Análise de Sonia Maribel Muñoz Croveto (UFSC), sob o título Entre a (des)leitura e a (des)escrita: o duplo conto Mariana
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“A leitura é uma ‘desescrita’ assim como a escrita é uma desleitura”.
Harold Bloom (1995, p.15)
Nas palavras de Harold Bloom encontro o principal deslinde para a seguinte leitura ou desleitura do conto Mariana de Machado de Assis. O fazer e desfazer, a escrita e desescrita, que se opera no duplo registro narrativo machadiano: o conto Mariana (1871), publicado no Jornal de Famílias, e o conto Mariana (1891), do livro Várias Histórias.
Os dois relatos, ainda que separados pelo tempo, se entrecruzam, imbricam e amalgamam configurando uma espécie de refração e desdobramento do tecido textual que remete às categorias de repetição e diferença, “não só em sua mais abstrata reflexão como também em suas técnicas efetivas” (DELEUZE, 1988, p. 15). [Deleuze (1988, p. 15), ao explorar a repetição e a diferença, coloca como uma das justificativas que, a arte do romance moderno contemporâneo gira em torno dessas duas categorias, a nível concreto e abstrato, a técnica e a reflexão.]
A repetição, a partir da definição de Deleuze (1988, p. 428), a considero como a ação que “coloca o conceito fora de si e faz com que ele exista em outros exemplares”. Essa existência multiplicada registra-se através do “deslocamento e do disfarce”, o que delineia ou demarca, em simultâneo, a construção da diferença. Essas categorias, na acepção utilizada, conjugam-se com a terminologia de desleitura e desescrita, que tem sua base na noção de influência, mas fora do sentido tradicional “da passagem de imagens e de idéias” de escritores para seus sucessores. A influência, como a concebe Bloom (1995, p. 15), “significa que não existem textos, apenas relações entre os textos”.
Em decorrência, a influência poética “depende de um ato crítico, uma desleitura ou desapropriação, que um poema exerce sobre outro” (BLOOM, 1995, p. 15): repetição e diferença. A proposta deste trabalho é demonstrar como se produz a desleitura e desescrita de Mariana sobre Mariana e, por conseguinte, de Machado de Assis sobre Machado de Assis.
Esta travessia inicia-se com o jogo dialético, os encontros e desencontros; prossegue com a busca das dobras do tecido textual, o disfarce histórico detrás da vida privada; e termina com a desmontagem da trama: o dizer e o desdizer, pêndulo que se movimenta entre a farsa e a tragédia.
Encontros e desencontros
No conto de 1871, Mariana é uma escrava, namorada do senhor da casa, que se suicida ante a impossibilidade desse amor. No conto de Várias Histórias, Mariana é uma mulher branca, casada, que tem uma relação extraconjugal e que, ao ser abandonada pelo amante, tenta suicidar-se, mas é salva pela mãe.
A Mariana negra surge na escrita como uma moça obediente para depois, transformar-se em uma cativa incontrolável. A Mariana branca, em um início, é uma mulher revoltada, que quebra o voto do matrimônio, mas ao final, converte-se em esposa exemplar. Ambas compartilham a metamorfose do eu, mas em sentido inverso. [A escrava Mariana lembra a cativa Sabina, personagem principal do poema do mesmo nome que Machado (1994, p. 140-145) publicou no livro de poemas Americanas (1875). Sabina, grávida, se suicida ao saber que Otávio, o moço da casa e pai do filho que esperava, havia-se casado. Sabina, como Mariana, havia sido criada na casa grande.]
As duas narrativas têm como eixo principal, pelo menos na parte superficial, o que se poderia denominar na época, uma relação “amorosa imprópria”. É aí a primeira unidade das histórias. E, também, o primeiro jogo dialético com respeito às personagens: branca/negra, livre/cativa, subordinação/ insubordinação e vida/morte,
O segundo encontro/desencontro registra-se no tempo-histórico. O primeiro conto não consigna nenhuma data, salvo o ano de publicação janeiro de 1871, no Jornal de Famílias. Essa data poderia servir de parâmetro para situar a história em 1871. Esse seria o ano de retorno de Macedo, o narrador, depois de 15 anos na Europa.
O segundo conto desborda-se de datas. Poder-se-ia dizer que tem seu ponto de partida em 1872, quando Evaristo, o amante da Mariana branca, parte a Europa. E só retorna em 1890. E não por uma questão de amor, senão de curiosidade: queria saber o que tinha acontecido no Brasil em novembro de 1889.
Ao se comparar o ano de início de ambas narrativas com a história do Brasil, contextualiza-se que, em 1871, se tinha o debate político da lei de libertação dos escravos. Aí se apresenta outra ambivalência. Macedo retorna ao Brasil antes da sanção da lei que dava liberdade aos filhos dos escravos e Evaristo parte após da aprovação.
Como se observa, o tempo histórico narrativo é antagônico e de continuação: onde termina uma história, começa a outra. Aqui outra vez o jogo dialético: inicio/fim, datas/sem datas, escravidão/libertação. E outra unidade: Macedo e Evaristo retornam de uma viagem/exílio na Europa, mas só de visita.
As diferenças e semelhanças, também, se apresentam no caso do narrador e sua relação com o conflito amoroso. No conto de 1871, o narrador, Macedo, começa o relato em primeira pessoa para depois introduzir a história de seu amigo Coutinho com a escrava Mariana, acentuando que a moça era tratada como filha e não cativa.
Macedo descreve um Coutinho perplexo e comovido pela paixão que tinha despertado na jovem escrava. O suicídio de Mariana ocasiona a metamorfose de Coutinho: a redescoberta e afloração de um outro eu. Quinze anos depois desse fato, em 1871, é a voz desse outro Coutinho, surgido na dor, que confessa aos amigos: Creio que posso dizer ainda hoje que todas as mulheres de quem tenho sido amado, nenhuma me amou mais do que aquela. Sem alimentar-se de nenhuma esperança, entregou-se alegremente ao fogo do martírio; amor obscuro, silencioso, desesperado, inspirando o riso ou a indignação, mas no fundo amor imenso e profundo, sincero e inalterável (MACHADO, 1994, p. 783).
A declaração de Coutinho foge das convenções sociais, mas na escrita não desperta nenhuma voz de censura, pelo contrário percebe-se um ambiente de solidariedade entre os amigos, sobretudo quando o narrador acentua que o relato “foi ouvido com tristeza por todos”. Essa tristeza teria suas raízes na luta abolicionista?
No conto Mariana, de Várias Histórias, não existe relação entre o narrador e os personagens. O narrador parece ser um espectador que segue a Evaristo, mas é um observador que se movimenta entre o real e o irreal, o passado e o presente, o interno e o externo, mergulhando na psique dos autores do drama.
O deslocamento do mundo real produz-se no momento que Evaristo espera ser recebido por Mariana. Ao olhar o retrato da moça, “com seus lindos olhos redondos enamorados”, Evaristo o desdobra, reproduzindo uma antiga cena de amor. Mariana adquire, assim, forma real. Desprende-se do retrato e reúne-se com o amante:
[...] vagarosamente, Mariana desceu da tela e da moldura, e veio sentar-se defronte de Evaristo, inclinou-se, estendeu os braços sobre os joelhos e abriu as mãos. Evaristo entregou-lhes as suas, e as quatro apertaram-se cordialmente (MACHADO, 1994, p. 543).
Esta imagem machadiana traz reminiscências do conto O Retrato (1832), de Nikolai Gogol. Na história russa, Chartkov, protagonista do relato, compra o retrato de um ancião impressionado por seus olhos vivazes, “uns olhos onde o artista parecia ter concentrado toda a força do pincel e toda a habilidade” (GOGOL, 1955, p. 641).
Dias depois, Chartkov viu, com horror, “o ancião se mover e se apoiar com as mãos na moldura”, de imediato “se endereçar, esticar as pernas e pular fora” (GOGOL, 1955, p. 649). Como Mariana, o velho abandona o retrato. A experiência desperta dúvida em Chartkov: “Talvez não fosse só um sonho ou um delírio, senão uma autêntica visão” (GOGOL, 1955, p. 652).
Aí a diferença de Chartkov com Evaristo. Chartkov é incapaz de separar a realidade da fantasia, Evaristo, por sua parte, reconhece e assume a duplicidade da percepção. Ele desempenha, ao mesmo tempo, a função de testemunha e protagonista da história. Não se perde nos caminhos da imaginação.
A presença desse duplo consciente poderia ser interpretada em palavras de Derrida (Apud ROSSET, 1998, p. 101), como “a eterna ausência de um presente verdadeiro”. Para Evaristo, o passado seria a imagem original que dispensa qualquer outra. Essa imagem, origem do drama, ressurge dezoito anos depois da separação forçada.
A eterna repetição desse passado, que absorve o presente, registra-se quando o narrador descreve o encontro furtivo entre Evaristo e Mariana, em 1872, e que se vivencia como se fosse hoje:
Nenhum perguntou nada que se referisse ao passado, porque ainda não havia passado; ambos estavam no presente, as horas tinham parado, tão instantâneas e tão fixas, que pareciam haver sido ensaiadas na véspera para esta representação única e interminável. Todos os relógios da cidade e do mundo quebraram discretamente as cordas, e todos os relojoeiros trocaram de ofício (MACHADO, 1994, p. 543-544).
A atmosfera romântica, o passado que se repete, se dilui no cenário real. Mariana parece ter esquecido o passado. No tempo real, ela é uma devota esposa no leito agonizante do marido e depois, uma viúva que sofre até o delírio. Ao final, o encontro entre os ex-amantes será breve e indiferente, como dois estranhos.
O narrador do conto Mariana, de 1871, apresenta dois personagens marcados pela emoção; em contraposição, o narrador do conto Mariana, de Várias Histórias, mostra dois seres marcados pela razão. Coutinho nunca se recupera do suicídio da moça, Evaristo se recupera com facilidade da separação na Europa. A ambivalência no plano psicológico se produz, também, na construção da imagem de Mariana. Enquanto Coutinho constrói a imagem idealizada da Mariana negra e expressa remorso pelo suicídio da escrava, Evaristo desconstrói a imagem idealizada da Mariana branca e libera-se do remorso da infidelidade.
O antagonismo do narrador permite reconstruir o terceiro jogo dialético quecimenta a arquitetura textual: conhecido/desconhecido, emocional/racional, ilusão/desilusão, ficção/realidade. E até o dualismo que se registra na posição do olhar: um retorna da Europa e o outro, aparentemente, nunca saiu do Brasil.
As duas histórias são como dois pólos opostos unidos pela força de contrários. Na contradição – narrador, tempo e personagem – funda-se as bases da inter-relação de um tecido textual com o outro. Como se cada relato fosse uma face do outro. Repetição e diferença. Desleitura e desescrita. Essa unidade que se configura e complementa na oposição reflete-se, também, no viés encoberto da narrativa. Como apontei no início, de forma superficial, os dois contos seriam duas faces opostas de uma mesma temática: um caso de amor, que funciona como disfarce do eixo central que seria o questionamento da sociedade brasileira.
O disfarce histórico
Este segundo momento está influenciado pelo olhar de John Gledson. Para o pesquisador, os romances machadianos, “como um todo, pretendem transmitir grandes e importantes verdades históricas”. Segundo Gledson (1986, p. 17), no período de 1871 e 1894, Machado “mostra a impossibilidade de um Brasil em beneficio de seu povo”.
Seguindo esse caminho, ao retirar a máscara do fracasso amoroso, tem-se que a primeira história esconde/expõe o tema da escravidão e a segunda esconde/expõe o drama da Monarquia e a República. A micro-história funciona como protótipo e projetor da macro-história. A história individual encerra o drama nacional.
Machado parece ter escrito dois contos em cada um deles. Em cada narrativa há uma relato paralelo, um registro histórico encoberto, dois corpos de palavras que convidam a uma autopsia histórico-literária, a entrecruzar a História e a Literatura, para compreender a dobras da escrita machadiana.
O narrador do conto Mariana, de 1871, fica impressionado com as mudanças arquitetônicas e comerciais do Brasil durante os últimos 15 anos: Achei mudado o nosso Rio de Janeiro, e mudado para melhor. O jardim do Rocio, o boulevard Carceller, cinco ou seis hotéis novos, novos prédios, grande movimento comercial e popular [...] (MACHADO, 1994, p.771).
O historiador Cruz Costa (1989, p. 23) confirma a visão do narrador, quando refere que, de 1850 a 1870, o Brasil “passou por grandes transformações. Surgiram as estradas de ferro, o telégrafo e as primeiras indústrias”. No texto, a modernidade vai funcionar como contrapeso ou antítese de outra realidade.
Essa outra realidade transpassa a superfície. É uma radiografia da sociedade, na alma humana. O êxtase do narrador pelo desenvolvimento urbano, desloca-se para mostrar sua desilusão com a vida dos amigos, alguns deles ligados ao governo. A voz narrativa não faz distinção entre uns e outros:
Alguns amigos tinham morrido, outros estavam casados, outros viúvos. Quatro ou cinco tinham-se feito homens públicos, e um deles acabava de ser ministro de Estado. Sobre todos eles pesavam quinze anos de desilusões e cansaço. Eu, entretanto, vinha tão moço como fora, não no rosto e nos cabelos, que começavam a embranquecer, mas na alma e no coração que estavam em flor (MACHADO, 1994, p. 771).
Note-se a remarcação que faz ao falar de “quinze anos de desilusões e cansaço” que se pode estender à estrutura social do país. A cidade tinha trocado na parte exterior, mas no interior, na essência, seguia sendo a mesma cidade ancorada no tempo da escravidão, sistema político já “superado” na Europa.
Essa leitura desprende-se da perspicácia do narrador ao introduzir um “caso de amor” para falar da escravidão. Nas dobras do tecido textual registra-se a insubordinação de Mariana e o “projeto romântico” de alguns senhores de escravos de dar liberdade os cativos, o que pode fazer desse relato um conto de traços abolicionistas.
Coutinho, o escravista, olha a Marina como um ser humano, a despoja de sua condição de escrava, interessa-se por ela e segue passo a passo cada uma de suas reações. Ao descobrir certo ar de tristeza no rosto da cativa, que atribui a um amor impossível, tenta encontrar a origem da mágoa e pensa até em dar-lhe liberdade:
Parecia-me evidente que ela sentia alguma coisa por alguém, e ao mesmo tempo que o sentia, certa elevação e nobreza. Tais sentimentos contrastavam com a fatalidade de sua condição social. Que seria uma paixão daquela pobre escrava educada com mimos de senhora? Refleti longamente nisto tudo, e concebi um projeto romântico: obter a confissão franca de Mariana e, no caso em que se tratasse de um amor que a pudesse tornar feliz, pedir a minha mãe a liberdade da escrava (MACHADO, 1994, p. 776).
No personagem Coutinho, Machado concentra as vozes, quase apagadas, de alguns traços abolicionistas. Não se poderia falar de abolição porque Coutinho não fala da libertação de todos os cativos. Não renuncia a seu status de escravista. Restringe seu projeto, que não chega a concretizar, a um caso específico.
Coutinho é revestido de sentimentos e atitudes que não correspondem a sua condição social: a extrema preocupação por indagar a tristeza da cativa. Pelo contrário, a Mariana2 dócil e meiga das primeiras linhas transforma-se em uma moça revoltada, que foge, enfrenta ao amo e decide a morte.
“A gentil mulatinha” de Machado é uma insubordinada que renega de haver sido tratada como “filha”, fato que, com extrema lucidez, reconhece como disfarce da escravidão em um diálogo com Coutinho. Diálogo onde, em alguns momentos, se coloca em nível de igualdade com o amo:
-Não falemos nisso, nhonhô. Não se trata de amores, que eu não posso ter amores. Sou uma simples escrava.
-Escrava, é verdade, mas escrava quase senhora. És tratada aqui como filha da casa. Esqueces esses benefícios?
-Não os esqueço; mas tenho grande pena em havê-los recebido.
-Que dizes, insolente?
-Insolente? Disse Mariana com altivez. Perdão continuou ela voltando à sua humildade natural e ajoelhando-se a meus pés (MACHADO, 1994, p. 776).
A voz sempre calada da escrava emerge, novamente, para gritar: “Não! Não irei” quando é descoberta na primeira fuga, mas ante o inevitável retorno à fazenda, diz desafiante: “que importa que faça? Eu estou disposta a tudo”. Surpreende ainda mais a transparência de suas palavras quando responde a Coutinho o porquê da fuga:
- Se alguém me seduziu? Perguntou ela; não, ninguém; fugi porque eu o amo, e não posso ser amada, eu sou uma infeliz escrava. Aqui está por que eu fugi. Podemos ir; já disse tudo. Estou pronta a carregar com as conseqüências disto (MACHADO, 1994, p. 779).
Semanas depois, Mariana volta a fugir e ao ser encontrada, outra vez lança o desafio: “estou disposta a tudo”. Esta vez suicida-se. Antes de expirar, a moça libera a Coutinho – o escravista e, em paralelo, o amor impossível – de qualquer remorso: “Nhonhô não tem a culpa: a culpa é da natureza” (MACHADO, 1994, p. 783).
Que quis dizer Mariana com “a culpa é da natureza”? Com esta frase ambivalente, Machado, de alguma forma, libera a Coutinho – representante do sistema político – da tragédia da escrava, mas em simultâneo, no desenvolvimento do texto, acusa a Coutinho e o sistema político da tragédia. Eis aqui um duplo discurso político. [Chalhoub (1998, p. 97-99) aponta que Machado, “em vários de seus escritos, testemunhou e analisou sistematicamente o ponto do vista do dominado”, fazendo uso “de uma arte arriscada, que ratificava a ideologia paternalista na aparência mesma quando roía-lhe os alicerces”. Traço que prefiro denominar de duplo discurso político.]
A duplicidade do discurso político aparece, também, na fala de Coutinho. Como escravista, persegue a fugitiva, vai à polícia e não desiste da busca, mas antes da fuga, mostra-se partidário de liberar a Mariana, mais um “projeto romântico” no cenário político brasileiro de 1856 a 1871. Projeto que se (des)constrói no texto.
O simples fato de Machado humanizar a escrava e de revesti-la de atributos característicos de uma moça branca culta, (Mariana sabe ler, escrever e fala francês) pode ser entendido como um sutil discurso de igualdade enquanto que a postura de Coutinho, a grande comédia da sociedade a respeito da abolição.
A mesma sutileza que utiliza para se referir à escravidão, reaparece no conto Mariana, de Várias Histórias, para questionar todo o aparato político, social e econômico. Aí o tema da escravidão não será aludido de forma direta. Será um olhar crítico da história no período de 1872 a 1890. [Para Gledson (1991, p. 87), Machado encarava o ano de 1871, como um ano decisivo para história do Brasil, por ser o ano de aprovação da Lei do ventre livre e das primeiras divergências na oligarquia.]
O conto inicia-se com a seguinte pergunta: que será feito de Mariana? Interrogante que, no transcorrer da leitura, pode-se transformar em uma indagação mais abrangente: que será feito do Brasil? Isso devido a que o motivo da viagem do protagonista radica em conhecer os pormenores da revolução de novembro de 1889.
Desde a partida de Evaristo a Europa, em 1872, até seu retorno em 1890, o Brasil tinha passado por diversas transformações: a libertação dos escravos, a queda da monarquia, a proclamação da República e a instalação da Assembléia Constituinte, mas o olhar de Evaristo é incapaz de enxergar essas mudanças. Essa incapacidade de olhar, não se restringe só a Evaristo, é a marca do brasileiro que conviveu com a história, daquele que foi espectador das “modificações políticas”. O personagem Evaristo concentra e projeta a impossibilidade do homem comum de perceber e capturar as mudanças da estrutura política do país.
A referida interpretação baseia-se nos livros de história de João Costa Cruz e Nelson Werneck Sodré. Costa Cruz (1989, p. 26-45) destaca que “o Império foi liquidado de maneira sumária”, em um clima de indiferença, “pois a República nada mais foi, uma vez ainda, do que uma nova composição de classes dominantes”.
Na mesma linha, Werneck (1970, p. 291) refere que “a aceitação plena e pacífica” da instalação da República lembra os “acontecimentos, rápidos, superficiais, consumados e tranqüilamente recebidos”. Machado ressaltara esse traço superficial do que fala Werneck ao comparar a mudança política do Brasil a uma obra teatral no conto Mariana.
É assim que, nas primeiras linhas, antes de partir ao Brasil, aparece um Evaristo interessado em saber a data de representação da comédia de um amigo. Faz as contas da viagem e conclui que, voltando meses depois, “chegaria a tempo de comprar o bilhete”. Quando retorna a Paris descobre que a obra tinha sido retirada.
Nesse momento, no final, se desvela todo o transfundo político do relato. “Cousas do teatro, disse Evaristo ao autor da obra, para consolá-lo. Há peças que caem. Há outras que ficam no repertório” (MACHADO, 1994, p. 548). Adequando essas palavras ao cenário político do Brasil, teríamos “coisas da política. Há governos que caem. Há outros que ficam”.
A afirmativa de Evaristo traz à memória a “aceitação plena e pacífica” da República. E também “os dez governos que se sucederam no poder de 1880 a 1889, representando pontos de vista diversos ou opostos” (HOLANDA, 1977, p. 350). Em base a esse antecedente político, não é por acaso que Machado escolhe como obra teatral uma “comédia”. [Holanda (1977, p. 354) descreve-se, também, que a maior parte da povoação esperava a morte natural do segundo reinado com a morte natural do rei, e preparava-se para a mudança infalível. Daí que a queda da Monarquia não foi uma surpresa para o país.]
A vida política transformada em comédia. Uma comédia que cai do cenário, como caíram, um a um, os dez governos dos últimos nove anos de Monarquia. Nesse contexto, Evaristo representa a ausência e a indiferença, Mariana a “aceitação plena e pacífica”. Evaristo foge, Mariana se reacomoda no cenário social.
Uma vez nus os personagens, aflora o discurso político camuflado, o ataque com a palavra escondida. A escrita da realidade detrás dos muros da fantasia amorosa. A (des)leitura do Brasil. O Brasil como um texto que Machado lê e (des)lê, escreve e (des)escreve, arma e desarma em duas nada inocentes historinhas de amor.
A desmontagem do leitor/autor
Das entrelinhas dos textos, de um Machado que descreve a sociedade brasileira, agora me centrarei no movimento oscilatório que vai da tragédia à farsa e da farsa à tragédia. Dupla ação que se registra nas costuras da trama e na inter-relação de um conto com o outro. Outra remarcação do avesso e da unidade.
A Mariana negra é um relato trágico. Tem uma suicida, uma noiva que dissolve o noivado quatro dias antes do matrimônio e um homem – culpável do suicídio e abandonado quase no altar – que, apesar dos 15 anos transcorridos, ainda não consegue rearmar a vida. A história avança do amor à dor e da dor à morte. Depois de 20 anos de ter escrito esse conto com traços de tragédia, Machado reescreve a história da Mariana negra e constrói uma farsa do relato original. A trama da segunda versão converte-se em uma farsa porque o suposto amor entre Evaristo e Mariana, descrito como uma fatalidade, não passa de um “caso ocasional”.
É a mesma Mariana que defende a instituição do matrimônio e aclara a Evaristo, o amante, que nunca deixará o marido:
-Não venhas outra vez com essa eterna desconfiança, atalhou Mariana sorrindo, como na tela, há pouco. Que quer você que eu faça? Xavier é meu marido; não hei de mandá-lo embora, nem castigá-lo, nem matá-lo, só porque eu e você nos amamos (MACHADO, 1994, p. 544)
A família se sobrepõe à paixão amorosa. O realismo supera o romantismo. E os dois personagens inserem-se, finalmente, no caminho da “ideologia decente e familiar, amiga de sacrifícios” (SCHWARZ, 1981, p. 108). Evaristo parte à Europa, para se curar do amor irrealizável, e Mariana, aferra-se ao amor oficial, o amor do esposo. A tragédia e a farsa que se descobre a nível macro, ao situar um conto frente ao outro, se desfaz na estrutura de cada relato. O conto Mariana, de 1871, desenvolve toda a tragédia, mas ao final do relato, Coutinho, o sobrevivente da história, parte com os amigos para “examinar os pés das damas que desciam dos carros”. [Schwarz (1981, p. 63) destaca que, nos primeiros romances, Machado insistia na santidade das famílias, traço que qualifica de “conformismo”, mas no caso do conto Mariana (1891) eu o observo como parte do duplo discurso, a construção e desconstrução da família.]
Com essa descrição Machado acaba, na última linha, com a tragédia e funda um ambiente de farsa, quebrando a direção do relato. No seguinte conto, o processo se inverte. As tentativas de Evaristo de ver a Mariana, para levar “a imagem -deteriorada embora- daquela paixão de quatro anos” (MACHADO, 1994, p. 548) criam uma tragédia encoberta.
Eis, aqui, o processo de desmontagem no interior de cada texto e em sua identificação com o outro. Duas trilhas literárias divergentes, que se entrecruzam com tal naturalidade que, o leitor passa de um extremo a outro, conduzido ou seduzido pelo duplo olhar de um Machado autor/leitor.
Esse duplo olhar instaura uma Mariana negra que frente ao espelho, reflete uma Mariana branca. Imagem contrária/imagem prolongada que emerge nos encontros e desencontros, nas dobras do disfarce histórico e na arquitetura textual. Concentra-se aí o avesso da leitura e da escrita: desleitura e desescrita.
Bibliografia
BLOOM, Harold. Um mapa da desleitura. Trad. Thélma Médici Nóbrega. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
_____ Cabala e crítica. Trad. Monique Balbuena. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
_____ A angústia da influência. Trad. Arthur Nestrovski. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. O Brasil monárquico. Tomo II da História geral da civilização brasileira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1977.
CRUZ COSTA, João. Pequena História da República. São Paulo: Brasiliense, 1989.
CHALHOUB, Sidney. “Diálogos políticos em Machado de Assis”. In: A história contada. Sidney Chalhoub; Leonardo de Miranda Pereira (org.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 95-122.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
FURLAN, Stélio. Machado de Assis: o crítico/ enigma de um rio sem margens. Florianópolis: Momento atual, 2003.
GLEDSON, John. Machado de Assis: impostura e realismo. Trad. Fernando Py. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
_____ Machado de Assis: ficção e história. Trad. Sônia Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
GOGOL, Nikolai. O retrato. In: Obras Completas. Trad. Irene Tchernowa. Madrid: Aguilar, 1955.
MACHADO DE ASSIS. Obra Completa. Afrânio Coutinho (Org.). V. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
MAGALHÃES, Raimundo. Machado de Assis desconhecido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
MATOS, Mário. Machado de Assis: o homem e a obra/ os personagens explicam o autor. V. 153. Rio de Janeiro: Nacional, 1939.
VIERA, Mirella. “Quase silêncio, quase melodia: a paixão amorosa nos contos de Machado de Assis”. In: Cânone e contextos. 5 Congresso Abralic-Anais. V. 2. Rio de Janeiro: [s.n], 1998, p. 445-448.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas cidades, 1981.
WERNECK SODRÉ, Nelson. Formação Histórica do Brasil. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1970.
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Continua… Análise do conto “12. Conto de Escola”.
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“A leitura é uma ‘desescrita’ assim como a escrita é uma desleitura”.
Harold Bloom (1995, p.15)
Nas palavras de Harold Bloom encontro o principal deslinde para a seguinte leitura ou desleitura do conto Mariana de Machado de Assis. O fazer e desfazer, a escrita e desescrita, que se opera no duplo registro narrativo machadiano: o conto Mariana (1871), publicado no Jornal de Famílias, e o conto Mariana (1891), do livro Várias Histórias.
Os dois relatos, ainda que separados pelo tempo, se entrecruzam, imbricam e amalgamam configurando uma espécie de refração e desdobramento do tecido textual que remete às categorias de repetição e diferença, “não só em sua mais abstrata reflexão como também em suas técnicas efetivas” (DELEUZE, 1988, p. 15). [Deleuze (1988, p. 15), ao explorar a repetição e a diferença, coloca como uma das justificativas que, a arte do romance moderno contemporâneo gira em torno dessas duas categorias, a nível concreto e abstrato, a técnica e a reflexão.]
A repetição, a partir da definição de Deleuze (1988, p. 428), a considero como a ação que “coloca o conceito fora de si e faz com que ele exista em outros exemplares”. Essa existência multiplicada registra-se através do “deslocamento e do disfarce”, o que delineia ou demarca, em simultâneo, a construção da diferença. Essas categorias, na acepção utilizada, conjugam-se com a terminologia de desleitura e desescrita, que tem sua base na noção de influência, mas fora do sentido tradicional “da passagem de imagens e de idéias” de escritores para seus sucessores. A influência, como a concebe Bloom (1995, p. 15), “significa que não existem textos, apenas relações entre os textos”.
Em decorrência, a influência poética “depende de um ato crítico, uma desleitura ou desapropriação, que um poema exerce sobre outro” (BLOOM, 1995, p. 15): repetição e diferença. A proposta deste trabalho é demonstrar como se produz a desleitura e desescrita de Mariana sobre Mariana e, por conseguinte, de Machado de Assis sobre Machado de Assis.
Esta travessia inicia-se com o jogo dialético, os encontros e desencontros; prossegue com a busca das dobras do tecido textual, o disfarce histórico detrás da vida privada; e termina com a desmontagem da trama: o dizer e o desdizer, pêndulo que se movimenta entre a farsa e a tragédia.
Encontros e desencontros
No conto de 1871, Mariana é uma escrava, namorada do senhor da casa, que se suicida ante a impossibilidade desse amor. No conto de Várias Histórias, Mariana é uma mulher branca, casada, que tem uma relação extraconjugal e que, ao ser abandonada pelo amante, tenta suicidar-se, mas é salva pela mãe.
A Mariana negra surge na escrita como uma moça obediente para depois, transformar-se em uma cativa incontrolável. A Mariana branca, em um início, é uma mulher revoltada, que quebra o voto do matrimônio, mas ao final, converte-se em esposa exemplar. Ambas compartilham a metamorfose do eu, mas em sentido inverso. [A escrava Mariana lembra a cativa Sabina, personagem principal do poema do mesmo nome que Machado (1994, p. 140-145) publicou no livro de poemas Americanas (1875). Sabina, grávida, se suicida ao saber que Otávio, o moço da casa e pai do filho que esperava, havia-se casado. Sabina, como Mariana, havia sido criada na casa grande.]
As duas narrativas têm como eixo principal, pelo menos na parte superficial, o que se poderia denominar na época, uma relação “amorosa imprópria”. É aí a primeira unidade das histórias. E, também, o primeiro jogo dialético com respeito às personagens: branca/negra, livre/cativa, subordinação/ insubordinação e vida/morte,
O segundo encontro/desencontro registra-se no tempo-histórico. O primeiro conto não consigna nenhuma data, salvo o ano de publicação janeiro de 1871, no Jornal de Famílias. Essa data poderia servir de parâmetro para situar a história em 1871. Esse seria o ano de retorno de Macedo, o narrador, depois de 15 anos na Europa.
O segundo conto desborda-se de datas. Poder-se-ia dizer que tem seu ponto de partida em 1872, quando Evaristo, o amante da Mariana branca, parte a Europa. E só retorna em 1890. E não por uma questão de amor, senão de curiosidade: queria saber o que tinha acontecido no Brasil em novembro de 1889.
Ao se comparar o ano de início de ambas narrativas com a história do Brasil, contextualiza-se que, em 1871, se tinha o debate político da lei de libertação dos escravos. Aí se apresenta outra ambivalência. Macedo retorna ao Brasil antes da sanção da lei que dava liberdade aos filhos dos escravos e Evaristo parte após da aprovação.
Como se observa, o tempo histórico narrativo é antagônico e de continuação: onde termina uma história, começa a outra. Aqui outra vez o jogo dialético: inicio/fim, datas/sem datas, escravidão/libertação. E outra unidade: Macedo e Evaristo retornam de uma viagem/exílio na Europa, mas só de visita.
As diferenças e semelhanças, também, se apresentam no caso do narrador e sua relação com o conflito amoroso. No conto de 1871, o narrador, Macedo, começa o relato em primeira pessoa para depois introduzir a história de seu amigo Coutinho com a escrava Mariana, acentuando que a moça era tratada como filha e não cativa.
Macedo descreve um Coutinho perplexo e comovido pela paixão que tinha despertado na jovem escrava. O suicídio de Mariana ocasiona a metamorfose de Coutinho: a redescoberta e afloração de um outro eu. Quinze anos depois desse fato, em 1871, é a voz desse outro Coutinho, surgido na dor, que confessa aos amigos: Creio que posso dizer ainda hoje que todas as mulheres de quem tenho sido amado, nenhuma me amou mais do que aquela. Sem alimentar-se de nenhuma esperança, entregou-se alegremente ao fogo do martírio; amor obscuro, silencioso, desesperado, inspirando o riso ou a indignação, mas no fundo amor imenso e profundo, sincero e inalterável (MACHADO, 1994, p. 783).
A declaração de Coutinho foge das convenções sociais, mas na escrita não desperta nenhuma voz de censura, pelo contrário percebe-se um ambiente de solidariedade entre os amigos, sobretudo quando o narrador acentua que o relato “foi ouvido com tristeza por todos”. Essa tristeza teria suas raízes na luta abolicionista?
No conto Mariana, de Várias Histórias, não existe relação entre o narrador e os personagens. O narrador parece ser um espectador que segue a Evaristo, mas é um observador que se movimenta entre o real e o irreal, o passado e o presente, o interno e o externo, mergulhando na psique dos autores do drama.
O deslocamento do mundo real produz-se no momento que Evaristo espera ser recebido por Mariana. Ao olhar o retrato da moça, “com seus lindos olhos redondos enamorados”, Evaristo o desdobra, reproduzindo uma antiga cena de amor. Mariana adquire, assim, forma real. Desprende-se do retrato e reúne-se com o amante:
[...] vagarosamente, Mariana desceu da tela e da moldura, e veio sentar-se defronte de Evaristo, inclinou-se, estendeu os braços sobre os joelhos e abriu as mãos. Evaristo entregou-lhes as suas, e as quatro apertaram-se cordialmente (MACHADO, 1994, p. 543).
Esta imagem machadiana traz reminiscências do conto O Retrato (1832), de Nikolai Gogol. Na história russa, Chartkov, protagonista do relato, compra o retrato de um ancião impressionado por seus olhos vivazes, “uns olhos onde o artista parecia ter concentrado toda a força do pincel e toda a habilidade” (GOGOL, 1955, p. 641).
Dias depois, Chartkov viu, com horror, “o ancião se mover e se apoiar com as mãos na moldura”, de imediato “se endereçar, esticar as pernas e pular fora” (GOGOL, 1955, p. 649). Como Mariana, o velho abandona o retrato. A experiência desperta dúvida em Chartkov: “Talvez não fosse só um sonho ou um delírio, senão uma autêntica visão” (GOGOL, 1955, p. 652).
Aí a diferença de Chartkov com Evaristo. Chartkov é incapaz de separar a realidade da fantasia, Evaristo, por sua parte, reconhece e assume a duplicidade da percepção. Ele desempenha, ao mesmo tempo, a função de testemunha e protagonista da história. Não se perde nos caminhos da imaginação.
A presença desse duplo consciente poderia ser interpretada em palavras de Derrida (Apud ROSSET, 1998, p. 101), como “a eterna ausência de um presente verdadeiro”. Para Evaristo, o passado seria a imagem original que dispensa qualquer outra. Essa imagem, origem do drama, ressurge dezoito anos depois da separação forçada.
A eterna repetição desse passado, que absorve o presente, registra-se quando o narrador descreve o encontro furtivo entre Evaristo e Mariana, em 1872, e que se vivencia como se fosse hoje:
Nenhum perguntou nada que se referisse ao passado, porque ainda não havia passado; ambos estavam no presente, as horas tinham parado, tão instantâneas e tão fixas, que pareciam haver sido ensaiadas na véspera para esta representação única e interminável. Todos os relógios da cidade e do mundo quebraram discretamente as cordas, e todos os relojoeiros trocaram de ofício (MACHADO, 1994, p. 543-544).
A atmosfera romântica, o passado que se repete, se dilui no cenário real. Mariana parece ter esquecido o passado. No tempo real, ela é uma devota esposa no leito agonizante do marido e depois, uma viúva que sofre até o delírio. Ao final, o encontro entre os ex-amantes será breve e indiferente, como dois estranhos.
O narrador do conto Mariana, de 1871, apresenta dois personagens marcados pela emoção; em contraposição, o narrador do conto Mariana, de Várias Histórias, mostra dois seres marcados pela razão. Coutinho nunca se recupera do suicídio da moça, Evaristo se recupera com facilidade da separação na Europa. A ambivalência no plano psicológico se produz, também, na construção da imagem de Mariana. Enquanto Coutinho constrói a imagem idealizada da Mariana negra e expressa remorso pelo suicídio da escrava, Evaristo desconstrói a imagem idealizada da Mariana branca e libera-se do remorso da infidelidade.
O antagonismo do narrador permite reconstruir o terceiro jogo dialético quecimenta a arquitetura textual: conhecido/desconhecido, emocional/racional, ilusão/desilusão, ficção/realidade. E até o dualismo que se registra na posição do olhar: um retorna da Europa e o outro, aparentemente, nunca saiu do Brasil.
As duas histórias são como dois pólos opostos unidos pela força de contrários. Na contradição – narrador, tempo e personagem – funda-se as bases da inter-relação de um tecido textual com o outro. Como se cada relato fosse uma face do outro. Repetição e diferença. Desleitura e desescrita. Essa unidade que se configura e complementa na oposição reflete-se, também, no viés encoberto da narrativa. Como apontei no início, de forma superficial, os dois contos seriam duas faces opostas de uma mesma temática: um caso de amor, que funciona como disfarce do eixo central que seria o questionamento da sociedade brasileira.
O disfarce histórico
Este segundo momento está influenciado pelo olhar de John Gledson. Para o pesquisador, os romances machadianos, “como um todo, pretendem transmitir grandes e importantes verdades históricas”. Segundo Gledson (1986, p. 17), no período de 1871 e 1894, Machado “mostra a impossibilidade de um Brasil em beneficio de seu povo”.
Seguindo esse caminho, ao retirar a máscara do fracasso amoroso, tem-se que a primeira história esconde/expõe o tema da escravidão e a segunda esconde/expõe o drama da Monarquia e a República. A micro-história funciona como protótipo e projetor da macro-história. A história individual encerra o drama nacional.
Machado parece ter escrito dois contos em cada um deles. Em cada narrativa há uma relato paralelo, um registro histórico encoberto, dois corpos de palavras que convidam a uma autopsia histórico-literária, a entrecruzar a História e a Literatura, para compreender a dobras da escrita machadiana.
O narrador do conto Mariana, de 1871, fica impressionado com as mudanças arquitetônicas e comerciais do Brasil durante os últimos 15 anos: Achei mudado o nosso Rio de Janeiro, e mudado para melhor. O jardim do Rocio, o boulevard Carceller, cinco ou seis hotéis novos, novos prédios, grande movimento comercial e popular [...] (MACHADO, 1994, p.771).
O historiador Cruz Costa (1989, p. 23) confirma a visão do narrador, quando refere que, de 1850 a 1870, o Brasil “passou por grandes transformações. Surgiram as estradas de ferro, o telégrafo e as primeiras indústrias”. No texto, a modernidade vai funcionar como contrapeso ou antítese de outra realidade.
Essa outra realidade transpassa a superfície. É uma radiografia da sociedade, na alma humana. O êxtase do narrador pelo desenvolvimento urbano, desloca-se para mostrar sua desilusão com a vida dos amigos, alguns deles ligados ao governo. A voz narrativa não faz distinção entre uns e outros:
Alguns amigos tinham morrido, outros estavam casados, outros viúvos. Quatro ou cinco tinham-se feito homens públicos, e um deles acabava de ser ministro de Estado. Sobre todos eles pesavam quinze anos de desilusões e cansaço. Eu, entretanto, vinha tão moço como fora, não no rosto e nos cabelos, que começavam a embranquecer, mas na alma e no coração que estavam em flor (MACHADO, 1994, p. 771).
Note-se a remarcação que faz ao falar de “quinze anos de desilusões e cansaço” que se pode estender à estrutura social do país. A cidade tinha trocado na parte exterior, mas no interior, na essência, seguia sendo a mesma cidade ancorada no tempo da escravidão, sistema político já “superado” na Europa.
Essa leitura desprende-se da perspicácia do narrador ao introduzir um “caso de amor” para falar da escravidão. Nas dobras do tecido textual registra-se a insubordinação de Mariana e o “projeto romântico” de alguns senhores de escravos de dar liberdade os cativos, o que pode fazer desse relato um conto de traços abolicionistas.
Coutinho, o escravista, olha a Marina como um ser humano, a despoja de sua condição de escrava, interessa-se por ela e segue passo a passo cada uma de suas reações. Ao descobrir certo ar de tristeza no rosto da cativa, que atribui a um amor impossível, tenta encontrar a origem da mágoa e pensa até em dar-lhe liberdade:
Parecia-me evidente que ela sentia alguma coisa por alguém, e ao mesmo tempo que o sentia, certa elevação e nobreza. Tais sentimentos contrastavam com a fatalidade de sua condição social. Que seria uma paixão daquela pobre escrava educada com mimos de senhora? Refleti longamente nisto tudo, e concebi um projeto romântico: obter a confissão franca de Mariana e, no caso em que se tratasse de um amor que a pudesse tornar feliz, pedir a minha mãe a liberdade da escrava (MACHADO, 1994, p. 776).
No personagem Coutinho, Machado concentra as vozes, quase apagadas, de alguns traços abolicionistas. Não se poderia falar de abolição porque Coutinho não fala da libertação de todos os cativos. Não renuncia a seu status de escravista. Restringe seu projeto, que não chega a concretizar, a um caso específico.
Coutinho é revestido de sentimentos e atitudes que não correspondem a sua condição social: a extrema preocupação por indagar a tristeza da cativa. Pelo contrário, a Mariana2 dócil e meiga das primeiras linhas transforma-se em uma moça revoltada, que foge, enfrenta ao amo e decide a morte.
“A gentil mulatinha” de Machado é uma insubordinada que renega de haver sido tratada como “filha”, fato que, com extrema lucidez, reconhece como disfarce da escravidão em um diálogo com Coutinho. Diálogo onde, em alguns momentos, se coloca em nível de igualdade com o amo:
-Não falemos nisso, nhonhô. Não se trata de amores, que eu não posso ter amores. Sou uma simples escrava.
-Escrava, é verdade, mas escrava quase senhora. És tratada aqui como filha da casa. Esqueces esses benefícios?
-Não os esqueço; mas tenho grande pena em havê-los recebido.
-Que dizes, insolente?
-Insolente? Disse Mariana com altivez. Perdão continuou ela voltando à sua humildade natural e ajoelhando-se a meus pés (MACHADO, 1994, p. 776).
A voz sempre calada da escrava emerge, novamente, para gritar: “Não! Não irei” quando é descoberta na primeira fuga, mas ante o inevitável retorno à fazenda, diz desafiante: “que importa que faça? Eu estou disposta a tudo”. Surpreende ainda mais a transparência de suas palavras quando responde a Coutinho o porquê da fuga:
- Se alguém me seduziu? Perguntou ela; não, ninguém; fugi porque eu o amo, e não posso ser amada, eu sou uma infeliz escrava. Aqui está por que eu fugi. Podemos ir; já disse tudo. Estou pronta a carregar com as conseqüências disto (MACHADO, 1994, p. 779).
Semanas depois, Mariana volta a fugir e ao ser encontrada, outra vez lança o desafio: “estou disposta a tudo”. Esta vez suicida-se. Antes de expirar, a moça libera a Coutinho – o escravista e, em paralelo, o amor impossível – de qualquer remorso: “Nhonhô não tem a culpa: a culpa é da natureza” (MACHADO, 1994, p. 783).
Que quis dizer Mariana com “a culpa é da natureza”? Com esta frase ambivalente, Machado, de alguma forma, libera a Coutinho – representante do sistema político – da tragédia da escrava, mas em simultâneo, no desenvolvimento do texto, acusa a Coutinho e o sistema político da tragédia. Eis aqui um duplo discurso político. [Chalhoub (1998, p. 97-99) aponta que Machado, “em vários de seus escritos, testemunhou e analisou sistematicamente o ponto do vista do dominado”, fazendo uso “de uma arte arriscada, que ratificava a ideologia paternalista na aparência mesma quando roía-lhe os alicerces”. Traço que prefiro denominar de duplo discurso político.]
A duplicidade do discurso político aparece, também, na fala de Coutinho. Como escravista, persegue a fugitiva, vai à polícia e não desiste da busca, mas antes da fuga, mostra-se partidário de liberar a Mariana, mais um “projeto romântico” no cenário político brasileiro de 1856 a 1871. Projeto que se (des)constrói no texto.
O simples fato de Machado humanizar a escrava e de revesti-la de atributos característicos de uma moça branca culta, (Mariana sabe ler, escrever e fala francês) pode ser entendido como um sutil discurso de igualdade enquanto que a postura de Coutinho, a grande comédia da sociedade a respeito da abolição.
A mesma sutileza que utiliza para se referir à escravidão, reaparece no conto Mariana, de Várias Histórias, para questionar todo o aparato político, social e econômico. Aí o tema da escravidão não será aludido de forma direta. Será um olhar crítico da história no período de 1872 a 1890. [Para Gledson (1991, p. 87), Machado encarava o ano de 1871, como um ano decisivo para história do Brasil, por ser o ano de aprovação da Lei do ventre livre e das primeiras divergências na oligarquia.]
O conto inicia-se com a seguinte pergunta: que será feito de Mariana? Interrogante que, no transcorrer da leitura, pode-se transformar em uma indagação mais abrangente: que será feito do Brasil? Isso devido a que o motivo da viagem do protagonista radica em conhecer os pormenores da revolução de novembro de 1889.
Desde a partida de Evaristo a Europa, em 1872, até seu retorno em 1890, o Brasil tinha passado por diversas transformações: a libertação dos escravos, a queda da monarquia, a proclamação da República e a instalação da Assembléia Constituinte, mas o olhar de Evaristo é incapaz de enxergar essas mudanças. Essa incapacidade de olhar, não se restringe só a Evaristo, é a marca do brasileiro que conviveu com a história, daquele que foi espectador das “modificações políticas”. O personagem Evaristo concentra e projeta a impossibilidade do homem comum de perceber e capturar as mudanças da estrutura política do país.
A referida interpretação baseia-se nos livros de história de João Costa Cruz e Nelson Werneck Sodré. Costa Cruz (1989, p. 26-45) destaca que “o Império foi liquidado de maneira sumária”, em um clima de indiferença, “pois a República nada mais foi, uma vez ainda, do que uma nova composição de classes dominantes”.
Na mesma linha, Werneck (1970, p. 291) refere que “a aceitação plena e pacífica” da instalação da República lembra os “acontecimentos, rápidos, superficiais, consumados e tranqüilamente recebidos”. Machado ressaltara esse traço superficial do que fala Werneck ao comparar a mudança política do Brasil a uma obra teatral no conto Mariana.
É assim que, nas primeiras linhas, antes de partir ao Brasil, aparece um Evaristo interessado em saber a data de representação da comédia de um amigo. Faz as contas da viagem e conclui que, voltando meses depois, “chegaria a tempo de comprar o bilhete”. Quando retorna a Paris descobre que a obra tinha sido retirada.
Nesse momento, no final, se desvela todo o transfundo político do relato. “Cousas do teatro, disse Evaristo ao autor da obra, para consolá-lo. Há peças que caem. Há outras que ficam no repertório” (MACHADO, 1994, p. 548). Adequando essas palavras ao cenário político do Brasil, teríamos “coisas da política. Há governos que caem. Há outros que ficam”.
A afirmativa de Evaristo traz à memória a “aceitação plena e pacífica” da República. E também “os dez governos que se sucederam no poder de 1880 a 1889, representando pontos de vista diversos ou opostos” (HOLANDA, 1977, p. 350). Em base a esse antecedente político, não é por acaso que Machado escolhe como obra teatral uma “comédia”. [Holanda (1977, p. 354) descreve-se, também, que a maior parte da povoação esperava a morte natural do segundo reinado com a morte natural do rei, e preparava-se para a mudança infalível. Daí que a queda da Monarquia não foi uma surpresa para o país.]
A vida política transformada em comédia. Uma comédia que cai do cenário, como caíram, um a um, os dez governos dos últimos nove anos de Monarquia. Nesse contexto, Evaristo representa a ausência e a indiferença, Mariana a “aceitação plena e pacífica”. Evaristo foge, Mariana se reacomoda no cenário social.
Uma vez nus os personagens, aflora o discurso político camuflado, o ataque com a palavra escondida. A escrita da realidade detrás dos muros da fantasia amorosa. A (des)leitura do Brasil. O Brasil como um texto que Machado lê e (des)lê, escreve e (des)escreve, arma e desarma em duas nada inocentes historinhas de amor.
A desmontagem do leitor/autor
Das entrelinhas dos textos, de um Machado que descreve a sociedade brasileira, agora me centrarei no movimento oscilatório que vai da tragédia à farsa e da farsa à tragédia. Dupla ação que se registra nas costuras da trama e na inter-relação de um conto com o outro. Outra remarcação do avesso e da unidade.
A Mariana negra é um relato trágico. Tem uma suicida, uma noiva que dissolve o noivado quatro dias antes do matrimônio e um homem – culpável do suicídio e abandonado quase no altar – que, apesar dos 15 anos transcorridos, ainda não consegue rearmar a vida. A história avança do amor à dor e da dor à morte. Depois de 20 anos de ter escrito esse conto com traços de tragédia, Machado reescreve a história da Mariana negra e constrói uma farsa do relato original. A trama da segunda versão converte-se em uma farsa porque o suposto amor entre Evaristo e Mariana, descrito como uma fatalidade, não passa de um “caso ocasional”.
É a mesma Mariana que defende a instituição do matrimônio e aclara a Evaristo, o amante, que nunca deixará o marido:
-Não venhas outra vez com essa eterna desconfiança, atalhou Mariana sorrindo, como na tela, há pouco. Que quer você que eu faça? Xavier é meu marido; não hei de mandá-lo embora, nem castigá-lo, nem matá-lo, só porque eu e você nos amamos (MACHADO, 1994, p. 544)
A família se sobrepõe à paixão amorosa. O realismo supera o romantismo. E os dois personagens inserem-se, finalmente, no caminho da “ideologia decente e familiar, amiga de sacrifícios” (SCHWARZ, 1981, p. 108). Evaristo parte à Europa, para se curar do amor irrealizável, e Mariana, aferra-se ao amor oficial, o amor do esposo. A tragédia e a farsa que se descobre a nível macro, ao situar um conto frente ao outro, se desfaz na estrutura de cada relato. O conto Mariana, de 1871, desenvolve toda a tragédia, mas ao final do relato, Coutinho, o sobrevivente da história, parte com os amigos para “examinar os pés das damas que desciam dos carros”. [Schwarz (1981, p. 63) destaca que, nos primeiros romances, Machado insistia na santidade das famílias, traço que qualifica de “conformismo”, mas no caso do conto Mariana (1891) eu o observo como parte do duplo discurso, a construção e desconstrução da família.]
Com essa descrição Machado acaba, na última linha, com a tragédia e funda um ambiente de farsa, quebrando a direção do relato. No seguinte conto, o processo se inverte. As tentativas de Evaristo de ver a Mariana, para levar “a imagem -deteriorada embora- daquela paixão de quatro anos” (MACHADO, 1994, p. 548) criam uma tragédia encoberta.
Eis, aqui, o processo de desmontagem no interior de cada texto e em sua identificação com o outro. Duas trilhas literárias divergentes, que se entrecruzam com tal naturalidade que, o leitor passa de um extremo a outro, conduzido ou seduzido pelo duplo olhar de um Machado autor/leitor.
Esse duplo olhar instaura uma Mariana negra que frente ao espelho, reflete uma Mariana branca. Imagem contrária/imagem prolongada que emerge nos encontros e desencontros, nas dobras do disfarce histórico e na arquitetura textual. Concentra-se aí o avesso da leitura e da escrita: desleitura e desescrita.
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WERNECK SODRÉ, Nelson. Formação Histórica do Brasil. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1970.
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Continua… Análise do conto “12. Conto de Escola”.
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