também estimula e monitora a atuação legislativa referente às políticas públicas de cultura. Uma das prioridades é colaborar com entidades públicas e privadas em tudo que possa ser de interesse público relacionado ao livro, à leitura e à promoção do patrimônio histórico. A Fundação busca estimular intercâmbios, seminários, fóruns, cursos e celebrar convênios e contratos com entidades públicas nacionais e internacionais no âmbito das finalidades estatutárias.

Ribeirão Preto, a 319 km de São Paulo, com uma população de mais de 600 mil habitantes, possui o honroso título de “Capital da Cultura” e é considerada o polo de atração do Nordeste Paulista, uma região que congrega mais de 120 municípios em um raio de 150 quilômetros e uma população de mais de três milhões de habitantes. O Produto Interno Bruto (PIB) regional é de US$ 23 bilhões, superior ao da maioria dos países da América Latina. Toda esta população procura a cidade pela pujança de seu comércio, pela qualidade de suas universidades, pela diversificação de seus serviços e pela intensa vida cultural que Ribeirão Preto oferece.

A Fundação promove, anualmente, junto com a Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto, a Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto (SP), uma das quatro mais importantes do Brasil e uma das maiores a céu aberto do mundo. Esta Feira é realizada em praças e espaços culturais em seu entorno, num total de 16 mil m2 (sendo 3 mil m2 de área coberta), evento de reconhecimento nacional e internacional que já faz parte do calendário da cidade e da região. Esse espaço, na sua totalidade, é utilizado pelos organizadores da Feira Nacional do Livro para abrigar as mais de 600 atividades.

O local é chamado “Quarteirão Paulista”, que compreende três prédios, um Teatro de Ópera, um prédio que abriga o Centro Cultural de Ribeirão Preto e duas praças, todos construídos entre as décadas de 20 e 30 do século passado e tombados pelos órgãos responsáveis pela preservação do Patrimônio Histórico, tanto municipal como estadual. O local tem alta circulação de público, com uma movimentação média de 50 mil pessoas por dia.

A Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto é muito mais que uma grandiosa oportunidade de venda de livros no interior de São Paulo, um dos maiores mercados do país. O evento assumiu a condição de grande evento cultural, turístico e econômico da região, seu crescimento impulsiona a economia da cidade e da região com a movimentação do comércio, dos prestadores de serviços, hotéis, bares, restaurantes e shoppings centers. É um evento que projeta a cidade nacionalmente. As atrações oferecidas são todas gratuitas para a população, com o objetivo de proporcionar acesso gratuito às atividades culturais.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Pedro Du Bois (Poesias Escolhidas)


INTERESSAR

Sou do desinteresse o ouvido
parco das novidades, o mundo
na extensão da casca do ovo

não procuro o novo
e a novidade flutua
ante meus olhos

(não há importância
na descoberta: o novo
derruba o que resta).

RECOMEÇO

Sou remanescente, lado avesso
ao desconhecimento. O oposto ao corpo,
luz. A bravura da ovelha, o cão guardando
o rebanho. Recomeço.

Habito terras desprezadas e me faço estéril
pensamento. Guardo a palavra.

Sou vento impreciso e ágil
sobre a cobertura. Espalho a poeira
e a misturo entre lajes.

HÓSPEDES

Hóspede na inutilidade perco
a paciência em obviedades:
ao responder anseios interiores
rasgo paredes com palavras
alarmadas ao milagre e refaço
a noite divulgada ao acaso: junto
o teor do expediente e o declino
em versos: no inverso da jornada
esqueço a escala crescente
das necessidades:

hospedo a maldade
ultrapassada.

Sobram cicatrizes em calosidades:
esquecer ainda é o maior mistério

CRESCER

A antevisão do inferno
conforma a figura ensinada
enquanto criança: ter sido
criança antes
da história
adulterada

o menino ativa idéias
descomunais ao corpo
ingente, purgado
em vitaminas inexistentes

o inferno desdobrado
em passos: passado
recoberto em eras.
Floresta desbastada.

DESPREZO

Desprezado ao sustento
despedaço o corpo à estrada: ir e vir
em bifurcado
corpo

estraçalho a vontade
ao recontar pedaços
inaproveitáveis

repouso antes da viagem
na longitude programada

imerso em pensamentos
penso a passagem
do pássaro escalado
ao morro atrás da casa

ao sustento identifico
a fome: restam fatias
intercaladas.

Fonte:
O Autor

Renato Alt (Árula)


É verdade. Faz algum tempo já.

Fiquei pensando se devia falar com você ou não. Ainda não tenho bem certeza se decidi pelo que é certo, mas como até o que é certo tantas vezes se mostra confuso e impreciso, revolvi escrever meio que por impulso mesmo. Sei que uma das coisas que mais a incomodavam era justamente essa impulsividade, essa inconsequência adolescente, e você sabe melhor do que ninguém - talvez até do que eu mesmo - o quanto tentei mudar e agir de forma diferente, o quanto respirei fundo e caminhei para um lado enquanto meu espírito empurrava-me para outro, e o quanto eu roubei de mim mesmo a fim de agir de maneira que me tornasse melhor, ou que pelo menos você achasse melhor, e que, no final, sempre, acabava por nada adiantar, já que os padrões de comportamento que você estabeleceu são impossíveis de serem seguidos, mesmo por você, o que nos tornava companhia tempestuosa e aflitiva um para o outro durante todo o tempo em que estávamos, e estivemos, juntos.

Mas hoje eu quero lembrar de outras coisas. Antes que pense que pretendo, com isso, tê-la de volta, faço questão de dizer que não é o caso. Não quero. Mesmo. Penso em mim como estou agora e tento projetar como seria se você estivesse aqui e, desculpe a franqueza, é quase um alívio saber que não está. Mas dizer que o que tivemos foi apenas um acúmulo de cansaço também não seria justiça: fomos intensos. Talvez intensos demais. Não arrependo-me de nada, ainda que, sinceramente, duvido que aguentasse um dia a mais.

Quero lembrar de quando fomos àqueles lugares perdidos em meio à mata e à chuva, descobrindo espaços que pareciam preparados justamente para recompensar aqueles que saíram em sua busca. Quero lembrar de quando ouvíamos música e bebíamos vinho madrugada adentro, dando novas interpretações para as letras das músicas de maneira que todas elas pareciam contar a nossa história. Quero lembrar de quando pegávamos o carro e saíamos sem destino, tornando, assim, alcançáveis todos os lugares do planeta. Quero lembrar de quando ficávamos sozinhos e nos perdíamos um no outro, sem pressa, despreocupados do mundo que insistia em suas mazelas porta afora, sabendo que nada era mais importante do que o que tínhamos ali.

Sei de tudo o que vivemos. Sei do tanto que vivemos.E sei que você, à essa hora, coça a cabeça procurando uma razão, qualquer que seja, que justifique estas minhas palavras. Mas aí está a grande magia da qual eu já estava me esquecendo: nem tudo precisa seguir a lógica.

Deixo para outro momento uma despedida mais emocionada, mesmo porque sequer sei se essas palavras vão mesmo encontrá-la. Se sim, receba meu beijo carinhoso. Se não, tudo bem: como tantos outros sentimentos que se apresentaram, guardo também esse, como tesouro que não há de conhecer outro dono.

Talvez um dia, quem sabe, entre um gole e outro, possamos reviver idos tempos.
Ainda que eu ache que não devamos contar com isso.

Fonte:
http://aperteoalt.blogspot.com/

Machado de Assis (Conto de Escola)


A ESCOLA era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia — uma segunda-feira, do mês de maio — deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant’Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão.

Na semana anterior tinha feito dous suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes.

Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinqüenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.

— Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.

Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinqüenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco.

— O que é que você quer?
— Logo, respondeu ele com voz trêmula.

Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa; tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os outros foram acabando; não tive remédio senão acabar também, entregar a escrita, e voltar para o meu lugar.

Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma cousa soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos.

— Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.
— Não diga isso, murmurou ele.

Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria pedir-me alguma cousa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo, e, rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.

— Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.
— Que é?
— Você...
— Você quê?

Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa circunstância, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma cousa entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais velho que nós.

Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava dele nem de mim. Ou então, de tarde...

— De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.
— Então agora...
— Papai está olhando.

Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as idéias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.

No fim de algum tempo — dez ou doze minutos — Raimundo meteu a mão no bolso das calças e olhou para mim.

— Sabe o que tenho aqui?
— Não.
— Uma pratinha que mamãe me deu.
— Hoje?
— Não, no outro dia, quando fiz anos...
— Pratinha de verdade?
— De verdade.

Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei, cuido que doze vinténs ou dous tostões, não me lembro; mas era uma moeda, e tal moeda que me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava caçoando, mas ele jurou que não.

— Mas então você fica sem ela?
— Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?

Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a pratinha nos joelhos...

Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma idéia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada.

Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a cousa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes, mas parece que era lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria, — e pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal, — parece que tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor, — mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma cousa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...

Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. — Ande, tome, dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele não podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com indignação...

— Tome, tome...

Relancei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei; mas daí a pouco deitei-lhe outra vez o olho, e — tanto se ilude a vontade! — não lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.

— Dê cá...

Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição e não me demorei em fazê-lo, nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.

De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.

— Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.
— Diga-me isto só, murmurou ele.

Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição, com uma grande vontade de espiá-la.

— Oh! seu Pilar! bradou o mestre com voz de trovão.

Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.

— Venha cá! bradou o mestre.

Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais lia, ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.

— Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? disse-me o Policarpo.
— Eu...
— Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! clamou.

Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito. Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então disse-nos uma porção de cousas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser castigados.

Aqui pegou da palmatória.

— Perdão, seu mestre... solucei eu.
— Não há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!
— Mas, seu mestre...
— Olhe que é pior!

Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma cousa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem-vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio apanharíamos tal castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões! tratantes! faltos de brio!

Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo como três e dous serem cinco.

Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou a cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta; estava com medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os joelhos, o nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, por que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma cousa?

" Tu me pagas! tão duro como osso!" dizia eu comigo.

Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar ali mesmo, na Rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na Rua larga São Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente escondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde faltou à escola.

Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando ao diabo os dous meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...

De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua...

Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente, rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma cousa:

Rato na casaca... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...

Fontes:
ASSIS, Machado de. Várias Histórias. Editora Martin Claret

Machado de Assis (Análise dos Contos de “Várias Histórias”: 12. Conto de Escola)



Análise realizada pelo Prof. Bartolomeu Amâncio da Silva. Bacharel em Letras, pela USP, professor de literatura da rede Objetivo (colégios e cursos pré-vestibular).
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Conto de Escola, de Machado de Assis, narra o primeiro contato de um menino, Pilar, com a corrupção e a delação. O conto segue a tradição do estilo com que Machado de Assis se apresenta como memorialista.

O conto apresenta uma linguagem simples, frases curtas, mas de grande impacto, apresenta antíteses (idéias diferentes), paradoxos (idéias contrárias em equilíbrio) que fazem com que o conto pulse. Mostrando bem como Machado de Assis procurava entender a alma humana e como as relações humanas interferem na essência e na aparência.

O personagem tem sua lição de vida, através da corrupção e da delação, recebendo seu castigo e levando-o a reflexão e ao arrependimento, mas deixando bem claro que “cada um tem seu preço”, que o ser humano sempre acaba se vendendo.

Além de fazer parte de um livro que se considera como o apogeu da narrativa curta machadiana, Várias Histórias, o conto possui também valor estilístico próprio e características distintivas, já assinaladas pela crítica: apóia-se, muito provavelmente, em reminiscências da infância, harmoniza a narrativa de personagem com a narrativa analítica e concentra seu foco crítico e reflexivo sobre a formação do caráter. Trata-se de um conto sobre educação e sobre a escola.

Ambientado no Rio de Janeiro de 1840, Conto de Escola é resultado das reminiscências nada agradáveis de Pilar, seu narrador-protagonista, em relação aos tempos de primário. Narrado em primeira pessoa, o conto inicia-se com uma precisa indicação de data e de local:

A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de l840. Naquele dia - uma segunda-feira, do mês de maio - deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant'Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. (Machado de Assis, 1959b, p. 532)

Pilar (o narrador quando criança), hesitante entre os espaços livres e abertos, locais para brincar, acaba optando pela escola. Motivo da opção: o castigo que o pai lhe aplicara (uma sova de vara de marmeleiro), por ter faltado duas vezes às aulas. Já na escola, recebe de outro menino, Raimundo, filho do mestre, uma proposta: trocar uma explicação por uma moeda de prata. Outro aluno, Curvelo, vai ao mestre e delata os colegas. O severo professor, Policarpo, castiga os meninos, batendo neles com a palmatória. Pilar promete vingar-se, mas Curvelo foge com medo. No dia seguinte, após sonhar com a moeda, Pilar sai com a intenção de procurá-la, já que o mestre, antes da punição, a havia atirado à rua. Estando a procurar a moeda, Pilar se sente atraído por um batalhão de fuzileiros. Acompanha-o e depois retorna para casa sem moeda e sem ressentimentos. Adulto, o narrador, rememorando esses fatos, salienta que Raimundo e Curvelo foram os primeiros a lhe mostrar a existência da corrupção e da delação. O conto mostra de imediato o problema da relação entre professor e alunos, bem como o problema da formação moral.

O narrador-protagonista, Pilar, tem uma inteligência superior à dos seus companheiros de sala. O problema é que o seu comportamento não é nada recomendável, principalmente pelo fato de estar acostumado a cabular aula. No momento tratado pela narrativa, só não tinha ido cabular porque havia apanhado do pai, que descobrira essa falha.

Interessante é notar neste conto que a escola, apresentada como prisão, algo sufocante, acaba preparando de fato a personagem para a vida, mesmo que de forma torta.

Como visto, tudo começa quando Raimundo, o angustiado corruptor, filho do mestre, oferece uma moeda a Pilar, seu colega de classe, em troca de umas lições de sintaxe. Curvelo, o delator que era um pouco levado do diabo, os denuncia ao professor e ambos, Raimundo e Pilar, são violentamente castigados com doze bolos de palmatória cada.

Conto de escola não é de estilo propriamente machadiano, pois em seu conteúdo destaca-se a esperança. Isto é, existe a possibilidade de que, na inocência das crianças, o rumo ético e político da nação possa ser mudado, seria a representação da idéia de que as gerações seguintes poderiam vir a ser mais honestas e de bom caráter. O autor demonstra tal posicionamento a partir do instante em que descreve o fato de o som de um tambor, juntamente da marcha militar, se tornar mais importante, aos olhos de Pilar, do que uma moeda de prata, cuido que doze vinténs ou dous tostões. Dessa forma, Machado deu um final puramente lírico ao conto, fazendo com que a batida do tambor induzisse o herói a abandonar a idéia de vingança contra Curvelo e desistir de encontrar a moeda, representando assim a alegria e a inocência da criança.

Entretanto, pode-se discordar de tão inocente interpretação. Ora, por que então Machado iria se importar em caracterizar o tambor, no final da história, como o diabo do tambor? Crê-se que nesse termo se faz presente, mais uma vez, bem como nas demais obras da chamada segunda fase, o pessimismo e a ironia do autor. Pois, considerando-se que o conto foi narrado em primeira pessoa do singular, trata-se, portanto, do relato feito pela personagem sobre suas lembranças em um determinado momento de sua vida. Pode-se afirmar que há a presença do arrependimento de Pilar por não ter pego a moedinha de prata, já que o narrador refere-se ao tambor fazendo uso da palavra diabo, como se o instrumento musical fosse o culpado pela distração da personagem, conseqüentemente da perda do lucro. Tem-se então o ponto de vista de um adulto que, caso a mesma situação se repetisse em dias atuais, provavelmente voltaria para pegar a moeda, o que reforça a idéia da perda da inocência a medida em que o ser humano aproxima-se da fase adulta. Logo, é descoberta, nessa situação, o pessimismo machadiano, em que há o desmoronamento de uma ilusão: a de que as crianças representam a possibilidade de um futuro melhor e mais justo para a humanidade.

Pode-se afirmar que Pilar se sentiu na obrigação de ajudar Raimundo, por ser este seu amigo. Porém deve-se deixar claro que, conforme o próprio Pilar afirma, teria ajudado o filho do mestre de qualquer modo, sem que este precisasse lhe dar algo em troca. Tem-se, neste pensamento, a solidariedade e o senso de companheirismo, considerados pela sociedade, em geral, características de um bom caráter.

Se me tem pedido a cousa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes, mas parece que era a lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria (...), mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como relíquia ou brinquedo. (MACHADO, 1997, p. 107)

Como observa-se, a corrupção presente nesse conto de Machado, é representada pelo ato de Raimundo em pagar seu amigo, Pilar, para que este lhe ensinasse, às escondidas, o conteúdo desejado, na implícita condição de que ambos assumissem, frente ao mestre e aos colegas, a melhora das notas do primeiro como sendo único e exclusivo mérito seu. O ciclo da corrupção se completa com o aceite da proposta por Pilar. Mas, então, surge a possível pergunta do leitor perante tal situação: seria Raimundo uma criança de má índole? O que o teria levado a tal ato?

O autor utiliza-se de um realismo sutil que permite ao leitor atento uma interpretação mais detalhada da situação. Ele fornece pistas ao longo da história que ajudam o leitor a formular hipóteses, as quais podem levá-lo a conclusões mais precisas. Por exemplo, no caso de Raimundo, poderia explicar-se a ação do filho do mestre baseando-se na idéia do medo que o mesmo sentia do pai. Medo de levar uma surra de palmatória frente a possíveis notas baixas e, conseqüentemente, medo da humilhação que sentiria perante a classe. Já que, conforme o próprio narrador afirma, Raimundo era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco. Além do medo ao pai, existe a idéia da gratidão ao amigo. Na sociedade brasileira, tem-se o costume de dar presentinhos frente a um favor como forma de agradecimento. Portanto, não seria incorreto afirmar que Raimundo usou-se da moeda de prata não somente para garantir uma lição bem dada, conforme demonstrado na citação anterior: o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria (...), mas também para demonstrar ao amigo consideração.

Embora a cena mais dramática do conto tenha se desenrolado no episódio ocorrido em sala de aula, esta serve apenas como ponto de contraste com a liberdade a que o protagonista tanto almejava nas brincadeiras de rua. No final, o que importa é que se conhece um pouco do que foi a infância para este narrador-personagem e como ele reagia ao mundo que o cercava: “Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso, nem ressentimento na alma”.

O narrador, personagem central, não tem acesso ao estado mental das demais personagens. Narra de um centro fixo, limitado quase que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos.

As cenas da infância são rememoradas por Pilar adulto, que as transmite ao leitor, captando as suas próprias impressões, reações, pensamentos e sentimentos na época em que tudo aconteceu. Há, então, uma (re)construção do enunciado, ou fato narrado, que se dá no passado, durante a infância de Pilar, e toda a história chega ao leitor por meio da enunciação, ou seja, a instância produtora do discurso narrativo, qual seja: o discurso do narrador.

O dialogismo presente em Conto de Escola

Viu-se como o narrador-protagonista Pilar constrói sua imagem perante o leitor: não era um menino de virtudes. Esta é uma das primeiras informações que dá sobre si mesmo. E ao falar de si, falou muito sobre seu pai.

Vê-se como o autor trabalha essas relações bivocais. Neste primeiro momento observa-se a oposição pai versus filho. O filho só se entende como tal em contraste com a figura paterna. Mais adiante, a relação dialógica se dará na comparação de si mesmo com o colega Raimundo, sobre quem afirma:

era mole, aplicado, inteligência tarda. Raimundo gastava duas horas para reter aquilo que a outros levava trinta ou cinqüenta minutos (...) Era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre” (ASSIS, 1980, p. 190).

Note-se agora como o narrador descreve a si próprio:

Custa-me dizer que eu era um dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos” (ASSIS, 1980, p. 190)

Faz-se nítida a relação dialógica construída entre Pilar e Raimundo. E este último reconhece a “superioridade” do protagonista ao pedir-lhe explicação sobre um ponto da matéria dada.

A construção dos ambientes presentes na narrativa também se dá por confronto: o espaço da escola versus o espaço da rua. Recorde a passagem em que, arrependido de ter ido à aula, Pilar observa o movimento na rua:

Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma cousa soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos” (ASSIS, 1980, p. 191)

A imagem liberta do papagaio de papel, voando no “claro céu azul” contrasta com o espaço da sala de aula, onde se devia sentar de “pernas unidas”. O narrador recorda-se da escola como uma prisão.

O delator Curvelo também é construído em contraste com os meninos da rua: “Esse Curvelo era um pouco levado do diabo” (ASSIS, 1980, p. 191) e “Olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau” (ASSIS, 1980, p. 193).

Curvelo personifica na narrativa de Pilar o diabólico, o caráter obscuro do ser humano. Por outro lado, tem-se: “pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano” (ASSIS, 1980, p. 190). Interessante que, ao dizer “pensava nos outros meninos vadios”, o narrador-protagonista transmite mais uma informação sobre si: Pilar também era um vadio. E a vadiagem para ele tem uma conotação positiva, já que esta se atribui à “fina flor do bairro e do gênero humano” e se mantém em contraponto à aplicação dos meninos que se encontravam em sala de aula: Raimundo é o corruptor e Curvelo, o delator. Nas entrelinhas, consegue-se perceber o quão imbuída de valores e significações é a obra de Machado de Assis.

A figura do professor Policarpo torna-se mais um alvo do crítico olhar machadiano, que se faz presente na enunciação de Pilar. O professor poderia representar aqui as instituições de ensino como um todo:

Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído.
Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinqüenta anos ou mais
” (ASSIS, 1980, p. 190)

A descrição nos apresenta uma figura em decadência, que lia todo o jornal durante a aula, enquanto cheirava rapé, e que ameaçava constantemente os alunos com a palmatória.

Tensões da narrativa

Vê-se que Conto de Escola é um conto de formação da personalidade do personagem Pilar, onde através da aprendizagem, acontece a quebra da inocência. Esse conto apresenta muitas tensões, as quais são muito importantes para a “formação de Pilar”. A dúvida está presente em todos os momentos, Pilar é um personagem que vive em completa hesitação, já no primeiro parágrafo do conto, pode-se observar a primeira tensão, onde ele começa a narrativa situando o leitor no tempo e no espaço, e já apresentando a sua primeira hesitação:

Hesitava entre o “morro” de S. Diogo e o “campo” de Sant’Ana...”. “Morro ou Campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola”.

Nesse parágrafo, já se pode observar as contradições e dúvidas presentes no personagem, onde também os elementos “Morro” e “Campo” são muito significativos para o conto e para expressar os sentimentos do personagem Pilar, porque o “Morro” representando um lugar de emoções altas e o “Campo” de emoções baixas, mas o personagem acaba ficando no meio termo e decide ir pra “escola”, que também é outro elemento que traz um grande significado para o conto, pois a escola é onde se aprende os sentimentos elevados e sentimentos baixos.

“Com franqueza, estava arrependido de ter vindo.” “Agora que ficava preso ardia por andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios,...”. Pode-se perceber aqui mais uma vez a dúvida e o desejo de estar livre, assim como os meninos vadios, mas como ele vive da aparência e não a essência, ele não consegue fazer isso, vivendo em constante hesitação pela preocupação em manter as aparências. Já os meninos que ele cita, já viviam na essência, como se percebe claramente através da sua descrição, “... a fina flor do bairro e do gênero humano”. Durante esse parágrafo inteiro temos presente a tensão liberdade x aprisionamento, demonstrada pelas idéias contraditórias do personagem. “Para cúmulo do desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do morro do Livramento (símbolo da liberdade), um papagaio de papel (outro símbolo de liberdade)...”; “E eu na escola sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e gramática nos joelhos (idéias contraditórias liberdade e prisão)". Nesse parágrafo também temos presente a tensão “consciência e desejo”, a consciência faz com que ele vá para a escola, e mesmo estando arrependido ele está lá, mas tem o desejo de estar livre, uma luta entre consciência (aparência) e desejo (essência).

A tensão “honestidade e corrupção” começa a ser apresentada, quando Raimundo quer pedir algo à Pilar. Curvelo começa a observá-los, como podemos observar: “Olhei para ele; estava mais pálido”. “... lembrou-me que queria pedir-me alguma cousa...”; “Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o Curvelo, olhava para ele, desconfiado...”. Uma característica presente em o Conto de Escola é a construção através do olhar.

“... mostrou-me de longe...”; “... mas era uma moeda e tal moeda que fez pular o sangue no coração”. “Raimundo revolveu em mim o olhar pálido; depois me perguntou se a queria para mim”. Nesses fragmentos podemos observar que o processo de corrupção já foi despertado, e o desejo pela moeda também.

Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços, ele me daria à moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe”. “E concluiu a proposta esfregando a pratinha nos joelhos...” (corrupção x desejo).

Começa assim a primeira lição para Pilar, a aprendizagem pela corrupção, ele se vende por dinheiro, cai em tentação, passando então por um processo de crescimento, como se pode observar no seguinte fragmento: “Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma idéia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro...”

Acontece nesse parágrafo também, o processo de enganação por dinheiro. Mas Pilar tenta dar uma explicação para sua corrupção: “Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que Raimundo, não tendo aprendido recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a cousa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes...”; “... o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada e não aprender o que queria...”; “...parece que tal foi a causa da proposta”.

O pobre diabo (Pilar usa essa expressão para se referir a Raimundo, por este estar corrompendo-se) contava com o favor, - mas queria assegurar-lhe a eficácia...”; “...pegou dela e veio esfregá-la, à minha vista, como uma tentação...”. “Realmente era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma cousa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...” Ele faz aqui um balanço do conto, e tenta provar sua honestidade.

Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la”, (idéias contrárias novamente). “Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia?” Nesse trecho Pilar faz jus ao ditado “o que os olhos, não vê, o coração não sente”.

De repente, olhei para Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau”. Aqui fica clara a maldade e inveja de Curvelo, levando o personagem Pilar a um tempo psicológico, onde as horas parecem se arrastar e ele começa a devanear; “... no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele...”.

Seu devaneio é interrompido pelo grito do mestre chamando-o, começando aqui uma tempestade para Pilar e Raimundo. “Fui e parei diante dele”. “... enterrou-me pela consciência dentro de um par de olhos pontudos...”. “Toda a escola tinha parado...”.

Curvelo o delator de Pilar e Raimundo, faz com que a máscara da aparência caia, tendo sua essência invadida, o “pilar” tão sólido desmorona.

No seguinte parágrafo tem-se mais uma vez a tensão inveja, através de Curvelo, que comete a delação, pelo fato de estar tomado pela inveja, mas arrependendo-se depois por ver o castigo que o mestre aplica a Raimundo e Pilar: “... pode ser até que se arrepende-se de nos ter denunciado; e na verdade, porque denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?” Bem demonstrado aqui, que a inveja muitas vezes domina o ser humano, levando-os a cometer “atos” movidos pelo simples desejo de prejudicar, sem que tenha lucro algum.

Simbologia no conto

Os elementos simbólicos vão compondo o conto e fazendo com que através deles possamos interpretar o conto de várias formas. Todos os elementos simbólicos são muito importantes, e eram pensados por Machado de Assis, de maneira que oferecessem uma leitura plurissignificativa, pois através da análise desses símbolos o conto pode ter várias interpretações.

Começando pelo título, temos o “Conto de Escola”, conto enquanto gênero literário e conto no sentido de enganação, “conto do vigário”.

O nome do personagem principal é “Pilar”, porque representa algo sólido, forte, inabalável, que ainda não foi corrompido.

O nome do mestre é “Policarpo”, (Poli – vários – carpo – frutos), homem de vários frutos.

O papagaio é para Pilar o símbolo da liberdade, expressa o desejo de estar livre, porque o papagaio voa livre pelo céu, enquanto ele está preso dentro da sala de aula na escola, de onde ele vê a “liberdade” pela “janela”, essa representando as grades de uma prisão, de onde ele vê a liberdade, mas não está livre, porque as paredes e a janela são uma barreira, impedindo-o de estar livre, como podemos observar no seguinte fragmento: “... vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu...”, “... um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma cousa soberba”.

A palmatória, ao mesmo tempo que representa a opressão, um instrumento usado para castigar, acaba representando também a liberdade pois estava pendurada perto da janela (símbolo por onde Pilar vê a liberdade), como podemos observar: “O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória”. “... pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo”.

A pratinha simboliza o desejo, a ganância, a tentação é o que leva o personagem Pilar à “corrupção”. Para Pilar a pratinha é muito importante, pois ele nunca teve uma, o desejo de tê-la leva-o a aceitar a troca de serviços entre ele e Raimundo. “... era bonita, fina, branca, muito branca...”; “E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora diamante...”.

O relógio representa a “tortura” para Pilar, pois as horas parecem se arrastar, levando o personagem a um tempo psicológico. “Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes...”.

Ao final do conto, o batalhão de fuzileiros acaba simbolizando o restabelecimento da ordem, pois o texto começa com a ordem, passa para a desordem e ao final a ordem é restabelecida. “Na rua encontrei uma companhia do batalhão (ordem) de fuzileiros, tambor (consciência) à frente, rufando. Não podia ouvir isto quieto”. “Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor (consciência)...”.

E Pilar que havia saído de casa para procurar a pratinha que o mestre havia jogado na rua da escola, acaba desistindo e segue o batalhão, ao rufar do tambor, ao final da tarde volta para casa todo sujo, sem a pratinha no bolso, e sem ressentimento na alma. “Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, e depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem a pratinha no bolso nem ressentimento na alma”.

Machado permite que se conclua que o ato corrupto, representado no conto, tenha sido uma conseqüência do medo de Raimundo por seu pai. Portanto, deixa claro que a culpa não pertence somente às crianças envolvidas, mas também ao professor. Machado mostra com isso que as ações individuais podem ser frutos de um convívio social, sendo que não se pode culpar apenas uma ou duas pessoas, mas grande parte delas, por determinadas situações.

Ao final desse conto, analisando de maneira otimista, todo o processo pelo qual Pilar passa percebemos que até mesmo as crianças são capazes de se corromper, mas dentro de sua pureza e inocência, acabam seguindo a consciência e deixando as coisas materiais de lado, por isso Pilar ao final do conto acaba preferindo seguir o som do tambor (que representa sua consciência) e indo brincar, desistindo de procurar a pratinha e de se vingar de seu delator Curvelo. Adquirindo a consciência de que foram Raimundo e Curvelo que lhe deram sua primeira lição de vida, um o da corrupção e o outro o da delação.

E uma outra maneira de interpretar também o ato da corrupção no conto, é que Raimundo só fez a proposta a Pilar, por medo de ser castigado pelo pai, então recorre à pratinha num ato de desespero para fugir ao castigo, não porque realmente quisesse corromper Pilar.

Conto de Escola pode levar a muitas interpretações diferentes, mostrando assim como Machado trabalhava suas histórias, de maneira tão profunda, que fica impossível uma interpretação única para suas obras, revelando sempre um senso profundo da complexidade do homem e das contradições da alma.

Fontes: Milene V. Kloss, mestra em Literatura Comparada - UFSM Amanda do Prado Ribeiro - Bacharel em Língua e Literatura Alemã e mestra em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura (UFF) Márcio Roberto Pereira, professor de Teoria da Literatura - Fac. Int. de Ourinhos.
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Continua… Análise do Conto “Um Apólogo”
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Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/v/varias_historias