quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Amélia Pinto Pais (Da Criação Poética)


"Je travaille tant que je peux et le mieux que je peux, toute la journée. Je donne toute ma mesure, tous mes moyens. Et après, si ce que j'ai fait n'est pas bon, je n'en suis plus responsable; c'est que je ne peux vraiment pas faire mieux". Henri Matisse
(Eu trabalho como posso e da melhor forma possível, todos os dias. Eu dou todo o meu potencial, todos os meus meios. E então, se o que eu fiz não é bom, eu sou mais responsável, porque eu realmente não posso fazer melhor)
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A Flor
Pede-se a uma criança. Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.

Passado algum tempo o papel está cheio de linhas, umas numa direcção, outras noutra; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu.

Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.

Depois a criança vem mostrar essa linhas às pessoas: uma flor!

As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!

Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!
José de Almada Negreiros
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Vou partir deste belíssimo texto poético de Almada Negreiros para abordar um pouco a questão do que é a criação poética e do fazer poético na óptica do criador e na óptica do destinatário, o leitor de poesia.

Assim: — segundo Almada, criar é fazer o percurso que a criança faz, ao desenhar, a pedido, uma flor. Segundo ele, a palavra "flor" entrou na cabeça da criança, foi da cabeça para o coração e deste outra vez para a cabeça, em busca das linhas com que se desenha uma flor. Terminado o processo (que é, afinal, de criação), a criança apresenta o seu produto — em que eventualmente o adulto não reconhece a flor — mas em que Deus se reconhece, pois são essas as linhas com que ele mesmo a fez.

Ora bem: — parece-me a mim que outra coisa não é que aquilo que os poetas sempre fizeram e Fernando Pessoa teorizou na sua célebre "Autopsicografia"1, ao afirmar, como base da criação poética, a noção de "fingimento" — segundo ele, o poeta "finge" a dor "que deveras sente". Que pretende ele dizer? Que o poeta mente? Não creio, nem ele diz tal. O que ele afirma aqui é o primado da dor eventualmente sentida (com o coração ou com a imaginação). Mas sentir é sentir, imaginar uma dor é imaginar a dor que poderia eventualmente existir. Criar um poema é algo de diferente.

Num outro poema que deve ler-se como complemento a "Autopsicografia", o poema "Isto"2, ele afirma mesmo: "Dizem que finjo ou minto / Tudo o que escrevo. Não./ Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. /Não uso o coração".

Um poema é um objecto, ao lado de outros objectos (como o desenho da flor é um objecto, neste caso gráfico, e não a flor em si mesma...). Resulta, diz o poeta "fingidor", (alguém preferiu chamar-lhe finge –dor) de um processo mental que designa de "fingimento" — isto é, neste caso do poema, a dor real ou imaginada vai do coração para a cabeça, torna-se objecto verbal — transfiguração do sentir em palavras (e não esqueçamos, as palavras, a linguagem, são produto, construção mental e objecto de aprendizagem — e não algo de inato,) em busca da sua expressão, igualmente verbal, em texto poético ou poema.

Ora, o leitor de poesia, como o adulto que olha os traços feitos pela criança e que ela diz ser uma flor, tem acesso apenas ao produto final — o poema ou o desenho da flor — que é a "dor" verbalizada através do tal processo mental de busca das linhas, neste caso, das palavras (que constituirão imagens, metáforas e outros processos como os que conseguem a música de que também é feito o poema). E a dor sentida então pelo leitor pode ou não ser idêntica à dor expressa verbalmente pelo poeta — como o adulto reconhece e se reconhece ou não nos traços / linhas do desenho da flor feito pela criança .

Ou seja: adulto ou leitor fazem exactamente o percurso inverso ao do criador: — têm acesso ao produto criado (desenho ou poema) e cumpre-lhes a caminhada até ao sentir originário ("na dor lida sentem bem/ não as duas que ele teve/ mas só a que eles não têm").

Criança e poeta buscam então, no processo de criação, a tal palavra ou linhas originais com que Deus fez a flor... No caso do poeta, e como afirma Pessoa em "Isto" a palavra seria então a plataforma, o terraço, para "outra coisa ainda". E "essa coisa (o poema, que mais não é que emoção transfigurada pela linguagem) é que é linda".

Levando às últimas consequências esta sua visão do processo de criação poética, Pessoa desdobrou-se em heterónimos — em que dissocia o Eu que escreve (ele, autor de todos) do Eu que "sente" ou "finge", transfigurando em palavras dores diversa ou semelhantemente sentidas e que não o são (sentidas) por ele, autor, mas por Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e tantos outros.

E preveniu-nos: — atenção, isso que têm aí, senhores leitores, não são dores, mas palavras que fingem dores eventualmente sentidas (ou imaginadas — "Dizem que finjo ou minto / Tudo o que escrevo. Não / Eu simplesmente sinto / Com a imaginação./ Não uso o coração". — poema "Isto"). Se querem sentir, sintam — mas sintam os vossos próprios sentires — "Sentir, sinta quem lê".

Mas, a verdade é que só sentimos com os poemas que estavam já como que em botão dentro de nós e que "partilhamos" com o poeta que os "fingiu" nessa luta incessante em busca da palavra justa...

Por isso, dizia-me uma amiga poetisa, a Soledade Santos (que integra o volume Quatro Poetas da Net): "Será por isso que às vezes, reconhecendo a grande qualidade de um poema (ou de um poeta), somos incapazes de nos comover? Há um reconhecimento da sua qualidade estética, mas o gozo estético não tem lugar".

Talvez seja por isso mesmo que, dizia eu em tempos, — Viver, ler e sentir a poesia é também sentir, tocar com a nossa alma e coração o coração e a alma que habitam o poema — ou que o poema sugere. Vem-me daí esse sentimento de uma certa espécie de "plágio" que eu sinto em relação a tantos poemas e poetas — os que dizem o indizível que só a palavra transfigurada permite. Como se eu fosse, também, uma espécie de coautora.

Sentir, sinta quem lê — é certo. Será, então, o leitor de poesia que se reconhece no sentir encontrado no poema uma espécie de coautor? Em todo o caso, será o leitor uma espécie de co-sentidor ???

Difícil sermos definitivos, na resposta. Como em quase tudo na vida, afinal...

É que, diz ainda Pessoa:

"E assim nas calhas de roda / gira a entreter a razão /Esse comboio de corda /Que se chama coração".

Coração — palavra chave de Almada Negreiros e também de Pessoa e palavra-chave do entendimento ("só se vê bem com o coração", dizia a raposa ao Principezinho) e que, sabemo-lo, "tem razões a razão desconhece".

Notas

1 AUTOPSICOGRAFIA (1930)

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda,
Gira, a entreter a razão,
Essse combóio de corda
Que se chama coração.

2 ISTO (1930)

Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé.
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Fonte:
Revista Gemina. dezembro, 2010

Um comentário:

Fanzine Episódio Cultural disse...

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