terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

André Carneiro em Xeque


entrevista realizada por Arthur Dantas

Quase todo mundo já ouviu falar do Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago ou pelo menos da adaptação light de Fernando Meirelles. Dá pra falar a mesma coisa do livro I Am a Legend, de Richard Matheson, adaptado em três ocasiões diferentes por Hollywood, sendo que a última, Eu Sou a Lenda, foi um desses blockbusters de verão estrelado por Will Smith e pela gostosa da Alice Braga. Agora, duvido que a maioria dessas pessoas conheça e/ou estabeleça a relação entre as obras acima e a do escritor André Carneiro, 87 anos, o maior escritor brasileiro de ficção científica e poeta renomado.

O pioneirismo e espírito curioso e vivaz de Carneiro se manifestaram publicamente na criação do jornal literário Tentativa — que ganhou recente edição fac-símile. Feito em sua cidade natal, Atibaia, no interior de São Paulo a partir de 1949, reuniu autores como José Lins do Rego, Murilo Mendes, Otto Maria Carpeaux, Vinícius de Moraes e Hilda Hilst (publicada lá pela primeira vez), para citarmos apenas alguns medalhões.

Apresentou ainda grandes artistas como Goeldi e Aldemir Martins. Seu amigo pessoal, o dândi libertário do modernismo Oswald de Andrade, assinou o editorial do primeiro número e ressaltou o espírito plural da empreitada. Em tudo, Tentativa era inovador e destoava do emaranhado de publicações literárias do período, que se agarravam a posições mais ou menos cristalizadas: luxo de jovens curiosos e empreendedores que podiam manter certa distância das estéreis pelejas intelectuais tão típicas dos meios ilustrados desde sempre.

Incentivado como poeta da terceira geração modernista por figuras notáveis como Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar, Carneiro também é ensaísta, fotógrafo, pintor, cineasta e escultor—tudo isso antes do termo multimídia virar muleta pra nego abastado e sem talento.

Ângulo e Face, sua estreia como poeta, foi editado por Cassiano Ricardo em 1949 e o colocou no rol dos grandes poetas do momento (o crítico francês Bertrand Lorraine afirmou que “Carneiro é um dos maiores poetas vivos do Brasil”).

Fez roteiros para filmes de Roberto Santos e Walter Hugo Cury. Seu conto O Mudo foi transformado no filme Alguém, de Júlio Xavier da Silveira. Sua fotografia Trilhos, de 1951, é considerada um dos marcos do modernismo fotográfico no Brasil e está presente no recém-lançado Fotografias Achadas, Perdidas e Construídas.

Suas obras de ficção científica foram publicadas nos Estados Unidos, Alemanha, França, Itália, Espanha, Argentina, Chile, Suécia, Bulgária, na antiga União Soviética e no Japão. Participou, ao lado de outro grande nome esquecido da sci-fi nacional, Jerônymo Monteiro, em histórico simpósio do gênero, organizado pelo tradutor José Sanz no Rio de Janeiro em 1969, com convidados como Robert Heinlein, J.G. Ballard, Arthur C. Clarke e Phillip José Farmer, entre outros. E, desse contato com mestres estrangeiros, passou a angariar elogios de Arthur C. Clark e do notável A. E. Van Vogt, que afirmou que Carneiro merecia a mesma audiência de um Franz Kafka ou Albert Camus. Apesar de todo peso de seu histórico literário e reconhecimento internacional.

Carneiro nunca pleiteou vaga na Academia Brasileira de Letras, como explicou em um site na net: “Tem-se de visitar todos os acadêmicos e pedir um voto a eles. Eu não seria capaz, acho provinciano.” Mais um motivo para quem não suporta o beija-mão usual para admirá-lo. É simples explicar seu ostracismo como ficcionista. Primeiro que sci-fi sofreu lapsos de continuidade no Brasil e acabou ficando restrita a círculos nerds conhecidos como fandom, e convenhamos, jogadores de RPGs, de jogos on-line e trekkies não despertam muito respeito por aí, e sua imaginação cheia de lirismo fértil e transgressora é muita treta pra Vinícius de Morais, por assim dizer.

Se é possível notar influências de Aldous Huxley e Ray Bradbury em sua obra, é em certo parentesco com Henry Miller, quando decide colocar as relações sociais mediadas sobretudo pelo sexo em evidência, que sua obra ganha vulto e complexidade. “Intimidade não se revela na pele, mora no labirinto”, verso de seu recém-lançado livro de poesia Quânticos da Incerteza, dá a medida exata de como encara o sexo—mantendo a chama de estudiosos pós-freudianos, como Erich Fromm e Willhelm Reich, acesa.

Sua obra Piscina Livre é seu primeiro experimento mais consistente nesse sentido, que ganhou ar de temática definitiva em seu maior romance, Amorquia, de 1991. Neste livro, em futuro distante, o amor exclusivo é visto como doença, a maternidade é um detalhe irrelevante, o sexo é ensinado e praticado nas escolas. Além disso, a noção de tempo foi abolida, já que a morte não existe mais. O molho da trama azeda quando começam a morrer pessoas repentinamente. Paradigmas são postos à prova, um novo sentido de comunidade é necessário e o medo reaparece no vocabulário corrente. Em certo sentido, o enredo complementa e arromba a já terrível visão de Lars Von Trier sobre a guerra de sexos exposta em O Anticristo.

Sua obra inspirada e furiosamente selvagem guarda para si a vanguarda e o verdadeiro sentido de uma literatura de ideias vigorosas e perigosas.

Acabei de ler o fac-símile do Tentativa, e fiquei muito curioso. Vocês estavam na “periferia dos acontecimentos da rota do mundo”, como diria Oswald de Andrade. O texto de abertura é do Oswald, e vocês conseguiram vários colaboradores conhecidos.

O meu jornal foi considerado o melhor do Brasil naquela época.

Sim. Eu sei que vocês movimentaram muito, fizeram a primeira exposição de arte moderna em Atibaia. O que vocês estavam acompa-nhando naquele momento que motivou o grupo que era você, sua irmã, o César...

Olha, na verdade era eu porque o outro rapaz e minha irmã tinham dez anos menos que eu—eu tinha 26. O mais velho, responsável lá, era eu mesmo.

Queria saber da sua história. Sua família é tradicional de Atibaia?

Ah, sim, claro! Meu pai tinha uma loja lá de material de construção que eu herdei e toquei pra frente durante algum tempo. Depois eu vendi e me mudei para São Paulo.

Você teve uma educação clássica, literata?

Eu não tive influência nenhuma. Me apaixonei pela literatura e pela cultura de modo geral sem influência de ninguém. Eu admirava as pessoas que saíam no jornal, as pessoas e artistas, tanto que eu fiz várias formas de artes. Fiz pintura, fotografia... É interessante que fiz fotografia durante 50 anos sem muita difusão. Agora me consideraram um pioneiro do modernismo brasileiro. Acabei de fazer uma exposição de pintura na Galeria Dan em São Paulo.

E qual era a sua relação com a primeira geração dos modernistas?

Eu frequentava mais o Sérgio Milliet, o Aurélio Buarque de Holanda—que vinha às vezes do Rio—e o Oswald de Andrade que era meu amigo. Ele me visitava em Atibaia. Era um grupo pequeno de intelectuais. Aliás, sempre foi pequeno. Mas eram pessoas de alto nível cultural. O Sérgio era um continuador do Mário de Andrade excelente, ele dirigiu a Biblioteca Municipal com grandes eventos culturais que nem existem mais. Eu fiz conferências na Biblioteca Municipal com 300 pessoas, hoje em dia não existe mais isso.

Você estava envolvido nesse caldeirão. O que te levou a escrever ficção científica?

Eu lia literatura contemporânea. Sei lá, Huxley. Talvez seja o próprio desenvolvimento da tecnologia que nos leve a esse ponto, porque, se a gente for pensar no que usamos de tecnologia hoje em dia, estamos mergulhados na ficção científica. Há poucos dias um amigo meu, que também é escritor e faz parte de uma oficina que eu tenho aqui em Curitiba, tira um telefone do bolso e faz uma entrevista comigo. E você vê, o telefone hoje em dia é uma câmera. Ele faz a entrevista com ele e depois transmite as imagens perfeitas e nítidas pro jornalista no Rio, que tinha pedido a entrevista. E olha, isso é uma coisa que até a ficção científica esqueceu de inventar.

Como foi a recepção dos seus contemporâneos como, por exemplo, o Oswald ou o próprio Otto Maria Carpeaux, quando você decidiu fazer ficção científica?

Quando comecei a fazer ficção científica, esse pessoal mais acadêmico nem percebeu. Não sabiam o que era aquilo. Depois, quando eles tomaram conhecimento do preconceito etc., me sabotaram. Isso eu não tenho a menor dúvida. Falavam que eu tinha me prostituído. Faziam isso de maneira muito sutil, porque, quando eu faço poesia, minha poesia não tem nada de ficção científica. Quer dizer, não é que não tem nada, mas tem pouca coisa. Então a minha poesia é absorvida por todos de maneira pacífica. Mas contos e etc., aqueles que são de ficção científica, não são nem lidos pelos acadêmicos.

Você acha que sua obra é melhor compreendida fora do que aqui?

Ah, disso eu não tenho a menor dúvida. Eu sou o escritor brasileiro de ficção científica mais conhecido no exterior. Mas, vamos falar a verdade, não chego aos pés do Paulo Coelho.

Isso te incomoda de alguma maneira?

Não, não me incomoda. Fico muito satisfeito. Não quero deixar de ser erudito, não. Quero ser mais erudito ainda. Não sou mais porque não consigo, mas quero ser cada vez mais profundo. Para mim, cada conto é um trabalho de tremenda paixão literária. Não faço concessão nenhuma. Essa é a grande vantagem. Como a gente não ganha dinheiro nenhum no Brasil com literatura, então pelo menos quero ganhar qualidade, pelo menos ficar marcado.

A que você acha que se deve essa dificuldade, tanto de público quanto dos intelectuais e dos formadores de opinião no Brasil em relação à ficção científica?

Acho que é um tipo de burrice brasileira, um tipo de recurso assim, barato e eficiente, de afastar concorrentes dentro da literatura. Porque se eles percebem que dentro da ficção científica estão aparecendo pessoas boas, dizem: “Não, ficção científica. Nem leia, nem leia”. E então só sobra o espaço pra eles. E como os editores brasileiros, de modo geral, são bastante atrasados, eles não percebem nada disso. Aceitam que não é pra publicar ficção científica, porque é uma coisa maldita.

Você acha que aquela ideia do Nelson Rodrigues de “complexo de vira-lata” do Brasil...

É uma das observações mais inteligentes que já se fez do Brasil.

Você acha que essa história de que o Brasil está se inserindo no mundo, virando uma grande potência, também reflete nessa abertura maior que está acontecendo, inclusive, para a ficção científica? Você acha que vamos abandonar o “complexo de vira-lata” e virar gente grande?

Eu considero um grande aperfeiçoamento. O fato de enxergarem o cachorro vira-lata já é uma grande coisa. Se vai funcionar ou não, eu não sei, mas antes ninguém enxergava nada. Agora estão até defendendo pontos de vista diferentes, de que tem gente fazendo uma literatura mais profunda, mais interessada numa evolução de temática e de qualidade na ficção científica do que no mainstream, do que na literatura geral.

Sim, eu acompanhava algumas listas de discussão de ficção científica no Brasil—que em geral são muito conservadoras, de um jeito muito, eu diria, antiquado e anglo-saxão de pensar a questão da ficção científica—e lembro que causou polêmica. Era meio que um assunto tabu, eu imagino. Mas o que eu acho importante é, seguindo esse raciocínio, que a ficção científica seria hoje o gênero por excelência de divulgação de ideias da literatura.

Eu acho que sim, porque é impossível a gente manobrar uma ideia hoje em dia sem que a gente não coloque um futuro explodindo aí na frente, porque o futuro antigamente era uma coisa bastante distante, mas hoje em dia a gente dança com o futuro todos os dias. A gente tá casado com o futuro.

Eu estava comentando com um amigo meu que o conto A Espingarda tem o mesmo enredo que um filme protagonizado recentemente pelo Will Smith. Tem passagens inteiras que são exatamente iguais. Só que no filme americano, o desfecho, ao contrário do seu que é niilista, tem um final feliz.

O Saramago fez a minha A Escuridão. Muita gente acredita que ele se inspirou no meu conto. Meu conto foi publicado em 12 línguas. Eu escrevi dez anos antes dele [na verdade o livro de Saramago é de 1995 e o conto de Carneiro, incluído no livro Diário da Nave Perdida, é de 1963]. O meu conto saiu na Espanha, saiu em inglês, em francês, saiu em todas as línguas. Ele deve ter lido.

E você teve a oportunidade de ler o livro do Saramago ou de ver o filme?

Eu não assisti, sabe? Pra não ficar com raiva. Parece que a interpretação que ele fez do comportamento dos cegos é negativa. Os cegos ficaram mal. No meu conto não. Os cegos é que salvam aqueles outros. É uma atitude muito mais humana, muito mais razoável.

Como foi sua experiência com cinema?

Eu fiz cinema com o Abílio Pereira de Almeida, que era importante na Vera Cruz, e depois se suicidou não se sabe bem por quê. Ele fez algumas peças de teatro muito boas. Os filmes que ele fez são mais ou menos ruins. Ele fez alguns filmes com o Mazzaropi. Na verdade não trabalhei com ninguém que valesse a pena, que me ajudasse a ir pra frente, sabe? O cinema brasileiro é muito duro, o sujeito primeiro tem que arrumar dinheiro e depois fazer o filme. Eu primeiro faço o filme. Primeiro imagino a história. Não penso em dinheiro, não tenho capacidade de arranjar dinheiro. Sou um pobre, assim, bem situado.

E como você entrou para a fotografia?

Ah, o cinema e a fotografia para mim estavam misturados. Eu fazia filme com aquelas maquininhas pequenas, com 8, 9.5, 16 mm. Era uma loucura.

Você se define como poeta, escritor, fotógrafo, artista plástico...

Olha, sempre me perguntam isso. Sou aquilo que faço no momento. Faço escultura e também faço pintura. E quando estou fazendo qualquer arte eu sou aquilo que estou fazendo no momento. Depois, quando estou fazendo a outra, eu mudo. É uma questão de paixão total, ampliada em todos os sentidos. Escrevo todo dia. É que eu estou com uma namorada nos EUA que me escreve todos os dias, então todo dia eu respondo pra ela.

Você disse numa entrevista que usa a internet desde sempre.

Ah, sim, uso a internet desde o [computador] 256.

E você faz pesquisa em internet para poder escrever?

Olha, muito pouca. Às vezes vou lá no Google pra esclarecer qualquer coisa, mas pesquisa assim de ficar dançando lá dentro não, porque o salão é muito grande e a gente perde muito tempo. Prefiro eu mesmo criar alguma coisa que os outros pesquisem.

Como você foi se interessar por hipnose?

Ah, isso é uma história muito comprida. Me interessei por hipnose e fiz experiências com duas ou três pessoas. Hipnotizei e aí virei até uma espécie de médico. Cheguei a ter consultório. Fiz psicologia e tratamento de neurose com hipnose. Até cheguei a inventar um método, mas não podia fazer tanta coisa ao mesmo tempo. Fiz uma experiência científica de hipnose junto com um grande médico brasileiro, porque precisava ter um médico no meio. Sou um grande entendido de hipnose, mas fica só nisso.

Mas ainda pratica hoje em dia?

De vez em quando sim, em casos excepcionais. Mas não estou mais atendendo clientes.

Você mora em Curitiba há quanto tempo?

Faz pouco. Tive um problema de visão, então enxergo pouco. Enxergo 10%. Vou lá no computador, aumento as letras etc. Moro aqui porque tenho dois filhos. Um deles é professor da USP e o outro é músico, toca clarineta e é professor também aqui da Orquestra Sinfônica. Então vim pra cá pela companhia agradável. E é uma cidade interessante, apesar de o povo não ser interessante; o povo é muito frio.

E quais são seus próximos projetos?

Olha, tenho dez contos inéditos que eu tenho vontade de publicar. São contos muito bons. À medida que vou escrevendo, escrevo cada vez melhor. É muita prática, e é uma prática de um sujeito que está interessado em qualidade. E a qualidade puxa todo o resto.

Fonte:
Excerto da entrevista de
http://www.viceland.com/br/v2n1/htdocs/andre-carneiro-257.php?page=2

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