sábado, 11 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 236


Versos em Tempos de Pandemia


Nemésio Prata

Estamos em pandemia.
Cuida-te, não sejas louco;
pois te aguarda a campa fria
se aos conselhos fores mouco!
- - - - - -

José Feldman
POEMA AOS NOSSOS BRAVOS E ANÔNIMOS SALVADORES


Hoje no mundo está um caos dominando,
terrível vírus a todos contaminar,
para o amanhã catástrofes prenunciando…
Que será que a vida tem a nos reservar?

Mas enfrentando esta ameaça desconhecida,
lutam anônimos, valorosos guerreiros
que enfrentam o perigo co’ a própria vida…
médicos, enfermeiras, e até os bombeiros.

Em seus espíritos há apenas um desejo
de toda e qualquer vida poderem salvar.
Seja pobre, seja rico… lançando um lampejo

de esperança na alma de quem está a definhar.
Deus abençoe estes guerreiros benfazejos
cujas nobres almas estão a nos salvar.
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Nilsa Alves de Melo
BOMBEIROS DO BRASIL
(Em tempos do Corona vírus)


Bravos homens, a coragem os anima,
levam junto a esperança, o salvamento,
da sua própria vida põe acima
a vida das pessoas em lamento.

Às vezes vai salvar e a morte encontra.
Dá pelo outro, a vida preciosa
E, como herói e santo, ele assim tomba
qual estrela cadente, luminosa.

Homens do ar, do fogo, mar e terra
é quem perigo e caos vêm chamar
pela bravura e controle emocional.

Na alma desses homens se encerra
a lealdade, o bem, o mais salvar.
- Bombeiros - um tesouro nacional.
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Jaime Vieira
CAOS NA TERRA


Estrelas indecisas
adornam o céu.
Luzes de neon oportunistas
já não seduzem a cidade.
Uma sinistra pandemia
assusta a humanidade
e silencia as ruas vazias
da minha cidade.

Em descaso não crio caso,
tenho medo de ter medo
e o caos rasteja aos poucos
e quase me invade.

Bebo a noite pela janela
afasto os escombros e fracassos
e em silêncio me desfaço
nos braços de um poema ácido
que agora sem nenhum abraço,
em linhas tortas, traço.
- - - - - –

Fontes:
Revista Carlos Zemek. 9 de abril de 2020 
Revista Carlos Zemek. 10 de abril de 2020
Trova enviada pelo autor.

Sílvio Romero (O Homem que quis laçar Deus)


Havia um homem que era muito pobre e com muita família. No lugar em que morava, havia uma estrada muito grande e se dizia que por ali passava Deus e o mundo. Ouvindo dizer isto o homem, e querendo saber a razão por que Deus o tinha feito tão pobre, armou um laço e assentou-se na estrada à espera de Deus.

Levou assim muito tempo, e todos que passavam perguntavam o que estava ali fazendo. Ele respondia que queria pegar Deus. Afinal, estando já desenganado de que nada fazia, já ia para casa, quando apareceu-lhe um velhinho e deu-lhe quatro vinténs, dizendo que só comprasse um objeto que custasse aqueles quatro vinténs. Nem mais barato, nem mais caro.

O homem foi para casa muito contente, imaginando no que havia de comprar com aquele dinheiro. Lembrou-se de um compadre negociante rico que tinha, o qual estava para fazer viagem a buscar sortimentos para sua loja. Dirigiu-se o compadre pobre para a casa do compadre rico e pediu-lhe que comprasse qualquer coisa que custasse aqueles quatro vinténs.

Fez o compadre a sua viagem e chegando na cidade não encontrou nada por aquele preço. Foi ao mercado e ainda nada. Só encontrava objetos por três vinténs, um tostão, meia pataca, dois mil réis, três, etc.

Ia já para casa, quando ouviu um menino mercar: "Quem quer comprar um gato? Custa quatro vinténs."

O homem ficou muito contente e comprou o gato. Era um animal raro naquele lugar. Chegando o negociante em casa do amigo onde estava hospedado, e que também era do comércio, este ficou desejoso de possuir aquele animal e pediu ao amigo para deixar o gato passar a noite na loja, onde havia muito rato, que lhe davam um grande prejuízo.

No outro dia quando abriram a casa, tinha uma quantidade tão grande de ratos mortos que causou admiração. Aí o negociante dono da casa ofereceu uma grande soma de dinheiro ao amigo pelo gato.

Este recusou, dizendo ser o gato de um seu compadre muito pobre, que o tinha encarregado de comprar um objeto qualquer com quatro vinténs. Instou muito o negociante e afinal ofereceu tanto dinheiro que o amigo não pôde recusar e vendeu o gato.

Voltou o compadre rico de sua viagem, mas chegando em casa teve tanta pena de dar o dinheiro ao compadre, que o enganou com uma peça de chita, muito ordinária, dizendo ter comprado aquilo com os quatro vinténs.

O compadre pobre ficou muito contente e, chegando em casa, a mulher desmanchou logo a fazenda em camisas para os filhos. Mas como Deus não quer nada mal feito, assim que o compadre saiu com a peça de chita, o rico caiu com uns ataques muito fortes e já para morrer.

A mulher o aconselhou a que se confessasse, que ele estava muito mal, e chegando o padre e sabendo do segredo, mandou-o restituir todo o dinheiro do compadre pobre. Este veio a chamado do rico, que logo melhorou, só com a presença dele.

Mas o ricaço, não tendo coragem de entregar o dinheiro, ainda enganou o outro com outra peça de fazenda ordinária.

O pobre não cabia de si de contente, e mal tinha saído, já o rico estava outra vez morre não morre. É chamado de novo a toda pressa o compadre pobre, sendo ainda uma vez enganado com outra peça de fazenda, mas desta vez o rico já estava quase expirando, e não teve outro remédio senão declarar ao companheiro que aquelas barricas que ali estavam eram dele com todo o dinheiro que continham.

Ouvindo isto, o pobre quase que não se segurava em pé, tal foi o choque que sentiu, e como louco correu a dar novas à família, que não sabia como explicar tamanha felicidade.

Houve oito dias de festas e o pobre ficou logo cercado de muitos amigos, entre eles o rico que ficou bom da moléstia esquisita, assim que entregou o dinheiro.

Fonte:
Sílvio Romero, Folclore brasileiro; cantos e contos populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

Manuel Halpern (Um cê a mais)


Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c, na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa.

Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz: sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.

Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hífenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de fato; para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família.

Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os es passaram a ser gêmeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios; janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.

As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar.

Fonte:
Montargil Ação Cultural. Boletim em linha. março 2020. n. 82.
Boletim enviado por Lino Mendes, de Montargil/Portugal.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 235


Célio Simões de Souza (O Presente que não Recebi)


Era início de novembro de 2017. Muita gente em Belém se preparava para viajar aproveitando o feriado de finados, que por recair numa quinta-feira, deixava “imprensada” a sexta, fazendo a delícia de quem demanda os balneários esticando até o domingo, quando todos voltam para novo período de espera, até outro favorecimento do calendário.

Dominando o desejo de curtir esses dias na ensolarada Salinas decidi ficar, pois tinha que resolver uma pendência sobre passagens aéreas em uma agência de viagem. E lá estava eu no dia 2 fazendo isso, quando o aparelho celular tocou.

Do outro lado era Ivaneide, a secretária de uma das associações profissionais que faço parte, dizendo que havia em sua sala um cidadão procurando por mim. Em princípio estranhei, pois as pessoas interessadas em meus serviços como advogado costumam ir ao escritório, depois de combinar dia e hora para serem atendidas.

Coisa incomum mesmo. Fui informado que o sujeito insistia em saber meu endereço residencial, afirmando que já estivera no meu local de trabalho e não havia me encontrado. Intrigado, pedi que ela passasse o telefone para ele. Eu queria averiguar de quem se tratava. Um tom de voz rouco e profundo, permeado de um resfolegar de alguém muito cansado, sem maiores rodeios me saudou:

– Como vai o senhor? Lembra de mim? É o seu amigo Joel!

- Perdoe, mas não me lembro...

- É que já faz muito tempo. Eu era o vigia da rua, quando o senhor morava no Jardim Independência, no bairro de Nazaré.

E a partir daí começou a descrever com detalhes, o número da minha antiga casa, a marca do meu carro, o nome dos meus vizinhos, o alagamento que houve por lá durante uma monumental chuva de inverno, dando-me a plena certeza que realmente tinha laborado por lá, tão minucioso era seu discurso sobre aquela época, afirmando que de mim recebera muita ajuda para suprir suas necessidades pessoais e familiares. Eu simplesmente nada recordava, nem de sua fisionomia, nem dos favores que supostamente lhe fiz.

Prosseguindo na conversa, disse que não mais residia em Belém e sim no interior do Estado, para onde se mudara definitivamente há dois anos. E que de lá me trouxera um presente, pois sabendo da minha predileção pelos peixes dos nossos rios amazônicos, estava de posse de uma caixa térmica (isopor) com pescado especialmente preparado para me entregar.

Quem me conhece mais de perto sabe da minha inclinação culinária por peixes. Meus olhos devem ter brilhado. Mesmo desconfiado, ditei-lhe ao telefone o meu atual endereço, que ele foi anotando com a ajuda da Ivaneide, pois sua baixa escolaridade não lhe permitia fazê-lo sozinho. Feito o registro, esclareceu:

- Voltei pra Belém para acompanhar minha filha que mora aqui. O senhor lembra da Ana Maria? Era aquela garotinha que ia lá no meu serviço levar o lanche, quando eu fazia as “viradas” de fim de semana. Agora é uma mulher feita, mas sofre de um grave problema de saúde. Ela vai fazer uma cirurgia muito difícil e está precisando de ajuda. O senhor poderia ajudá-la?

Achando a conversa ainda mais inusitada, registrei de memória o nome do hospital onde a moça estava internada e o número do apartamento, prontificando-me a visitá-la assim que eu pudesse. Antes de se despedir, disse-me com um ar de indisfarçado júbilo:

- O senhor não sabe, mas agora eu sou espírita!

- Pôxa, que bom! Foi o que eu achei de melhor para responder.

- E como espírita, vivo em contato com os seres de luz. Quero lhe dizer que o senhor está perto de receber uma graça muito especial!...

- Amigo, muito obrigado, respondi. Deus lhe pague e lhe proteja...

Depois desta última frase dita por mim, o telefone passou a emitir fortes estalidos até que foi desligado, não me possibilitando mais falar com ele ou com a Ivaneide. Instintivamente atribuí o fato ao péssimo serviço de telefonia fixa ou móvel que dispomos. Por excesso de cautela, liguei para a portaria do prédio onde moro e seu Mundoca, veterano porteiro, atendeu. Disse-lhe que um amigo ia entregar um isopor com peixe e por se tratar de perecível, que avisasse imediatamente nossa empregada, que se incumbiria de apanhá-lo. Recomendei porém, que não permitisse a subida de ninguém ao apartamento pelo motivo óbvio: Infelizmente Belém, antes tranquila, tornou-se uma cidade perigosa e violenta, exigindo todos os cuidados no quesito segurança.

Nesse dia regressei no fim da tarde e ao indagar na portaria, informaram-me que ninguém deixara ali nenhum isopor com peixe. No outro dia a mesma coisa. Quer ver que seu Joel esqueceu o assunto ou não encontrou meu local de moradia, pensei. Daí me veio à mente o compromisso que com ele assumi de fazer uma visita à filha doente, de quem eu esquecera depois de tantos anos. 

Moleque, ainda, ocupei a vaga deixada por um tio, que fixou residência no Rio de Janeiro, na Sociedade São Vicente de Paulo na minha cidade, dedicada a obras de caridade. Mais tarde, ginasiano, fiz parte da Sociedade Estudantil de Assistência Social (SEAS) que arrecadava donativos para famílias pobres; e até hoje eu e minha esposa, prestamos alguma ajuda aos carentes, na medida das nossas possibilidades. Assim, movido pelo dever de solidariedade, parti para o hospital.

Lá chegando, informei à recepcionista a finalidade da minha presença. Ela, após o protocolo de identificação, indicou-me o apartamento, que fui procurando com cuidado para não incomodar os pacientes, alguns deles atendidos nos próprios corredores. Ao postar-me em frente ao número que eu havia memorizado, bati levemente e uma voz frágil, como se estivesse a quilômetros, lá dos sumidouros do aposento ordenou:

- Pode entrar!

O que aconteceu lá dentro me deixaria perplexo! Soubesse disso eu nem teria entrado. Sou cético para certas situações, no entanto há coisas para as quais é difícil encontrar explicação. Empurrei devagar a porta, ao tempo em que um cheiro forte e adocicado de éter invadiu meus pulmões, quase me fazendo retroceder.

No cômodo, de dimensões reduzidas, não havia ninguém além dela: uma moça franzina, cabelos pretos em desalinho, sob um lençol que lhe chegava ao busto, tendo uma agulha de soro fisiológico espetada no braço esquerdo. Sua palidez intensa e o aspecto enfermiço eram reveladores de seu precário estado de saúde. Fiquei intrigado pois quem devia de estar ali, tomando conta da filha doente não estava, justamente o pai - seu Joel. Com muito tato, iniciei a conversa:

- ...Ana Maria?

- Sim? Quem é o senhor?

- Você era pequena e não se lembra de mim. Sou amigo do seu pai. Pelo telefone, ele me disse que você estava doente, informou o local de sua internação, a cirurgia que você vai fazer e da ajuda que está precisando. Pena que ainda não recebi o isopor com peixe que ele trouxe de presente pra mim...

- Isopor com peixe?

- Sim, ainda estou esperando. Ele sabe que eu gosto muito de peixe.

Notei que a lividez de sua pele se acentuou até transformar-se numa máscara mortuária esculpida em sua tez, porém achei que era da própria doença. Como ela quedou-se muda, voltei a falar tentando humanizar as reações da jovem:

- O que posso fazer por você? Como faço para ajudá-la?

- Eu não estou precisando de nada – respondeu com expressão fechada. 

- De nada? Mas foi seu pai que me pediu para vir aqui verificar o que você está necessitando, pois vocês se mudaram para o interior e...

- Quero lhe dizer que nós nunca nos mudamos para o interior - cortou ela interrompendo-me com certa aspereza. E mal disfarçando o incômodo causado pela minha presença, prosseguiu:

- Sempre vivemos em Belém, no bairro do Parque Verde. E quanto ao papai, acho impossível ele ter-lhe trazido qualquer presente.

- Mas foi o que ele me disse quando conversamos...

Desabando numa crise de pranto, com expressão de dor estampada no rosto lívido vincado pela unha do sofrimento, Ana Maria fitou-me com olhos girovagos balbuciando com dificuldade:

- Só pode ser engano. Papai morreu de infarto no Dia de Finados. Anteontem fez dois anos. Ele está enterrado aqui em Belém no Cemitério São Jorge. O senhor não pode ter conversado com ele...


Fonte:
Crônica enviada pelo autor, integrante do livro
Célio Simões de Souza. Recados da Memória. Editora Smith, 2017.

Célio Simões de Souza (1947)

Célio Simões de Souza nasceu em Óbidos/PA (berço de José Veríssimo e Inglêz de Souza, fundadores da Academia Brasileira de Letras), em 24.12.1947, único filho homem do fazendeiro, adjunto de promotor e fiscal da SEFA Sr. Francisco Lôbo de Souza e da professora Lady Simões de Souza.

Em sua cidade natal estudou no Grupo Escolar José Veríssimo e integrou a primeira turma do Ginásio São José. Em Belém (onde reside desde janeiro de 1966), foi aluno do “Paes de Carvalho” e da UFPa, onde graduou-se em Direito em Julho/1976.

Em Belém, constituiu família, casado com a Pedagoga Fátima Augusta Oliveira Simões, com quem tem três filhos: Célio Augusto, Francisco Cezar e Sérgio Guilherme, todos formados em Direito. Desenvolve as suas atividades profissionais e acadêmicas, sem prejuízo das viagens que faz anualmente para conhecer a cultura dos muitos países que já visitou.

Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes (RJ) e em História Cultural, pela Universidade da Amazônia (UNAMA)

Foi professor-coordenador na primeira Diretoria da Escola Superior de Advocacia e professor-orientador na UNAMA.

Fundou a Associação dos Advogados Trabalhistas do Estado do Pará, da qual foi vice-presidente, conselheiro e secretário.

Conselheiro da OAB/PA de 1983 a 1986. Ainda na OAB/PA, fundou e presidiu a Comissão de Prevenção ao Trabalho Escravo.

Fundador e conselheiro titular da União dos Juristas Católicos de Belém, tendo recebido do Papa João Paulo II especial benção apostólica pela sua atuação como advogado da população carente.

Fundou também o Centro de Estudos dos Advogados do Banco do Brasil do Pará e Amapá, do qual foi o primeiro Diretor Geral.

Foi nomeado em 12.12.90 para o cargo de Procurador-Chefe da Procuradoria Trabalhista da Secretaria Municipal de Assuntos Jurídicos da Prefeitura Municipal de Belém. É membro vitalício fundador do Conselho de Mediação e Arbitragem do Estado do Pará. Integrou banca examinadora de concurso para Juiz Substituto da Justiça do Trabalho da 8.ª Região.

Juiz do Tribunal Regional Eleitoral do Pará de 2005 a 2010.

Membro da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra da qual foi também Consultor Jurídico da Delegacia do Pará.

Participa atualmente como professor e advogado, de seminários, congressos, encontros, mesas redondas e simpósios de estudos de temas jurídicos, corporativos e sociais como palestrante, debatedor ou expositor, em eventos locais, nacionais e internacionais.

Ensaísta e poeta, tendo algumas de suas poesias musicadas pelo Des. Vicente Fonseca, seu parceiro musical.

Como cronista recebeu medalha de prata em São Paulo, em concurso de âmbito nacional.

Comendador da Ordem do Mérito Advocatício e membro titular das seguintes instituições culturais: Instituto dos Advogados do Pará; Academia Paraense de Jornalismo (Cadeira n.º 20); Academia Paraense de Letras Jurídicas (Cadeira n.º 08); Academia Artística e Literária de Óbidos (Cadeira n.º 01) que idealizou, fundou e preside; Academia Paraense de Letras (Cadeira n.º 26); Academia Paraense Literária Interiorana (Cadeira n.o 30); Sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós.

Possui mais de cem crônicas publicadas e é co-autor do livro “Um Abraço Apertado” editado em 2009. Inserem-se ainda em seu currículo suas atividades como juiz do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/PA, juiz arbitral do Conselho de Mediação e Arbitragem do Estado do Pará e juiz do próprio Tribunal Regional Eleitoral que pela segunda vez o condecorou.

Livros publicados:
“UM ABRAÇO APERTADO” (obra histórica coletiva), 1969; “UM POUCO DE MUITAS HISTÓRIAS” (crônicas/contos), 2016;  “RECADOS DA MEMÓRIA” (crônicas/contos), 2017; “ENCONTROVERSOS” (poesias), 2017;  “UM RIO DE HISTÓRIAS” (crônicas), 2017; “CONTAR PARA NÃO ESQUECER” (textos premiados), 2017; “ATEP – 40 ANOS – CASOS E MEMÓRIAS” (obra coletiva), 2019.

Algumas letras de músicas de sua autoria (em parceria com o músico e compositor Desembargador Vicente Malheiros da Fonseca):
Hanna (valsa); Elbinha (valsa) ; Izabelle (valsa) ; Santarém de Outrora (samba); Serra da Escama (marcha-rancho); Hino Oficial da Academia Artística e Literária de Óbidos (Aalo); Hino Oficial do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), entre outras

Obras Premiadas:
A PESCARIA (Crônica) = Medalha de prata da Revista Troféu, São Paulo, em Abril de 1976.
RETRATOS E FATOS DA LITERATURA OBIDENSE (esboço histórico literário) = Troféu Personalidade concedido pela Universidade Federal do Oeste do Pará/UFOPA/Santarém/PA, no IV Festival de Cultura, Identidade e Memória Amazônica de 24 a 25.07.2015.
TROFÉU INDIO PAUXI – Edição 2019 (Manaus/AM) em 27.09.2019, outorgado pela Associação dos Obidenses Residentes em Manaus (ADORM), pelo conjunto da obra como cronista e escritor.

Fonte:
O Impacto 
Dados enviados pelo autor

Professor Garcia (Cantigas do Meu Cantar) 1


A ganância ofusca a luz
dos olhos da caridade...
E a fome é a mais negra cruz,
dos ombros da humanidade!
- - - - - -

Até o mar que carrega
violência quando se alteia,
também se rende e se entrega
aos braços mansos da areia!
- - - - - –

Basta martelo e cinzel,
que minha mão de escultor,
dispensa tinta e papel
e esculpe a estátua do amor!
- - - - - –

Enquanto a cruel ganância,
agride, avançando os passos...
Sinto a negra mendicância
pondo algemas noutros braços!
- - - - - –

Fui preso e fugi dos laços
da mais negra solidão!
E agora, preso em teus braços,
quero morrer na prisão!
- - - - - –

Morre a flor, na flor da idade,
padece a planta de dor!
A ausência deixa saudade,
até na morte da flor!
- - - - - –

Na insônia que me permeia,
enquanto a fé me conduz...
No quarto, a velha candeia
enche o meu quarto de luz!
- - - - - –

Na mais triste soledade,
chora a viola tão bela!...
Talvez chore com saudade,
dos dedos do dono dela!
- - - - - –

Não há palácio mais nobre
nem templo mais sedutor,
que o ventre de uma mãe pobre
que abriga o fruto do amor!
- - - - - –

Na pobreza, há luz e brilho;
e, às vezes, tanta bravura...
Que a mãe, que amamenta o filho,
vira a filha da ternura!
- - - - - –

Na praça, um vulto abraçado,
em silêncio, e até sem voz,
fez me lembrar de um passado
que foi presente entre nós!
- - - - - –

Nesses conflitos da terra,
a minha fé se refaz,
vendo que a bomba da guerra,
não vence a pomba da paz!
- - - - - –

No instante em que o sol declina,
grito e ninguém me responde!...
Porque Deus fecha a cortina
da alcova onde o sol se esconde!
- - - - - –

No rosto, um silêncio mudo,
nos lábios, quanta magia,
e os olhos dizendo tudo
que o silêncio não dizia!
- - - - - –

O tempo, ampulheta ingrata,
conta segundo a segundo,
todas as mães que ele mata,
mesmo as mais santas do mundo!
- - - - - –

O tempo, com seus desvelos,
não raro, com seu desdém...
Pôs, na cor de meus cabelos,
o encanto que o branco tem!
- - - - - –

O tempo, velho malandro,
tem por destino, somente...
Serpentear, cada meandro,
que há no destino da gente!
- - - - - –

Pés grossos, mãos calejadas,
que tu vês, nesta aquarela,
são marcas das enxadadas
que eu herdei dos braços dela!
- - - - - –

Quando a noite me insinua,
se expondo à beleza extrema,
ponho mais versos na lua
e em cada estrela, um poema!
- - - - - –

São tantas as consequências,
ante o amor que se desfaz...
Que há medos temendo ausências
e há gritos pedindo paz!
- - - - - –

Sou qual jangada perdida,
sem rumo, num mar de ateus,
em busca do mar da vida,
no amor, dos abraços teus!
- - - - - –

Sozinha... E, arrastando os pés,
vovó tem, por proteção...
Seus dois amigos fiéis:
A bengala e a solidão!
- - - - - –

Uma gotinha de orvalho
no pistilo de uma flor,
quem fez todo esse trabalho,
deu grande exemplo de amor!
- - - - - –

Vejo, no tempo que passa,
mais um mistério profundo:
Nosso amor perdendo a graça,
que foi a graça do mundo!
- - - - - –

Vitória de fronte erguida,
é a do poeta que se esmera,
pintando, o outono da vida,
com cores de primavera!

Fonte:
Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA, 2017.
Livro enviado pelo autor.

Monteiro Lobato (Cabelos Compridos)


— Coitada da Das Dores, tão boazinha...

Das Dores é isso, só isso — boazinha. Não possui outra qualidade. É feia, é desengraçada, é inelegante, é magérrima, não tem seios, nem cadeiras, nem nenhuma rotundidade posterior; é pobre de bens e de espírito; e é filha daquele Joaquim da Venda, ilhéu de burrice ebúrnea — isto é, dura como o marfim.

Moça que não tem por onde se lhe pegue fica sendo apenas isso — boazinha.

— Coitada da Das Dores, tão boazinha...

Só tem uma coisa a mais que as outras — cabelo. A fita da sua trança toca-lhe a barra da saia. Em compensação, suas ideias medem-se por frações de milímetro, tão curtinhas são. Cabelos compridos, ideias curtas — já o dizia Schopenhauer.

A natureza pôs-lhe na cabeça um tablóide homeopático de inteligência, um grânulo de memória, uma pitada de raciocínio — e plantou a cabeleira por cima.

Essa mesquinhez por dentro. Por fora ornou-lhe a asa do nariz com um grão de ervilha, que ela modestamente denomina verruga, arrebitou-lhe as ventas, rasgou-lhe a boca de dimensões comprometedoras e deu-lhe uns pés... Nossa Senhora, que pés! E tantas outras pirraças lhe fez que ao vê-la todos dizem comiserados:

— Coitada da Das Dores, tão boazinha...

Das Dores só faz o que as outras fazem e porque as outras o fazem. Vai à igreja aos domingos de livrinho na mão, ouve a missa, ouve a prédica, reza. Nunca falhou um dia. Se lhe perguntarem o porquê daqueles atos, responderá, muito admirada da pergunta:

— Mas se todas vão!

O grande argumento de Das Dores é esse: as outras. Ouve o sermão do padre e chora nos lances trágicos, não porque compreenda algo daquela retórica, nem porque sinta vontade de chorar — mas porque as outras choram.

Toma tudo quanto ouve ao pé da letra, incapaz que é de galgar do concreto ao abstrato. Se ouve falar em “fazer pé de alferes”, fica a pensar em pés e mãos de alferes e tenentes.

— Tão boazinha a Das Dores...

Uma vez foi à prédica de um padre em missão pela zona, orador famoso pelas muitas almas que desatolara do chafurdeiro de Satanás. Ouviu-lhe muita coisa que não entendeu, mas entendeu um pedacinho que terminava assim:

“Meditai, meus irmãos, refleti em cada uma das palavras das vossas orações cotidianas, pois do contrário não terão elas nenhum valor”.

Das Dores saiu da igreja impressionada com o estranho conselho e se foi de consulta à tia Vicência, velha sabidíssima em mezinhas e teologias.

— Tia Vicência viu o que o seu cônego disse? Pra gente pensar em cada palavra senão a reza não vale?...

A tia mastigou um “pois é” que dava toda a razão ao padre.

— Que coisa, não? — foi o comentário final de Das Dores, que continuava a achar esquisitíssima aquela ideia.

À noite era seu costume rezar umas tantas orações preventivas dos mil males possíveis no dia seguinte. Mas até ali as rezara qual um fonógrafo, psi, psi, psi, amém. Tinha agora que pensar nas palavras. Diabo! Havia de ficar engraçada a reza...

Caiu a noite.

Das Dores meteu-se na cama, cobriu a cabeça com o lençol e deu início à novidade. Abriu com o Padre-Nosso.

— Padre-Nosso que estais no céu; padre, padre; os padres, padre Pereira, padre vigário... Padre Luís... Coitado, já morreu e que morte feia — estuporado!... Padre... Que ideia do seu cônego mandar a gente pensar nas palavras! Nem se pode rezar direito...

“... nosso; nosso é o que é da gente; nossa casa; nossa vida; nosso pai... Pra quem seria que foi o Nosso-Pai ontem? Para a nhá Veva não é, que ela já melhorou. Seria para o major Lesbão? Coitado! Quem sabe se a estas horas já não está no outro mundo? Bom homem, aquele... Tão caridoso... Ó diabo! Estou me distraindo! ‘Nosso’, ‘nosso’... Em certas palavras não se tem jeito de pensar...

“... que estais no céu: estar no céu, que lindeza não será! Os anjos voando, as estrelinhas, Nossa Senhora tão bonita com o Menino no braço, os santos passeando de lá para cá... O céu; céu; céu da boca; céu azul. Por que será que se diz céu da boca?

“... santificado, san-ti-fi-ca-do; que é santo; dia santificado, dia santo... “... seja vosso nome; nome; nome bonito... Nome feio! Quantos tapas levei na boca por dizer nomes feios! Quem me ensinava era aquela bruxa da Cesária. Peste de negrinha! Onde andará ela? ‘Nome de gente’; ‘nome de cachorro’. Gustavo, bonito nome. Está ali um que se quisesse... Mas nem me enxerga, o mauzinho; é só a Loló praqui, a Loló prali, aquela caraça de broa... Gustavo é o nome de homem mais bonito para mim. De mulher é... Rosinha? Não. Merência? Não... ‘Home’, a falar verdade nenhum. Gustavo. Gustavinho... Ahn, que sono!

“O pão nosso; pão; pão... Por que será que quando a gente repete muitas vezes uma palavra ela perde o jeito e fica assim esquisita? Pão; pão; pã-o... Por falar em pão, como anda minguando o pão do Zé Padeiro! E que pão ruim! Azedo... Pão sovado; pão de cará; pão de Petrópolis...

“... de cada dia; dia; dia; marido da noite; dia de sol; dia de chuva; dia das almas; dia de anos; dia bonito... E que dia bonito fez ontem! Vão ver que domingo chove. É sempre assim. Havendo uma festinha, chove mesmo. Amanhã, se fizer bom dia, vou à casa da Iná. Coitada da Iná! Acontece cada coisa nesta vida...

“... dai-nos hoje; hoje, hoje... Que é que eu fiz hoje? Ahn! Que soneira!

“... e livrai-nos Senhor; senhor; ilustríssimo senhor Gustavo de Silva. Bonito nome! Senhor amado; Senhor morto; senhor; se-nhor, nhor, nhor-se...

“... de todo o mal; mal; mal... mal... al...”

Os olhos de Das Dores fecharam-se, o corpo moleou e seu sono foi um só até romper o dia. Ao despertar lembrou-se logo do caso da véspera. Sorriu. Achou que a ideia do cônego — um padre de tanta fama! — não passava de grossa asneira. E pela primeira vez na vida duvidou.

— Ora, titia — foi ela dizer à tia Vicência —, aquilo é asneira. Se a gente for pensar em cada palavra, não pode rezar direito. O cônego que me perdoe, mas ele disse uma grande bobagem...

Não se sabe se a tia lhe deu razão ou não; mas o fato é que Das Dores continuou a rezar pelo sistema antigo, mais rápido, mais correntio e com certeza mais agradável a Deus. Quem se saiu mal do incidente foi o pobre missionário.

Cada vez que se referiam a ele perto de Das Dores, ela floria a cara de uma risadinha irônica.

— Está aí um que pode estar dizendo as coisas que eu...

E concluía a frase com o mais convencido muxoxo de pouco-caso.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 234


Rachel de Queiroz (O Coração de Washkansky)

    

Parece que está mesmo morrendo o homem que, lá na África do Sul, recebeu o coração da moça, apesar da torcida apaixonada em que se empenha o mundo inteiro pela sua salvação. Se bons desejos dessem vida, Washkansky estaria salvo. Pois imagino que jamais tal massa de bons desejos acompanhou um doente — nenhum rei, nenhum herói, nenhum santo teria tido tantos milhões de pessoas a pedir pela sua vida, a acompanhar ansiosamente nos jornais os recuos e progressos dos implacáveis anticorpos.

A gente fica pensando: será que a natureza já previa a tentativa de transplantação de órgãos? Se não a previa, porque teria imposto ao organismo animal tantas e tão intolerantes defesas, essa xenofobia, essa cortina de anticorpos a fechar as fronteiras da carne, proibindo qualquer promiscuidade orgânica com outro indivíduo, seja embora o doador da mesma espécie, da mesma raça, do mesmo tipo de sangue do receptor? Promiscuidades, diz a natureza, só mesmo para o fim de reprodução — e pelos canais competentes. Fora disso, nada.

O que é evidente é que Deus Nosso Senhor considera o reino animal a sua mais perfeita obra-prima, cada indivíduo, cada espécie, cada série, tudo ótimo e não susceptível de alteração. Chega-se mesmo a duvidar da teoria da evolução, na qual se acredita mais por uma questão de fé, pois ver de verdade nunca vimos, nunca fomos testemunhas de nenhum processo de evolução em marcha num organismo vivo. Tanto quanto me deixa saber a minha ignorância, tudo ainda São teorias, As alegadas provas se apresentariam em espécies extintas, em fósseis; mas depois do bicho morto e virado pedra, passados milhões de anos — trata-se pelo menos de um testemunho longínquo, não é?

No reino vegetal não há tanto rigor. Milhares de vegetais pegam de galho e recebem enxertos de variedades diferentes. A glória da jardinagem, da horticultura e da pomicultura está mesmo na criação desses híbridos por enxertia, Há organismos animais, como a ameba, que se dividem, e cada pedaço continua vivendo como indivíduo novo; e há lagartixas que conseguem fazer crescer outra vez a cauda decepada. Mas encostar a parte seccionada de um ser na parte seccionada de outro ser, e aquilo pegar — parece que ainda está longe. Eles dizem que fazem cães com duas cabeças em laboratório, mas cadê esses cães? Podem viver uma vidinha artificial e rápida, mas lá mesmo se acaba. Não vinga.

É como eu dizia: Deus considera perfeitos os homens e os bichos tais como os criou e não admite alterações na sua morfologia. E até mesmo híbridos por cruzamento a natureza tolera mas não gosta, tanto que os faz estéreis.

Realmente, se pudesse interferir com a morfologia das espécies, mal se pode pensar a que fantasias loucas se entregaria a humanidade desvairada. Se a gente pegasse de enxerto como laranja-da-baía, numa hora de entusiasmo amoroso era capaz de fazer operação para ficar xifópago com o ser amado — mas, e depois que o amor passasse?

E os laboriosos que exigissem quatro mãos para trabalhar mais? E a milionária excêntrica que ambicionasse a garganta da Callas? E as linhas de contrabando organizadas para oferecer delicados pés de espanholas a americanas ricas de pé 42? E o ditador megalomaníaco que montasse fábricas de supersoldados para os seus exércitos — homens com couraça de jacaré, estômago jejuador de camelo, força de cavalo e miolos de burro para, apesar de tantos dons, obedecer ao seu senhor? E não se diga que o homem não faria isso, que ele tem amor ao seu corpo tal como é: — o homem não tem amor a nada, o homem é doido. Tanto quanto pode, ele já se desfigura com tatuagens, com brincos, batoques, cicatrizes, e operações plásticas de resultados duvidosos. E para ganhar dinheiro, então — até já estou vendo quadrilhas organizadas para raptar crianças de gênio e lhes vender o cérebro no câmbio-negro.

Assim mesmo, contra todas as leis naturais, queremos que Washkansky escape. Que a regra inflexível abra essa primeira exceção e o corpo enfermo do homem de meia-idade cobre vida nova com o coração da rapariga morta. E se a operação tivesse êxito e entrasse na rotina médica — oh, meu Deus, podia-se até criar o uso de dar o nosso coração a alguém; não poeticamente, cm devaneios de amor, mas mandar abrir de verdade a arca do peito e tirar de dentro o coração palpitando, e enviá-lo congelado em papel de alumínio, como comida americana, para o ingrato ou ingrata ficar usando, já que nasceu sem coração.

P.S. — Washkansky, o primeiro paciente a sofrer transplante cardíaco (operado pelo Dr. Christian Barnard no hospital de Groote Schuur, África do Sul), morreu após viver 18 dias com o coração da moça Denise.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

1º Jogos Florais do Equador (Resultado Final)


Tema: Desencanto

VETERANOS

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VENCEDORES
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1º Lugar:

A vida tem lá seus prantos,
seus tantos ais e seus uis...
Porém, mais que os desencantos,
contam os dias azuis.
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR
- - - - - –

2º Lugar:

Coração, não sofras tanto
no teu bater clandestino...
Vê! Nem mesmo o desencanto
amordaça o meu destino.
MARIA DULCE DE LIMA PESSOA
Tabira/PE
- - - - - –

3º Lugar:

Num desencanto cruel
cujo olhar jamais anseia,
eu vejo um mundo infiel
promovendo a dor alheia.
MARIALICE ARAÚJO VELLOSO
São Gonçalo/RJ
- - - - - –

4º Lugar:

Mesmo que a velhice traga
desencanto e nostalgia,
nela sempre haverá vaga
para o amor de cada dia.
ANTÔNIO FRANCISCO PEREIRA
Belo Horizonte/MG
- - - - - –

5º Lugar:

Quem vive no desencanto,
não vê na vida a magia:
da aurora acordando o canto,
da passarada do dia!
EDITE ROCHA CAPELO
Santos/SP

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MENÇÃO HONROSA
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1º Lugar:

Não deixes que o desencanto
esmoreça a alma ferida.
Enxuga logo teu pranto,
mantém a fé, segue a vida!
LEONILDA YVONNETI SPINA
Londrina/PR
- - - - - –

2º Lugar:

Entre encanto e desencanto
meu coração se perdeu.
Boiou nas águas do pranto,
soçobrou longe do teu.
LÚCIA EDWIGES NARBOT ERMETICE
Campinas/SP
- - - - - -

3º Lugar:

Buscando o que me motive,
supero, com muito empenho,
as desilusões que tive
e os desencantos que tenho.
FRANCISCO GABRIEL RIBEIRO
Natal/RN
- - - - - –

4º Lugar:

Tanta fartura no mundo...
E o que mais dói num cristão
é o desencanto profundo
no olhar de quem pede um pão!
EDY SOARES
Vila Velha/ES
- - - - - –

5º Lugar:

Infeliz, meu coração,
de desencanto padece,
pois sempre dá o seu perdão,
a quem perdão não merece.
JOSÉ ALMIR LOURES
Astolfo Dutra/MG

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MENÇÃO ESPECIAL
=======================

1º Lugar:

Ah! Que lembranças de nós...
tanto amor, cumplicidade
e agora que estamos sós,
desencanto nos invade
VÂNIA FIGUEIREDO
Campinas/SP
- - - - - –

2º Lugar:

De tudo o que a vida apronta,
e, no meu peito, ainda vive...
Eu só nunca fiz a conta
dos desencantos que tive!...
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN
- - - - - –

3º Lugar:

O desencanto maltrata,
faz um coração gemer:
é cruel, fere e não mata,
mas nos ensina a viver.
MARCIANO BATISTA DE MEDEIROS
Parnamirim/RN
- - - - - –

4º Lugar:

Os poemas que decanto
– pra que o peito descomprima –
encontro no “desencanto”
a minha matéria-prima.
GERALDO TROMBIN
Americana/SP
- - - - - –

5º Lugar:

Quando o sonho for frustrado,
um grande amor for perdido
e o desencanto impetrado,
vá... não te dês por vencido!
LUIZ VIEIRA
Irati/PR

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NOVOS TROVADORES
======================

1º Lugar:

Por ser frio, descontente,
ter gelado o coração,
há um desencanto presente
num homem sem devoção.
ANDRÉA LIMA DE PAULA
Juiz de Fora/MG
- - - - - –

2º Lugar:

Enxuguei, nem sei o quanto,
cada lágrima sentida,
em face do desencanto
nas ilusões desta vida.
ABELARDO NOGUEIRA
Araçoiaba/CE
- - - - - –

3º Lugar:

Nunca haverá desencanto
se temos a oferecer
nossos braços feito manto,
que à vida faz acolher...
MARA CAMARGO
São Paulo SP
- - - - - –

4º Lugar:

Com doçura, te amei tanto,
sem ao menos conhecer-te,
hoje amargo o desencanto,
sem conseguir esquecer-te.
SUELY RIBELLA
Santos/SP
- - - - - –

5º Lugar:

A vida nos leva encantos,
quando sabemos amar,
porém sempre há desencantos
que vêm nos acompanhar.
HENRIQUE LÜCK
Rio Branco/AC

- - - - - –

Brusque, 08 de abril de 2020.
Maria Luiza Walendowsky
Coordenadora

Sílvio Romero (O Careca)


Conto do Folclore Pernambucano

Uma vez havia um homem casado que tinha uma enorme quantidade de filhos e cada vez a mulher paria mais. O homem, para sustentar tão grande família, fez-se pescador.

Morava perto de um rio, pescava ali e ia sustentando a filharada. Uma vez, estando a mulher grávida e já no nono mês, o pescador foi ao rio pescar e meteu a tarrafa e nada. Meteu para outro lado, e nada, nem uma piabinha. O pescador já ia saindo muito triste quando ouviu uma voz, que dizia do fundo da água: "Se me deres o que de novo encontrares em casa, eu te darei muito peixe".

O homem pensou lá consigo — o que pode haver de novo é um cachorrinho, porque eu tenho em casa uma cadela para parir — e não se lembrou da mulher. Então o pescador disse que sim, que aceitava o negócio. "Pois então pesca pra ali". O pescador meteu a tarrafa e tirou peixe como diabo.

Chegando em casa, um filho foi-lhe logo dizendo: "Papai, minha mãe pariu". O homem entrou no quarto e viu seu filhinho. Era um menino. Disse à mulher que na beira do rio tinha uma cabocla que havia dado à luz e a criança tinha morrido, e que por isso ele levava aquele filho para a cabocla criar. A mulher custou a consentir, mas por fim cedeu. O pescador levou a criança e chegando ao rio atirou-a na água no lugar de onde tinha saído a voz. O menino lá no fundo d'água foi dar num palácio muito rico. Aí foi criado até rapazinho, mas nunca via ninguém.

Uma vez lhe apareceu um homem e disse-lhe: "Eu sou teu pai. Tenho de fazer uma viagem de quinze dias. Fica aqui com estas chaves (e deu-lhe um maço de chaves) mas não abras porta nenhuma, senão, quando eu voltar, morres".

O rapaz ficou e cumpriu fielmente a recomendação. No fim de quinze dias chegou o pai e lhe disse: "Então, está tudo direito?" O rapaz disse que sim. Passaram-se mais quinze dias; no fim deles o homem disse: "Vou fazer nova viagem de mais quinze dias, fica aí com as chaves e não me bulas em nada".

O rapaz ficou, mas desta vez não se pôde conter; havia três enormes caldeiras, uma fervendo ouro, outra fervendo prata e outra fervendo cobre. Ele meteu o dedo na de ouro e saiu com o dedo dourado. Limpava, limpava, e nada de sair o ouro.

Rasgou uma tirinha de pano e amarrou no dedo. Abriu outro quarto e viu três cavalos muito gordos, um preto, um branco e um castanho; os cavalos, em lugar de capim, tinham carne para comer. Abriu outro quarto e encontrou um leão muito grande e gordo, que em lugar de carne tinha capim para comer. Abriu outro quarto e viu uma mesa muito grande cheia de gavetas; numa tinha uma porção de papeizinhos brancos dobrados, noutra uma porção de papeizinhos azuis dobrados, noutra uma porção de armas: espingardas, espadas etc.

O rapaz não quis bulir em nada e tornou a fechar tudo. No fim de quinze dias chegou o pai: "Então, está tudo direitinho?" — Tudo, não buli em nada.

De tudo quanto o rapaz tinha visto, o que lhe dava mais com o pau na paciência, era a carne para os cavalos comerem e o capim para o leão. Ele fez o plano de trocar. No fim de quinze dias, o pai tornou a fazer viagem. O rapaz, logo que se viu sozinho, foi ao quarto dos cavalos e abriu, foi pegando na carne para tirar, e um cavalo disse: "Não faça isso, não bula em nada, senão morre, seu pai lhe mata. Agora, se quiser sair daqui, vá ao quarto onde tem a mesa, tire dois papéis, um azul e outro branco, tire boa roupa e se vista, tire boas armas e se arme, monte-se em um de nós, vá puxando outro, e quando seu pai chegar há de segui-lo; quando estiver pega não pega, largue um dos papéis; depois largue o outro e deixe o resto por minha conta".

O rapaz fez tudo tintim por tintim.

O cavalo lhe recomendou também que ele metesse a cabeça na caldeira de ouro e dourasse os cabelos. O rapaz dourou os cabelos, aprontou-se, armou-se, pegou dois papéis e meteu no bolso, montou no cavalo castanho e foi puxando o branco. Para mais incomodar o pai tirou o capim do leão e deu ao cavalo preto, que ficou, e pegou na carne e deu ao leão.

Seguiu viagem a toda a pressa. No fim de quinze dias, o homem chegando ao palácio e vendo tudo desarranjado ficou danado. Montou no cavalo preto e seguiu atrás do rapaz.

Depois de muito andar, avistou-o, aí o cavalo em que ia o moço lhe disse que largasse o papelzinho branco. O moço largou e gerou-se uma neblina tão espessa que não se via nada, mas o cavalo preto era muito bom e conseguiu romper a neblina depois de muito custo, mas já o rapaz ia longe.

Depois de muito andar, o pai já o ia avistando, quando ele soltou o outro papel e gerou-se um espinhal tão cerrado que ninguém podia atravessar. O homem disse ao cavalo preto: "Eu te desencanto, se me passares esta mata de espinhos".

O cavalo respondeu: "Tire-me os arreios e vá montado em osso, que eu passarei".

O homem tirou os arreios e montou em osso. Quando o cavalo se viu no meio do espinhal, atirou-o ao chão e lá deixou-o e seguiu para diante. O homem lá morreu e o cavalo encontrou-se com os outros e seguiram todos três. O rapaz já tinha cansado o cavalo castanho e montou no branco.

Foram seguindo. Depois de muito andar, chegaram perto de uma cidade, aí os cavalos disseram: "Agora nós ficamos aqui encantados nesta pedra e o senhor deixe também aqui suas armas e roupas, siga para a cidade. Ali adiante encontrará um boi morto, abra, tire a bexiga, sopre e bote na cabeça para esconder os cabelos dourados. Vá e siga a sua vida. Quando precisar de alguma coisa, venha aqui na pedra e nos peça".

O rapaz seguiu, encontrou o boi morto, abriu, tirou a bexiga, botou na cabeça e entrou na cidade.

Adiante encontrou um palácio, bateu na porta e apareceu-lhe o velho jardineiro e perguntou-lhe o que queria. O rapaz respondeu que queria um emprego para ganhar a sua vida. O jardineiro teve pena dele e o empregou como seu ajudante. Era isto na casa do rei.

O jardineiro perguntou ao rapaz por seu nome. Ele respondeu que não tinha nome. "Pois fica-se chamando-o Careca". Passaram-se muitos tempos e o Careca ia vivendo em paz.

Uma vez pôs-se debaixo de umas laranjeiras e tirou a bexiga da cabeça para ver os seus cabelos, e a filha mais moça do rei, que estava na janela, viu os cabelos dourados e ficou apaixonada pelo Careca. O jardineiro tinha o costume de levar todas as manhãs um ramalhete para cada uma das filhas do rei, que eram três. No dia seguinte, ele foi levar os ramalhetes e a princesa mais moça lhe disse: "De amanhã em diante quero que o Careca traga o meu ramalhete".

O rei e as irmãs da princesa caçoaram muito, mas a moça insistiu e o Careca todos os dias lhe ia levar o ramalhete. Passaram-se tempos e houve aí no reino umas grandes cavalhadas. O Careca, sabendo delas, e indo todos e ele não, disse ao jardineiro que queria ir à casa do ferreiro para mandar fazer uma faquinha.

O jardineiro consentiu. Depois que todos saíram, o Careca também saiu e foi ter à pedra e contou aos cavalos o que havia. Saiu o cavalo castanho todo arreado, o moço aprontou-se, tomou uma lança, soltou os cabelos e apresentou-se nas cavalhadas. Fez a corrida, tirou a argolinha e ofereceu à filha mais moça do rei. Ela lhe deu uma fita verde, que ele amarrou na lança. Todos ficaram admirados daquele lindíssimo moço, mas não sabiam quem era ele.

O rapaz saiu a toda a pressa e ninguém mais o viu. Quando o rei e as princesas chegaram em casa, já lá se achava o Careca na sua roupa de costume. O jardineiro contou-lhe então tudo, falou na boniteza das cavalhadas e no moço de cabelo dourado que tinha aparecido e que ninguém sabia quem era; mas que, se no dia seguinte ele voltasse, seria preso, porque o rei ia mandar colocar tropa para o prender, quando ele quisesse voltar e desaparecer.

No dia seguinte pela manhã foi o Careca levar suas flores à princesa caçula e ela estava doentia de paixão, tendo umas desconfianças que ele fosse o mesmo moço que apareceu nas cavalhadas. À tarde houve novas cavalhadas, e o Careca disse ao jardineiro que ia de novo ver a faquinha, porque o ferreiro não tinha ainda lhe dado, distraído com as festas. Largou-se para a pedra e fez aparecer o cavalo branco e arreios ainda mais ricos do que os primeiros; soltou a cabeleira, aprontou-se e partiu para as cavalhadas.

Havia mais povo ainda do que nas primeiras e lá estava a tropa para prendê-lo quando ele quisesse voltar. Ainda mais espantados ficaram do que na primeira vez. Quando deu-se o sinal para a corrida, o moço partiu, tirou a argolinha e deu à princesa mais moça. Ela lhe deu uma fita encarnada, que ele amarrou na lança e partiu a galope. A tropa cercou-o, mas ele saltou por cima e foi-se. Quando todos chegaram ao palácio, já o Careca lá estava na forma de costume.

A princesa mais moça começava a definhar. No dia seguinte tornou a pilhar o Careca debaixo de um caramanchão mirando os próprios cabelos, que eram dourados e compridos. Ficou a princesa mais alegre e teve certeza de que aquele era o mesmo moço das cavalhadas. Na tarde deste dia houve outra cavalhada, que era a terceira e última. Todos foram e o Careca tornou a sair, desculpando-se com a faquinha. Foi à pedra e fez aparecer o cavalo preto e arreios lindíssimos.

Partiu e, chegando ao ponto das cavalhadas, encontrou muito reforço de tropas para o prender. Não teve medo. Na hora da corrida avançou, tirou a argolinha e ofereceu à princesa da sua escolha e partiu a galope. Fecharam quadrado para o prender, mas o cavalo voou por cima e perdeu-se na corrida, que ninguém mais o viu. Quando o rei chegou ao palácio, já estava lá o Careca muito a seu gosto.

Nunca ninguém desconfiou que o Careca era o moço rico das corridas, senão a princesa mais moça.

Ora, aí nesse reino costumava de tempos a tempos aparecer uma fera que tudo devastava, comia muita gente e ninguém podia dar cabo dela. O rei tinha dito que quem matasse a fera havia de casar com a princesa mais velha. Ninguém se atrevia. O Careca, sabendo disso, foi ter à pedra e contou aos cavalos. Saiu o cavalo preto e disse-lhe que se montasse nele, amarrasse-lhe no peito um grande espelho e avançasse contra a fera, porque esta, vendo o seu retrato no espelho, havia de supor que era outra fera, ficaria atrapalhada e o moço a poderia então matar.

Assim fez o rapaz. Matou a fera, e cortou-lhe as sete pontas das sete línguas. Ninguém viu isto.

No dia seguinte apareceu a fera morta e botou-se editais para ver quem a tinha morto. Ninguém apareceu, então o rei julgou-se dispensado quanto à sua filha mais velha e decidiu-se a casar todas três quanto antes e no mesmo dia.

Mandou procurar príncipes, mas a caçula declarou que só se casaria com o Careca. O rei ficou muito desgostoso, mas não teve outro remédio. O rei ordenou que queria dar um banquete no dia do casamento, todo de pássaros caçados pelos futuros genros. Todos três saíram a caçar, cada um para seu lado. Nenhum matou nada a não ser o Careca, que foi ter à pedra e os cavalos lhe deram aves a valer.

Um dos noivos o encontrou, e sem o conhecer pediu que lhas vendesse. O Careca consentiu com a condição de lhe passar ele uma declaração em como lhes havia comprado. O príncipe aceitou e passou a declaração. O Careca guardou. Afinal chegou o dia do casamento. Todos se apresentaram muito bem prontos e o Careca humildemente vestido.

No jantar houve muita alegria, mas o Careca lá estava para um canto. No fim de tudo o rei disse que antes de todos se despedirem, queria que cada um dos genros contasse uma história.

O marido da princesa mais velha levantou-se e disse: "O que tenho a contar é que quem matou aquele bicho, que a todos fazia medo, fui eu, e não disse há mais tempo porque queria me casar com a princesa por escolha natural e não porque tivesse a promessa do casamento por matar a fera". E mostrou os cotocos das línguas. Levantou-se o marido da segunda princesa e disse: "Eu o que tenho a dizer é que quem caçou todos estes pássaros para esta festa fui eu."

Então levantou-se também o Careca e disse: "A minha história é que os dois genros do rei mentiram. Quem matou a fera fui eu, e aqui está a prova. Estas é que são as pontas das línguas e aqueles são os cotocos das línguas. Quem fez a caçada fui eu, e a prova é esta declaração que aqui tenho e que podem ler. Além disto, o moço que embasbacou a todos nas corridas fui eu, e a prova são as fitas que aqui tenho".

Aí ele tirou a bexiga da cabeça e todos o reconheceram. Ficaram os dois príncipes muito envergonhados, e a princesa mais moça quase doida de contentamento.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. RJ: José Olímpio, 1954,

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 233


Luís da Câmara Cascudo (O Filho da Burra)


Um casal teve um filho tão grande que era uma coisa por demais. Meses depois o homem e a mulher morriam e a criança foi criada por uma burra. O menino formou, botou corpo, e só o chamavam Filho da Burra.

Já grande, Filho da Burra foi ganhar a vida e empregou-se num reinado onde mandou fazer uma bengala de ferro. O ferreiro fez uma bengala da grossura de um braço e Filho da Burra quando experimentou dobrou o ferro como se fosse um fio de arame. Mandou fazer outra, mais grossa, que ficou do seu gosto.

Como o seu patrão não o podia sustentar, porque ele comia dois bois por dia e quatro sacas de farinha, o rapaz largou o emprego e saiu pelo mundo. Encontrou um homem arrancando pé de pau com raízes e tudo e rolando para um lado.

— Como você se chama?

— Me chamo Rola-Pau!

— Vamos ganhar a  vida juntos?

— Vamos!

Saíram os dois e lá adiante viram outro camarada que empurrava as pedras como se fosse brinquedo, tirando todas do lugar.

— Como se chama você?

— Me chamo Rola-Pedra.

— Vamos ganhar a vida juntos?

— Vamos!

Foram os três andando até que pararam numa campina bonita e aí ficaram. Fizeram uma casinha de palha e todo dia, dois iam caçar e um ficava para fazer a comida num tacho bem grande. Ficou Rola-Pau e os companheiros foram para os matos.

Quando o almoço ia ficando pronto apareceu um bicho enorme roncando e pedindo tudo de comer.

— Ou como o almoço ou como você!

Rola-Pau trepou-se na alto da casinha, com um medo doido e o bichão devorou o almoço todo. Quando Filho da Burra e Rola-Pedra voltaram e não viram a comida, ficaram para morrer de raiva. Ficou então Rola-Pedra e, nas horas costumeiras, o bicho chegou e Rola-Pedra botou-se a ele brigando. Brigaram muito tempo e Rola-Pedra vendo que morria, largou e deu uma carreira de levantar poeira. Filho da Burra, quando chegou e não teve almoço, teve uma raiva danada.

No terceiro dia ficou ele preparando a comida. O bicho apareceu com a mesma conversa. Filho da Burra largou-lhe uma bengalada com a bengala de ferro que pegou bem no focinho do bicho e este não quis mais peleja. Ganhou os matos e Filho da Burra foi atrás, pega aqui, pega acolá, até que o bicho pulou num buraco e sumiu-se de terra a dentro. Filho da Burra marcou bem o canto e voltou para a casinha.

No outro dia veio com os dois companheiros e trouxeram o tacho amarrado numas cordas compridas. Filho da Burra meteu-se no tacho e os dois arriaram até embaixo. Lá no fundo da terra era espaçoso e tinha casas. Na primeira casa que Filho da Burra bateu apareceu uma moça bonita e disse que, pelo amor de Deus, ele fosse embora porque ali vivia uma serpente que matava toda a gente. O rapaz respondeu que viera para lutar com a serpente e matá-la. A moça explicou:

— Não pode ser. Quando ela cansa de brigar e cai para uma banda, pede pão e vinho. Come e bebe e fica de novo forte, vencendo todo o mundo.

— Pois a senhora, se quiser ficar livre, em vez de dar o vinho e o pão à serpente, dê a mim!

A moça prometeu. A serpente foi chegando, quebrando árvores e fazendo um barulho de ventania. O rapaz escondeu-se detrás da porta. A serpente foi entrando e fungando:

— Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!

A moça dizia que não havia ninguém, mas a serpente tanto procurou que viu Filho da Burra e voou em cima dele para matá-lo. Filho da Burra passou-lhe a bengala de ferro que saía fumaça. Foi uma briga que não tinha fim, até que caíram, um para cada lado, sem forças. A moça, mais que depressa, trouxe pão e vinho que a serpente estava pedindo, e deu ao rapaz que comeu e bebeu, tornando a ficar forte. Levantou-se e sentou a bengala na cabeça da serpente esbandalhando-a. A moça ficou satisfeita e disse que tinha mais duas irmãs encantadas, morando em duas casas adiante.

Filho da Burra foi para a segunda e lá a moça contou a mesma coisa. O rapaz fez a mesma proposta de comer o pão e beber o vinho e a moça aceitou. Escondeu-se e esperou o bicho-feroz que chegou como um pé-de-vento, derrubando tudo:

— Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!

A moça negou, negou, mas o bicho caçou o rapaz e o encontrou, botando-se a ele e brigando com vontade. O bicho era terrível, mas a bengala de ferro não fazia graça e os dois inimigos terminaram sem força para acabar o combate, caindo no chão os dois. O bicho pediu o vinho e o pão, e a moça foi buscar mas entregou ao rapaz que esmagou a cabeça do monstro.

Passou para a terceira casa e lá era um macacão que morava com a pobre moça. Aconteceu o mesmo. O macacão quando chegou farejando:

— Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!

Foi procurando e achou o rapaz, partindo para cima dele. Filho da Burra fincou-lhe a bengala com vontade. Briga lá e briga cá, até que uma bengalada raspou a cabeça do macacão e uma orelha caiu no chão. Filho da Burra agarrou a orelha e meteu-a no bolso porque o macacão sumiu-se, correndo como um condenado.

O rapaz juntou as três moças e os tesouros que elas tinham e foi para onde estava o tacho. Balançou na corda e o tacho foi puxado por Rola-Pau e Rola-Pedra, cheio de dinheiro. Depois subiram as três moças e o tacho desceu. Imaginando que os dois camaradas tivessem tramando a morte dele para ficar com as moças e o tesouro, Filho da Burra botou uma pedra bem grande no tacho e balançou a corda. Subiram o tacho até quase em cima e depois cortaram as cordas, despencando tudo para baixo.

Rola-Pau e Rola-Pedra já tinham escolhido as duas moças para noivas e acharam que deviam deixar Filho da Burra no buraco para gozarem a riqueza que tinham ganho. Foram para o reinado do pai das três moças.

Ficando lá embaixo, Filho da Burra estava meio triste quando apareceu o diabo, que era o macacão, gritando e saltando:

— Filho da Burra, me dá minha orelha!

— Não dou.

— Filho da Burra, me dá minha orelha que eu te tiro daqui!

— Tire primeiro.

O diabo virou-se numa árvore e o rapaz subiu por ela até fora do buraco. Quando ficou livre, voltou o diabo pedindo a orelha.

— Só dou a orelha se você me levar para o reinado!

— Levo. Vou me virar num cavalo e você monte, feche os olhos e só abra quando eu parar!

Virou-se num cavalo, selado, e Filho da Burra montou, fechou os olhos. Quando o cavalo parou, ele abriu e estava no reinado do pai das moças.

Rola-Pau e Rola-Pedra, numa carruagem, tinham ido casar na igreja. No palácio só ficara o rei e a princesa mais moça. Filho da Burra, quando o diabo tornou a pedir a orelha, disse que queria se encontrar dentro do palácio real:

— Feche os olhos!

Ele fechou e quando abriu, estava no salão do rei.

Chamou o rei e contou toda a sua história. O rei não queria acreditar na malvadeza dos futuros genros. O rapaz tirou do bolso um lenço e mostrou a ponta da língua da serpente que vivia com a princesa mais velha, a orelha da fera que estava com a do meio e a orelha do macacão que prendera a caçula. O rei chamou a princesa e esta confirmou tudo. Mandaram buscar Rola-Pau e Rola-Pedra que voltaram com os convidados. Quando foram vendo Filho da Burra no salão, correram para a janela e saltaram do sobrado abaixo, quebrando a cabeça nas pedras do calçamento, morrendo imediatamente. Filho da Burra casou com a princesa mais moça e viveu muito feliz. E a orelha do macacão? O diabo recebeu e voltou para os infernos.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1986.

Agatha Christie (Resenha de Livros) 7


A MÃO MISTERIOSA
The Moving Finger

Lymstock é uma cidadezinha tranqüila do interior da Inglaterra. A rotina de seus moradores é calma e, aparentemente, todos estão felizes… até que provocadoras cartas anônimas começam a espalhar a calúnia e o desespero. Ninguém sabe de quem é a mão misteriosa que, dissimulada, semeia conflito, escândalo e até assassinatos. Em meio ao caos que se instalou em Lymstock, a simpática Miss Marple é a única que consegue manter a frieza para investigar o estranho caso.
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OS CINCO PORQUINHOS
Five Little Pigs


Amyas Crale era famoso por sua paixão pela pintura e pelas mulheres. Dezesseis anos atrás ele foi assassinado. Sua esposa foi julgada e condenada como sendo a autora do crime, não sendo enforcada porque havia circunstâncias atenuantes. Contudo, a pena foi comutada em trabalhos forçados para o resto da vida, o que não chegou a acontecer, pois faleceu um anos após o julgamento. Agora a filha do casal, Carla, convencida da inocência de sua mãe, propôs a Hercule Poirot um grande desafio: limpar o nome de sua mãe retornando à cena do crime e encontrando a falha de um crime aparentemente perfeito.

Em “Os cinco porquinhos”, o detetive Hercule Poirot precisa voltar ao passado para provar que a bela Mrs. Crale, condenada pela morte do marido há 16 anos atrás, era inocente, mesmo com todos as provas de culpa e descobrir a identidade do cruel envenenador do famoso pintor Charles Crale, que pode ser qual quer uma das 5 pessoas que estavam naquela casa no dia 18 de setembro.

Amyas Craile foi morto há dezesseis anos atrás e sua mulher foi condenada e morreu na prisão. Antes de falecer deixa uma carta para a sua filha Caroline de 5 anos jurando inocência. Caroline sabe que só o melhor detetive do mundo pode resolver este caso a procura do verdadeiro assassino. Hercule Poirot aceita a missão e se lembra de uma antiga canção de ninar. Leia este livro e descubra quem realmente matou Amyas Craile.
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HORA ZERO
Towards Zero

A aristocrata Lady Tressilan é brutalmente assassinada em sua casa. Pouco tempo depois, Mr. Trevis, um experiente advogado criminalista de 80 anos, também é morto quando estava prestes a revelar uma pista sobre o crime. O superintendente Battle, da Scotland Yard, entra em ação e descobre que está diante de um perverso assassino. Seguindo cinco pistas aparentemente desconexas, o superintendente Battle inicia uma perigosa investigação para descobrir a identidade do criminoso.
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E NO FINAL A MORTE
Death Comes as the End


Renisenb decide retornar à casa de seu pai no vale do Nilo buscando por paz após a morte de seu marido. Mas debaixo da superfície aparentemente calma de sua próspera família se esconde a ganância, a luxúria e o ódio. E com a chegada da arrogante Nofret as paixões desta família se extravasam em homicídio.
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UM BRINDE DE CIANURETO
Sparkling Cyanide


Duas mortes acontecem no mesmo lugar, duas vezes com a presença das mesmas pessoas - exceto a primeira vítima, até certo ponto… -, constituindo praticamente a mesma situação. Assim é o contexto deste romance que desafia a sagacidade dos investigadores profissionais e a inteligência do leitor, porque todos tinham motivos para matar, mas, nos dois casos, ninguém teria aparentemente condições de colocar cianureto na taça de champanhe. Seria possível que a bela e sensual Rosemary se suicidara durante o jantar naquele luxuoso restaurante, quando comemorava o aniversário com os amigos mais íntimos? Alertado por pessoas desconhecidas, seu apaixonado e enganado marido fez repetir, exatamente um ano depois, a fatídica reunião, e deixou diante da mesa uma cadeira vazia, para nela se sentar o espírito de Rosemary, e descobrir-se a autoria do envenenamento. Não suspeitava o infeliz que isso chamaria as forças do mal, e o cianureto voltou à misturar-se na espumosa champanhe.
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A MANSÃO HOLLOW
The Hollow


Numa magnífica casa solar de províncias, propriedade de um abastado aristocrata, reúne-se um grupo de pessoas da melhor sociedade inglesa, para passar um agradável final de semana. Porém, entre a “gente fina”, há quem faça coisas más e que, com muitas boas maneiras, pode cometer os piores assassinatos. Isto é o que acontece na mansão de sir Enrique Angkatell: um assassino oculta-se entre seus elegantes convidados e um deles é a sua vítima. Felizmente, também lá se encontra um homenzinho pequeno, de grandes bigodes e com um cérebro privilegiado: Trata-se do famoso detetive Hercule Poirot, que descobre o culpado e impede, na última hora, que este cometa um segundo assassinato.
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OS TRABALHOS DE HÉRCULES
The Labours of Hercules


Prestes a se aposentar, o genial detetive Hercule Poirot decide aceitar 12 casos, selecionados de modo a lembrar os 12 trabalhos de Hércules, o célebre herói grego. A semelhança entre os dois? Apenas a origem do nome de batismo. Mas, quando o pequeno e elegante Poirot percebe que suas “pequenas células cinzentas” estão sendo desafiadas, ele ganha a força do semideus. De “O Leão da Neméia” até “As Profundezas do Inferno”, o leitor vai se divertir e se surpreender com as peripécias do meticuloso belga, umas das mais famosas criações de Agatha Christie.
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SEGUINDO A CORRENTEZA
Taken At The Flood

No outono de 1944, Gordon Cloade, dono de uma vasta fortuna, morre durante um bombardeio aéreo a Londres. Sem ter deixado testamento, tudo o que tinha passa para a sua jovem mulher Rosaleen. No entanto, outras cinco pessoas precisam desesperadamente do dinheiro do Sr. Cloade. Um violento assassinato é cometido, mas a vítima não é a viúva. Contratado para desvendar o crime, entra em ação o pequenino detetive Hercule Poirot. O que ele não desconfia é de que está prestes a se envolver em uma série de mortes. Seguindo a Correnteza é mais uma misteriosa trama bolada pela genial Agatha Christie.
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A CASA TORTA
Crooked House


Num conhecido subúrbio de Londres, ergue-se uma casa torta, desproporcional e grotesca. Sobre a extravagante família que a habita, parece haver desabado uma maldição: a culpa do envenenamento de seu chefe, o milionário Aristide Leonides. Qual dos parentes o teria assassinado? A própria mulher? Um dos seus filhos? Seus netos? Todos se entreolham desconfiados, enquanto aguardam que o criminoso, um monstro de “alma torta”, volte a se manifestar naquela casa torta… Com estes ingredientes de mistério e uma galeria de personagens inquietantes, Agatha Christie constrói outra de suas histórias marcadas pelo encantamento e o mistério.

Fonte:
http://users.hotlink.com.br/pmgi/agatha/index.html

terça-feira, 7 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 232


Francisca Júlia (O Monge)


Uns mercadores, com suas malas às costas, caminhavam em direção à cidade, para vender suas mercadorias. Mas a viagem tinha sido longa e eles estavam cansados.

Tinham atravessado campos, galgado montanhas e sentiam já tanta fadiga, que resolveram sentar-se sobre a relva para descansar. Mas o sol estava muito ardente e eles seguiram adiante. Entraram num bosque onde a sombra era fresca e em cuja entrada havia uma gruta de pedras brutas, iluminada de alvas estalactites.

Penetraram, não sem algum receio, cautelosos, porque podia ser um covil de malfeitores.

Tudo estava às escuras. Mas, logo que se habituaram às trevas s da gruta, viram um monge de joelhos, as mãos postas, a fronte erguida, absorvido nas suas preces.

— Monge, – disse um deles - perdoa-nos ter-te interrompido nas tuas meditações. Entramos em tua habitação para te pedir abrigo contra os ardores do sol.

— Entrai, viajantes, respondeu o monge mal desperto das suas contemplações místicas Todos os peregrinos terão aqui seguro abrigo contra as inclemências do sol e contra as tempestades da noite.

Os mercadores agradeceram, e, como sentissem fome e sede, falaram:

— Na nossa longa e perigosa jornada a fome devorou nossas entranhas e a sede secou nossas gargantas, mas tu deves estar tão acostumado ao jejum, que em tua habitação nada pode haver.

— Nada há, de fato, pobres viajantes, mas o poder de Deus é infinito e a sua misericórdia é sem limites.

Então, de um gesto, fez jorrar de uma fenda da rocha um grosso fio de água clara, onde eles beberam até à saciedade, e, arrancando do chão uns calhaus que se transformaram em pães, entregou-os aos peregrinos, dizendo:

— Tomai! Cumpriu-se a divina vontade.

Os mercadores, homens materiais e rudes, tremeram de susto, receando algum sortilégio diabólico, mas, ao mesmo tempo, diante da religiosa bondade e aspecto humilde do monge, comeram.

E um deles falou:

— Monge, se tu estás revestido de tanto poder e podes, com um gesto apenas, fazer brotar a água e transformar em pães os calhaus brutos, por que não fabricas também o ouro para gozares as delicias da riqueza? E por que vives oculto nas trevas desta gruta, como uma fera, emagrecido pelos jejuns e cilícios?

— Que errada e falsa compreensão tendes da vida, meus amigos! Sabeis que o ouro serve somente para corromper os sentimentos, envenenar a alma, e não poderá dar-me os gozos a que eu aspiro. Ao menos, na pobreza em que vivo e que desprezais, sem as preocupações que acarreta a fortuna e os pecados que ela desperta, posso mergulhar-me inteiramente em minhas preces e na contemplação da divindade.

Os viajantes agradeceram ao monge o generoso acolhimento, beijaram-lhe respeitosamente as mãos e partiram.

Fonte:
Poeteiro Iba Mendes

Casimiro de Abreu (Baú de Trovas)

Barra de São João, hoje Casimiro de Abreu

A borboleta travessa
vive de sol e de flores...
— Eu quero o sol de teus olhos,
o néctar dos teus amores!
- - - - - –

A vida é triste — quem nega?
— Nem vale a pena dizê-lo.
Deus a parte entre seus dedos
qual um fio de cabelo!
- - - - - –

Como a ave dos palmares,
fugindo do caçador,
eu vivo longe do ninho,
sem carinho e sem amor!
- - - - - –

Conchinha das lisas praias,
nasceste em alvas areias;
não corras tu para os charcos,
arrebatada nas cheias...
- - - - - –

Nas horas mortas da noite,
como é doce o meditar,
quando as estrelas cintilam
nas ondas quietas do mar!
- - - - - –

Ri, criança, a vida é curta,
o sonho dura um instante.
Depois... o cipreste esguio
mostra a cova ao viandante.
- - - - - –

Tem tantas belezas, tantas,
a minha terra natal,
que nem as sonha um poeta
e nem as canta um mortal!
- - - - - –

Todos cantam sua terra,
também vou cantar a minha;
nas débeis cordas da lira
hei de faze-la rainha.
- - - - - –

Tudo se gasta e se afeia,
tudo desmaia e se apaga,
como um nome sobre a areia,
quando cresce e corre a vaga.
- - - - - –

Um anjo veio e deu vida
ao peito de amores nu:
Minha alma agora remida,
adora o anjo — que és tu!

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva,

Contos e Lendas do Mundo (China: A Mulher Repetida)

por Chen Xuanyu

Esse fato aconteceu no início do reino da Imperatriz Wu, numa cidade de Hunan, onde vivia um funcionário público chamado Zhang Yi. Ele era um homem simples e reservado, de poucos amigos. Ele não tinha tido filhos homens, apenas duas filhas, mas a mais velha tinha morrido quando ainda criança. A mais nova, Qian Niang, era muito bonita.

Zhang Yi tinha um sobrinho, Wang Chu, quase da idade de sua filha, inteligente e também muito bonito. Zhang Yi gostava de falar que esse sobrinho teria um futuro muito brilhante e brincava, dizendo: “no tempo certo, minha filha vai ser uma esposa ideal para ele”.

Nos seus sonhos secretos, Wang Cu e Qian Niang sonhavam com frequência um com o outro. Mas suas famílias ignoravam tudo, e quando, mais tarde, apareceu um rapaz muito distinto, que trabalhava para Zhang Yi e lhe pediu a mão de sua filha, seu pai concordou.

Essa notícia partiu o coração de Qian Niang e Wang Chu ficou muito decepcionado. Ele então disse que gostaria de se mudar do lugar onde trabalhava e aceitou um cargo na capital. Nada conseguiu fazer com que ele mudasse de opinião e foi autorizado então a partir, não sem antes receber muitos presentes.

Depois do último adeus, com o coração mortificado, Wang Chu pegou o barco que ia para a capital. No fim da tarde, o barco já tinha avançado no rio muitos quilômetros, entre colinas muito verdes. Caiu a noite. Wang Chu não conseguia dormir. De repente, ouviu passos na margem. Pouco depois, os passos pararam diante do seu barco. Wang Chu, perplexo, reconheceu Qian Niang, de pés descalços.

Cheio de alegria, ele a tomou nos braços e perguntou de onde ela vinha. Ela respondeu, entre lágrimas:

— A força do teu amor nos uniu em sonho. Agora, contra minha vontade, querem me obrigar a casar com outra pessoa. Eu sei que vais me amar para sempre e eu prefiro morrer que viver sem ti. Por isso eu fugi.

Wang Chu ficou zonzo ao ouvir essas palavras. Jamais ele podia esperar tanto. Ele escondeu Qian Niang dentro do barco e eles partiram juntos, numa longa viagem, dia e noite. Alguns meses mais tardes eles se estabeleceram em Sichuan, bem longe de sua região natal.

Cinco anos depois, Qian Niang teve dois filhos. Ela nunca mais tinha escrito para seus pais, mas pensava sempre neles. Um dia, chorando, ela disse a Wang Chu:

— Para te seguir, um dia, eu faltei ao meu dever filial. Já se passaram cinco anos que não vejo meus pais. Sinto falta do carinho deles e o céu nunca vai me perdoar por viver longe deles.

Emocionado com sua tristeza, Wang Chu respondeu:

— Vamos então voltar para o nosso lugar. Sofrer assim não tem sentido. Eles voltaram então à sua cidade natal. Na chegada, Wang Chu foi sozinho bater na porta de Zhang Yi para lhe contar tudo o que tinha acontecido. Mas Zhang Yi gritou:

— O que está me contando? Minha filha está no quarto, de cama, muito doente, faz anos.

— Mas ela está no meu barco, nesse momento mesmo! disse Wang Chu.

Um pouco perturbado, Zhang Yi enviou um empregar verificar o que estava acontecendo.

De fato, Qian Niang esta lá, radiante e viva, impaciente para rever seus pais.

— Como vai meu pai e minha mãe? — perguntou.

O criado, sem fala, correu para contar a ZhangYi o que acabava de ver.

Logo a jovem doente soube da notícia na sua cama, levantou-se, vestiu suas roupas mais bonitas, seus enfeites e passou pó no rosto. Depois disso, sorrindo e muda, ele desceu para receber a recém-chegada.

As duas avançaram, uma na direção da outra, e logo que se encontraram, seus dois corpos se fundiram em um só, de forma perfeita. No entanto, esse corpo único vestia um conjunto duplo de roupas.

A família preferiu guardar segredo sobre o acontecido. Apenas as pessoas mais próximas ficaram sabendo. Os jovens esposos viveram ainda quarenta anos e seus dois filhos tornaram-se altos dignatários no reino.

Muitas vezes eu ouvi essa história quando era jovem. Há muitas versões e muitos acreditam que isso não aconteceu realmente. De minha parte, mais de 80 anos depois desses fatos, encontrei por acaso o juiz de Lai Wu, cujo pai era primo de Zhang Yi, e é o que ele me contou, de forma detalhada, que reconto aqui.

Fonte:
Sérgio Capparelli

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 231


Contos e Lendas do Mundo (Brasil [Espírito Santo]: O Compadre Invejoso)


Era uma vez dois compadres: um era rico e morava num grande palácio, e o outro era pobre e morava por perto, numa choupana. O compadre rico era muito avarento e não ajudava nada ao compadre pobre, o qual, muitos vezes, não tinha nem o que comer.

Um dia o compadre pobre foi até o alto de um morro, onde havia um pé de coco. Quando pelejava para derrubar um coco, este caiu e rolou morro abaixo, indo parar dentro da casa de um velhinho que morava por ali. O pobre homem desceu o morro e bateu à porta da casa pedindo licença ao velhinho para apanhar o coco e dizendo-lhe que era para alimentar seus filhos, que deixara chorando de fome.

O velhinho disse ao compadre pobre que podia pegar o coco, mas perguntou-lhe se não o queria trocar por três abóboras. O pobre aceitou a proposta e o velhinho então, disse-lhe que fosse à horta e apanhasse aquelas abóboras que lhe dissessem: "Me tira! Me tira!"

Assim fez o pobre homem, mas antes de ir embora foi agradecer ao velhinho, o qual falou: "Quando o senhor chegar com as abóboras no princípio do morro, jogue uma delas ao chão. Quando chegar lá em cima, jogue outra, e quando chegar em casa, jogue a terceira que não se arrependerá."

Quando o compadre pobre ia começar a subir o morro jogou a primeira abóbora ao chão, como o velhinho lhe dissera. Apareceu então um belo cavalo, todo arreado, no qual ele montou e prosseguiu caminho. Ao chegar lá em cima do morro, jogou a segunda abóbora ao chão, e apareceu-lhe uma vaca acompanhada de um bezerrinho, que ele tocou para casa. Ali chegando, jogou a última abóbora. Apareceu-lhe um montão de dinheiro, tão grande que levou dias apanhando-o com a mulher e os filhos e levando-o para dentro de casa.

Com o dinheiro que ganhou, o homem mandou fazer uma bela casa e melhorou tanto sua pequena propriedade que ela parecia até um jardim. Daí por diante passou a viver como homem rico que era, e muito feliz com sua família.

Um dia o compadre rico passou por ali e viu aquilo tudo tão mudado, que se admirou, não resistindo a uma visita a seu compadre, ao qual perguntou como conseguira tal riqueza. O compadre que era pobre contou todo o caso para o outro, sem esconder nada. O rico foi embora, picado de tanta inveja e resolvido a ganhar também uma riqueza de maneira tão fácil.

Assim foi que se encaminhou para o mesmo coqueiro no alto do morro e deixou cair um coco, que rolou direito à casa do velhinho. O homem rico desceu o morro e foi ter com o velho, dizendo-lhe que era muito pobre e que aquele coco que ali caíra ia servir para alimentar os seus filhos. Como o velhinho sabia de tudo, disse ao homem invejoso que se ele quisesse trocaria o coco por três abóboras. Mais do que depressa o rico concordou. Então o velhinho explicou que fosse à horta e apanhasse as três abóboras que falassem: "Me tira! Me tira!"

O compadre rico apanhou as abóboras maiores que ele viu na horta e foi embora sem nem sequer agradecer ao velhinho. Quando começou a subir o morro jogou uma abóbora no chão. No mesmo instante, apareceu um bando de marimbondos que deu em cima dele, picando-o todinho. O homem subiu o morro correndo e lá em cima tratou de jogar outra abóbora fora; apareceu-lhe, então, uma bruta onça, a qual saiu correndo atrás do homem, quase o pegando.

Quando o compadre invejoso chegou à sua casa com a última abóbora em baixo do braço, fugindo da onça, abriu e fechou depressa a porta. Jogou a abóbora no chão, chamou a família toda e mandou que fechassem bem a casa. Assim fizeram. Foi aí que apareceram cobras por todos os lados, mordendo e matando todas as pessoas da casa. Quem mandou o homem ser tão invejoso?

Fonte:
Estórias e lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Antologia Ilustrada do Folclore Brasileiro 6.