sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Carlos Drummond de Andrade (Poesias Avulsas III)


A BRUXA

A Emil Farhat

Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.
Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.
De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?
E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse nesse minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.
Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e calma.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?
Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me,
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.
Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.

A CÂMARA VIAJANTE

Que pode a câmara fotográfica?
Não pode nada.
Conta só o que viu.
Não pode mudar o que viu.
Não tem responsabilidade no que viu.
A câmara, entretanto,
Ajuda a ver e rever, a multi-ver
O real nu, cru, triste, sujo.
Desvenda, espalha, universaliza.
A imagem que ela captou e distribui.
Obriga a sentir,
A, driticamente, julgar,
A querer bem ou a protestar,
A desejar mudança.
A câmara hoje passeia contigo pela Mata Atlântica.
No que resta - ainda esplendor - da mata Atlântica
Apesar do declínio histórico, do massacre
De formas latejantes de viço e beleza.
Mostra o que ficou e amanhã - quem sabe? acabará
Na infinita desolação da terra assassinada.
E pergunta: "Podemos deixar
Que uma faixa imensa do Brasil se esterilize,
Vire deserto, ossuário, tumba da natureza?"
Este livro-câmara é anseio de salvar
O que ainda pode ser salvo,
O que precisa ser salvo
Sem esperar pelo ano 2 mil.

ACORDAR, VIVER

Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

A CORRENTE

Sente raiva do passado
que o mantém acorrentado.
Sente raiva da corrente
a puxá-lo para a frente
e a fazer do seu futuro
o retorno ao chão escuro
onde jaz envilecida
certa promessa de vida
de onde brotam cogumelos
venenosos, amarelos,
e encaracoladas lesmas
deglutindo-se a si mesmas.

(in A Paixão Medida)

A EXCITANTE FILA DO FEIJÃO

Larga, poeta, a mesa de escritório,
esquece a poesia burocrática
e vai cedinho à fila do feijão.

Cedinho, eu disse? Vai, mas é de véspera,
seja noite de estrela ou chuva grossa,
e sem certeza de trazer dois quilos.

Certeza não terás, mas esperança
(que substitui, em qualquer caso, tudo),
uma espera-esperança de dez horas.

Dez, doze ou mais: o tempo não importa
quando aperta o desejo brasileiro
de ter no prato a preta, amiga vagem.

Camburões, patrulhinhas te protegem
e gás lacrimogêneo facilita
o ato de comprar a tua cota.

Se levas cassetete na cabeça
ou no braço, nas costas, na virilha,
não o leves a mal: é por teu bem.

O feijão é de todos, em princípio,
tal como a liberdade, o amor, o ar.
Mas há que conquistá-lo a teus irmãos.

Bocas oitenta mil vão disputando
cada manhã o que somente chega
para de vinte mil matar a gula.

Insiste, não desistas: amanhã
outros vinte mil quilos em pacotes
serão distribuídos dessa forma.

A conta-gotas vai-se escoando o estoque
armazenado nos porões do Estado.
Assim não falta nunca feijão-preto

(embora falte sempre nas panelas).
Método esconde-pinga: não percebes
que ele torna excitante a tua busca?

Supermercados erguem barricadas
contra esse teu projeto de comer.
Há gritos, há desmaios, há prisões.

Suspense à la Hitchcock ante as cerradas
portas de bronze, guardas do escondido
papilionáceo grão que ambicionas.

É a grande aventura oferecida
ao morno cotidiano em que vegetas.
Instante de vibrar, curtir a vida

na dimensão dramática da luta
por um ideal pedestre mas autêntico:
Feijão! Feijão, ao menos um tiquinho!

Caldinho de feijão para as crianças...
Feijoada, essa não: é sonho puro,
mas um feijão modesto e camarada

que lembre os tempos tão desmoronados
em que ele florescia atrás da casa
sem o olho normativo da Cobal.

Se nada conseguires... tudo bem.
Esperar é que vale - o povo sabe
enquanto leva as suas bordoadas.

Larga, poeta, o verso comedido,
a paz do teu jardim vocabular,
e vai sofrer na fila do feijão.

(in Amar Se Aprende Amando)

A FALTA DE ÉRICO

Falta alguma coisa no Brasil
depois da noite de Sexta-feira
Falta aquele homem no escritório
a tirar da máquina elétrica
o destino dos seres,
a explicação antiga da terra.
Falta uma tristeza de menino bom
caminhando entre adultos
na esperança da justiça
que tarda - como tarda!
a clarear o mundo.
Falta um boné, aquele jeito manso,
aquela ternura contida, óleo
a derramar-se lentamente,
falta o casal passeando no trigal.
Falta um solo de clarineta.

A FALTA QUE AMA

Entre areia, sol e grama
o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.

Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.

A transparência da hora
corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora
nem ri, patinando muros.

Já nem se escuta a poeira
que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se, inteira,
em letras de conclusão.

Por que é que revoa à toa
o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa
o tempo, chaga sem pus?

O inseto petrificado
na concha ardente do dia
une o tédio do passado
a uma futura energia.

No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É a falta ou ele que sente
o sonho do verbo amar?

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