sábado, 12 de dezembro de 2009

Trova LXXXVII - Lacy José Raymundi (Garibaldi/RS)

Qorpo Santo (Mateus e Mateusa)


Personagens
Mateus, velho de 80 anos
Mateusa, idem
Catarina
Pêdra e filhas
Silvestra
Barriôs, criado

ATO PRIMEIRO

Cena Primeira

MATEUS (caminhando em roda da casa; e Mateusa assentada em uma cadeira)
– Que estão fazendo as meninas, que ainda as não vi hoje?!

MATEUSA (balançando-se)
– E o Sr. Que se importa, Sr. Velho Mateus, com as suas filhas?

MATEUS (voltando-se para esta)
– Ora é boa esta! A Sra. Sempre foi, é, e será uma ( atirando com a perna) – não só impertinente, como atrevida!

MATEUSA – Ora, veja lá, Sr. Torto (levantando-se), se estamos no tempo em que o Sr. A seu belo prazer me insultava! Agora eu tenho filhos que me hão de vingar

MATEUS (abraçando-a) – Não; não, minha querida Mateusa; tu bem sabes que isso não passa de impertinências dos 80. Tem paciência. Vai me aturando, que te hei de deixar minha universal herdeira ( atirando com uma perna) do reumatismo que o demo do teu Avô torto meteu-me nesta perna! (atirando com um braço) das inchações que todas as primaveras arrebentam nestes braços! (abrindo a camisa) das chagas que tua mãe com seus lábios de vênus imprimiu-me neste peito! E finalmente (arrancando a cabeleira): da calvície que tu me pegaste, arrancando-me ora os cabelos brancos, ora os pretos, conforme as mulheres com quem eu falava! Se elas (virando-se para o público) os tinham pretos, assim que a sujeitinha podia, arrancava-me os brancos, sob o frívolo pretexto de que me namoravam! Se elas os tinham brancos, fazia-me o mesmo, sob ainda o frivolíssimo pretexto de que eu as namorava (batendo com as mãos, e caminhando). E assim é; e assim é, - que calvo! calvo, calvo, calvo, calvo, calvo (algum tanto cantando) calvô... calvô...calvô... ô...ô...ô!...

MATEUSA (pondo as mãos na cabeça)
– Meu Deus! Que homem mais mentiroso! Céus! Quem diria que ainda aos 80 este judeu-errante havia de proceder como aso quinze, quando roubava frutas do Pai!

MATEUS (com fala e voz muito rouquenha) –
Ora, Sra.! Ora, Sra.!Quem, quem lhe disse essa asneira?!
(Profere estas palavras querendo andar e quase sem poder. É este o todo do velho em todos os seus discursos.)

MATEUSA (empurrando-o) – Então para que fala de mim a todas as moças que aqui vêm, Sr., chino?! Para quê, hem? Se o Sr. não fosse mais namorador que um macaco preso a um cepo, certamente não diria – que sou velha, feia e magra! Que sou doente de asma; que tenho uma perna mais curta que a outra; que... que... finalmente, que já (voltando-se com expressão de terror) não lhe sirvo para os seus fins de (pondo a mão em um olho) de... O Sr. bem sabe! (esfregando com as costas da mão o outro [olho] com voz de quem chora). Sim, se eu não fosse desde a minha mais tenra idade um espelho, tipo, ou sombra de vergonha e de acanhamento, eu diria (virando-se para o público): Já não quer dormir comigo! Feio! (saindo da sala) mau! velho! Rabugento! Também não te quero mais, fedorento!

MATEUS – Mas (voltando-se para o fundo), e as meninas, onde estão!? Onde? Onde?
(Puxa a cabeleira.) Pêdra! Catarina! Silvestra! (Escuta um pouco.) Nenhuma aparece! Cruéis! Fariam o mesmo que a Mãe!? Fugiriam de mim!? Coitado! Pobre de quem é velho! As mulheres fogem, e as filhas desaparecem!

Cena Segunda

PÊDRA (entrando) – O que é, Papaizinho? O que é que quer? O que tem? Sucedeu-lhe alguma cousa? Não? (Pegando-lhe no braço.)

MATEUS (como acordando-se de um sonho.) – Hem? (Esfregando os olhos.) Hem? O que é? Que é? Chegou alguém? Eu estava, aqui estava.

PÊDRA – Que tem, meu Pai?

MATEUS (assoando-se sem tocar no nariz, e olhando) – Vejam o que é ser velho!
Menina, menina, já que estás aqui, dá-me um lenço; anda (pegando nos braços da filha), anda, minha queridinha; vê um lenço para o vosso velho paizinho! Sim; sim; vai; vai; anda. (Fazendo-a caminhar.)

PÊDRA (voltando-se) – Também este meu Pai cada vez fica mais porco! Por isso é que a minha mãe já enjoou ele tanto, que nem o pode ver! (Saindo.)
Eu já vou buscar! Espere um minuto (com as mãos, fazendo-o parar), já venho, Papai! Já venho, e vou buscar-lhe um dos mais lindos (com ar gracioso) que encontrar em meu guardaroupa, ouviu, Papai? Ouviu?

MATEUS – Sim, sim; já ouvi. Tu sempre foste o encanto dos meus olhos; o sonho de todos os meus momentos... (Entra outra.) Esta menina (voltado para o povo) é os encantos da imaginação desta cabeça (batendo com as mãos, uma de cada lado da cabeça) e objeto que ao ver, me enche (apalpando o coração) este coração de alegria!

CATARINA – E eu, Papai? E eu, então não mereço alguma?!

MATEUS (voltando-se e olhando para Catarina) – Minha querida Filha! Minha querida Catarina! (Abraçando-a .) És tu, oh! Quanto me apraz ver-te! Se tu soubesses, queridíssima Filha, quão grande é o prazer que banha (inclinando [-se] e levando a mão ao peito) este peito! Sim (tornando a abraçá-la) , tu és um dos entes que fazem com que eu preze a velha existência, ainda por alguns dias! Sim sim, sim! Tu, tua sábia irmã Pêdra; e... e aquela que ainda hoje não tive a fortuna de ver, a tua mais que simpática irmã Silvestra; - são todas três os Anjos que me amparam; que me alimentam o corpo e a lama; por que, e para quem vivo; e morreria, se fosse mister!

(Entra Silvestra, aos pulinhos, e Pêdra, fazendo passos de dança.)

SILVESTRA – Papaizinho do meu coração! (abraçando-o pelas pernas.) Você é o meu tudo! Olhe, Papaizinho: eu sonhei que o Sr. queria um lenço, e corri! Tomei este que a mana Catarina lhe trazia, e lhe truce!

MATEUS – Quanto sou feliz! (Pega o lenço e enxuga os olhos.)

CATARINA (à parte, e com expressão de dor) – Ele disse que a outra era simpática; e de mim nem ao menos diz que sou formosa. Sempre é velho: não sabe agradar a todos!

PÊDRA – Papai! Eu não fui portadora do que me pediu, porque a Silvestra é muito velhaca, e muito ligeira! Assim que me viu com o lenço na mão, tomou-m’o, e correu para trazer-lhe primeiro que eu!

SILVESTRA – É porque eu quero ( dando com a mão na irmã) mais bem ao Papai do que Você; aí está!

PÊDRA – Pois não! Não vê que a Sra. já pesou os graus de amor que em meu coração eu consagro a meu Pai...

SILVESTRA – Não preciso pesar! Olhe: no seu coração existe certa força ou quantidade de amor consagrado (afagando com as mãos) ao papaizinho! E em mim, todo o meu coração é puro amor a ele tributado!

PÊDRA – Vejam só ( com aspecto impertinente, desgostoso; rosto franzido, pondo a cabeça de um lado, etc.) como é retórica! Não pensei que a Sra. estivesse tão adiantada! Não estudou; não se preparou hoje tãobém em seus velhos alfarrábios de filosofia!? Se não se preparou, para outra vez prepare-se, e veja se ganha mais um afeto do papai!

CATARINA (acomodando-as) – Meninas! (pegando no braço de uma e de outra) acomodem-se; vocês parecem nenês!

MATEUS – Meus anjos ( tãobém querendo acomodá-las). Minhas santas; minhas virgens... não quero que briguem, porque isso me desgosta. Sabem que já sou velho e que os velhos são sempre mais sensíveis que os moços... Quero vê-las contentes; contentezinhas; ao contrário fico triste.

PÊDRA E CATARINA (formando com as mãos pegadas umas nas outras um círculo em roda do pai.) – Nosso Papaizinho! Não há de se desgostar; não há de chorar (dançando). Nós havemos de amparar o nosso querido Papai. (Umas para as outras) Vamos; pulemos; dancemos; e cantemos: todos! Todos a uma só voz. ( O Pai vira-se ora para uma, ora para outra, cheio do maior contentamento: o sorriso não lhe sai dos lábios; os olhos são ternos; a face se franze de prazer; quer falar, e apenas diz: )
Meu Deus! Eu sou; eu sou tão feliz! que... Sim, sou; sou muito feliz!
(As filhas cantam:)
Nós somos três anjinhos;
E quatro éramos nós,
Que do céu descemos;
E o amor procuremos:
- Mataremos ao algoz
Destes dois nossos paizinhos!
Sempre fomos bem tratadas
Quer deste, quer daquela:
Não queremos que a maldade,
Para nossa felicidade,
Maltrate a ele ou a ela...
Mataremos tresloucadas!
Não somos só anjos
Que assim pensamos;
Que assim praticamos;
Tãobém são os arcanjos!
De principados – exércitos
Temos também de virtudes!
De tronos! Não mudes,
Papai! Vivam as ordens!
- Para debelarmos facínoras!
- Para triunfarem direitos,
- As armas temos nos peitos!
- A força de milhões d’espíritos!
(Terminado o canto, abraçarão todas o Pai, e este a elas, banhados todos na maior efusão de júbilo.)

PÊDRA ( para o pai) – Agora, Papai, vamos coser, bordar, fiar; fazer renda. ( Para as irmãs: ) Vamos, Meninas; a Mamãe já há de Ter a nossa tarefa pronta para nos dar trabalho!

CATARINA- Ainda é cedo; eu não ouvi dar oito horas; e o nosso trabalho sempre principia às nove.

SILVESTRA – Eu não sei o que fazer hoje: se bordar, se fiar, ou se crivar!

PÊDRA – Por bem de Deus, você nunca sabe o que há de fazer!

SILVESTRA (olhando-a com certo ar de indiferença) – Se te parece, minha querida Maninha, chama-me de preguiçosa!

PÊDRA – Não; isso eu não digo, porque a Sra. deu as mais delumbrantes provas de que há de vir a ser lá... (elevando a mão) para o futuro uma moça das mais trabalhadoras que eu conheço! E ainda hoje disso deu segurança no jardim do quintal, em que não ficava flor que não fosse pela Sra. cultivada!

SILVESTRA – Inda bem que a Sra. sabe, e faz-me o obséquio de dizer! E se eu o não fora ainda, não era de admirar; pois não conto mais de nove a dez anos de idade.

MATEUS (voltando-se para Silvestra) – Pois a Sra. esteve no quintal?

SILVESTRA – Pois então, Papai; eu não havia de ir cortar, arrancar todas as ervas perniciosas, que crescendo destroem as plantas, as flores preciosas ?

MATEUS (com muita alegria, pegando a filha) – Filha! Filha minha! Vem a meus braços!
(Abraça-a e beija-a muitas vezes.) Fazes, minha muito amada Silvestra, o que Deus faz aos Governos! O que os bons Governos fazem aos Governados! Prendem; castigam; melhoram; ou inutilizam os maus – para que não ofendam, nem prejudiquem os bons! E vocês (para as outras), o que faziam, durante o tempo em que minha inteligente Silvestra procedia com tanto acerto, praticando uma tão meritória ação e digna dos maiores elogios?

PÊDRA E CATARINA (quase ao mesmo tempo) – Eu regava as plantas e flores, com a mais fresca e cristalina água, a fim de que crescessem e dasabrochassem – perfeitas e puras! ( Isto disse Catarina)

PÊDRA - Eu, Papai, mudava algumas e plantava outras.

MATEUS – Já vejo que todas trabalharam muito! Hei de fazer a cada uma das Sras. O mais lindo presente! (Movendo a cabeça – inclinando- a.) Isto é, quando eu sair à rua! Pois bem sabem que eu aqui não tenho com que lhes presentear.

PÊDRA – Eu quero... quero: o que há de ser? (Levantando algum tanto a cabeça.) Uma boneca de cera, do tamanho da (apontando) Silvestra! E toda vestida de seda, ouviu, Papai? Com brincos, adereço... O Sr. sabe como se vestem as moças que se casam; assim é que eu quero! Não se esqueça; não se esqueça de comprar e me trazer assim. Olhe ( batendo- lhe a mão no braço), se na loja do Pacífico não tiver, tem na do Leite, na do Rodolfo, ou do Paradeda.

SILVESTRA – Eu me contento com menos! Quero um vestido de seda, lavrada a barra, e as mangas a fio de ouro; com blonds, e tudo o mais que se usar, do mesmo fio, ou daquilo que for mais moderno.

MATEUS (para Silvestra) – Contentas-te só com isso? Não queres sapatos de seda, botinhas de veludo tãobém bordadas de ouro, ou enfeite fino para a cabeça?

SILVESTRA – Não, Papai; basta o vestido; o mais tudo eu tenho muito bom, e em estado de poder servir com o lindo vestido que lhe peço. Sempre gostei da economia; e sempre aborreci a prodigalidade!

MATEUS – Estimo muito; é o mais fiel retrato da moral do velho Mateus!
(Para Catarina:)E a Sra., que está tão calada! Então, não pede nada?

CATARINA - As manas já pediram tanto, que eu não sei o que lhe hei de pedir; parece que tudo há de custar tanto dinheiro, que se o Sr. não tivesse ainda há pouco tirado a sorte grande na loteria do Rio de Janeiro, eu acreditaria – que teria de vender a cabeleira, para satisfazer tantos pedidos!

MATEUS – Não; não, menina! O que elas pedem custa pouco comparativamente aos meus e vossos rendimentos. Diga, diga: o que mais estimará que eu lhe traga, para comprar e trazer-lhe?!

CATARINA – Pois bem; em vou dizer-lhe: mas V. Mcê não se há de zangar.

MATEUS – Não; não; peça o que quiser, que eu com muito prazer lhe trago!

CATARINA – Pois então, visto que tem gosto em me fazer um presente... Até se eu não tivesse de ir a um batizado à casa da minha amiga e comadre D. Leocádia das Neves Navarro e Souto, eu não diria o que mais preciso, e quero que me dê... É um ramalhete das mais delicadas flores que se costumavam vender nas lojas das modistas francesas e alemãs.

MATEUS – E levou tanto tempo para pedir uma cousa de tão pouco valor!?

CATARINA – Não é de muito pequeno valor! O que eu quero é de uns muito mimosos, cujo preço sobe a dez ou doze mil-réis!

MATEUS – Pois então, isso é muito barato! Mas como é o que me pede, fique certa que há de ser servida, tanto mais que tem a intenção de se apresentar com ele em um baile, batizado, ou não sei que festa!

CATARINA – É quanto basta; e com ele ficarei muito contente!

MATEUSA (entra rengueando, revirando os olhos, e fazendo mil trejeitos; as filhas que a observam dizem umas para as outras) – Aí vem a Mamãe! – (Quase em segredo, rapidamente:) Olhem a Mamãe! Vamos! Vamos! Já são nove horas! ( Para o pai: ) Papai! Não se esqueça das nossas encomendas, como nós não nos esquecemos d’orar a Deus para que prolongue seus dias; e que estes sejam felizes! Até logo à hora do jantar ( e fazendo uma profunda cortezia, depois de lhes beijarem a mão, pegando nas saias dos vestidos), que é quando poderemos ter o inexprimível prazer de passar alguns preciosos momentos em sua estimável companhia.

Cena Terceira

MATEUSA (aproximando-se às filhas) – Vão meninas, vão fazer a sua costura! Está tudo marchando! Cada uma das Sras. Tem na sua almofada o pano, a linha, a agulha; e tudo o mais que é necessário para trabalhar até às 2 da tarde. O que é de abordar para a Pêdra, está desenhado a lápis; os picados para a Catarina, estão alinhavados; e a costura lisa, a camisa deste velho feio (batendo no ombro do marido) está começada. Tenham cuidado: façam tudo muito bem feitinho.

CATARINA, PÊDRA E SILVESTRA – Como sabe, somos obedientes filhas; deve por isso contar que assim havemos de fazer. (Saem.)

MATEUSA (para o marido, batendo-lhe no ombro) – Já sei que está repassado de prazer! Esteve com suas queridas filhinhas mais de duas horas! E eu lá, sofrendo as maiores saudades!

MATEUS – É verdade, minha querida Mateusa (batendo-lhe também no ombro), mas, antes de te dizer o que pretendia, confessa-me: Por que não quiseste tu o teu nome de batismo, que te foi posto por teus falecidos Pais?

MATEUSA – Porque achei muito feio o nome Jônatas que me puseram; e então preferi o de Mateusa, que bem casa com o teu!

MATEUS – Sempre és mulher! E não sei o que me pareces depois que ficaste velha e rabugenta!

MATEUSA (recuando um pouco) – És bem atrevido! De repente, e quando não esperares, hei de tomar a mais justa vingança das grosserias, das duras afrontas com que costumas insultar-me!

MATEUS (aproximando-se e ela recuando)

MATEUSA – Não se chegue para mim ( pondo as mãos na cintura e arregaçando os punhos) que eu não sou mais sua! Não o quero mais! Já tenho outro com quem pretendo viver mais felizes dias!

MATEUS (correndo a abraçá-la apressadamente) – Minha queridinha; minha velhinha! Minha companheirinha de mais de 50 anos (agarrando-a), por quem és, não fujas de mim, do vosso velhinho! E as nossas queridas filhinhas! Que seriam delas, se nós nos separássemos; se tu buscasses, depois de velha e feia, outro marido, ainda que moço e bonito! Que seria de mim? Que seria de ti? Não! Não! Tu jamais me deixarás.
(Tanto se abraçam; agarram; pegam, beijam-se, que cai um por cima do outro.)
Ai! Que quase quebrei uma perna! Esta velha é o diabo! Sempre mostra que é velha e renga! (Querem erguer-se sem poder.) Isto é o diabo!...

MATEUSA ( levantando-se, querendo fazê-lo apressadamente e sem poder, cobrindo as pernas que, com o tombo, ficaram algum tanto descobertas)
– É isto, este velho! Pois não querem ver só a cara dele? Parece-me o diabo em figura humana! Estou tonta.. Nunca mais, nunca mais hei de aturar este carneiro velho, e já sem guampas!
(Ambos levantaram-se muito devagar; a muito custo; e sempre praguejando um contra o outro. Mateusa, fazendo menção ou dando no ar ora com uma, ora com outra mão: ) Hei de ir-me embora; hei de ir; hei de ir!

MATEUS – Não há de ir; não há de ir; não há de ir porque eu não quero que vá! Você é minha mulher; e pelas leis tanto civis como canônicas, tem obrigação de me amar e de me aturar; de comigo viver, até eu me aborrecer! (Bate com um pé. ) Há de! Há de! Há de!

MATEUSA – Não hei de! Não hei de! Não hei de! Quem sabe se eu sou sua escrava!? É muito gracioso, e até atrevido! querer cercear a minha liberdade! E ainda me fala em Leis da Igreja e civis, como se alguém fizesse caso de papéis borrados! Quem é que se importa hoje com Leis ( atirando-lhe com o ‘Código Criminal’) , Sr. banana! Bem mostra que é filho dum lavrador de Viana! Pegue lá o Código Criminal, - traste velho em que os Doutores cospem e escarram todos os dias, como se fosse uma nojenta escarradeira!

MATEUS (espremendo-se todo, abaixa-se levanta o livro e diz à mulher) – Obrigado pelo presente: adivinhou ser cousa de que eu muito necessitava!
(Mete-o na algibeira. À parte: ) Ao menos servirá para algumas vezes servir-me de suas folhas, uma em cada dia que estas tripas (pondo a mão na barriga) me revelarem a necessidade de ir à latrina.

MATEUSA – Ah! já sabe que isso não vale cousa alguma; e principalmente para as Autoridades – para que tem dinheiro! Estimo muito; muito; e muito! (Pega em um outro – a ‘Constituição do Império’ e atiralhe na cara.)

MATEUS (gritando) – Ai! cuidado quando atirar, Sra. D. Mateusa! Não continuo a aceitar seus presentes, se com eles me quiser quebar o nariz! (Apalpa este, e diz: ) Não partiu, não quebrou, não entortou! ( E como o nariz tem parte de cera, fica com ele assaz torto. Ainda não acaba de endireitá-lo, Mateusa atira-lhe com outro de ‘História Sagrada’, que lhe bate numa orelha postiça, e que por isso com a pancada cai; dizendo-he: ) Eis o terceiro e último que lhe dou para... os fins que o Sr. quiser aplicar!

MATEUS (ao sentir a pancada, grita) – Ai que fiquei sem orelha! Ai! Ai! Ai! Onde cairia? (Atirando os livros na velha e com raiva. ) Por mais que recomendasse a esta endemoninhada que não queria presentes caros, este demônio havia de quebrar-me o nariz e pôr-me fora uma orelha! Ó Mateusa do diabo! Com quê, partes desta casa sem eu ir amanhã ao baile masquê, visitar as Pavoas!? E...

MATEUSA (batendo o pé) – Cachorro! Ainda me fala em pavoas, e em baile masquê!?
Traste! Ordinário! Já... rua, seu maroto!

MATEUS (voltando-se para o público) – Já se-viu que escaler velho mais impertinente! Esperem que eu lhe boto cavernas novas! (Procurando uma bengala. ) Achei! ( Com a bengala em punho) Já que a Sra. não faz caso da lei escrita! falada! e jurada! há de fazer da lei cacetada! paulada! ou bengalada!
(Bate com a bengala no chão.)

MATEUSA – Ah! dessa lei, sim, tenho medo. (À parte.) Mas ele não pode comigo, porque eu sou mais leve que ele; tenho melhor vista ; e pulo mais. (Pega em uma cadeira e dá-lhe com ela, dizendo: ) Ora tome lá! (Ele apara a pancada com a bengala, encolhendo-se todo; enfia esta na cadeira; empurram para lá, empurram para cá.)

CATARINA, PÊDRA E SILVESTRA (aparecendo na porta dos fundos; umas para as outras) – Vai lá! (Empurrando. Outra: ) Vai tu apartar! (Outra: ) Eu, não; quando eles estão assim, eu tenho medo, porque sou pequenina!

MATEUS – Ai! eu caio! Quem me acode! Perdi o queixo!

MATEUSA (gritando e correndo) – Ai! eu esfolei um braço, mas deixo-lhe a cadeira enfiada na cabeça! (Quer assim fazer e fugir, mas Mateus atiralhe a cadeira às pernas; ela tropeça e cai; ele vai acudi-la; quer correr; as filhas convidam-se a fugir; ele cai aos pés da velha).

BARRIÔS ( o criado) - Eis, Srs., as conseqüências funestas que aos administrados ou como tais considerados, traz o desrespeito das Autoridades aos direitos destes; e com tal proceder aos seus próprios direitos: – A descrença das mais sábias instituições, em vez de só a terem nesta ou naquela autoridade que as não cumpre, nem faz cumprir! – A luta do mais forte contra o mais fraco! Finalmente, - a destruição em vez da edificação! O regresso, em vez do progresso!

Porto Alegre, maio 12 de 1866.

Fonte:
Virtual Books

Qorpo Santo (1829 – 1883)


José Joaquim de Campos Leão, conhecido como Qorpo Santo (Triunfo, 19 de abril 1829 — Porto Alegre, 1 de maio de 1883) foi um dramaturgo brasileiro.

José Joaquim Leão, natural da vila do Triunfo, interior do Rio Grande do Sul. Percorreu várias localidades do interior antes de se estabelecer em Porto Alegre. Foi comerciante, professor, vereador, delegado de polícia. Vai para Porto Alegre em 1840, já órfão de pai, para estudar gramática e conseguir emprego na capital, habilitando-se ao exercício do magistério público, que passou a exercer a partir de 1851.

Casa-se em 1855 e, em 1857, muda-se com a família para Alegrete, cidade na qual funda um colégio, adquirindo respeitabilidade como figura pública, escrevendo para jornais locais e ocupando ainda cargos públicos de delegado de polícia e vereador.

Em 1861, de volta a Porto Alegre, segue a carreira de professor e começa a escrever sua Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade. Parecem manifestar-se, neste momento, os primeiros sinais de seus transtornos psíquicos, rotulados então sob o diagnóstico de “monomania”, sendo afastado do ensino e interditado judicialmente a pedido da própria família. QS não aceita pacificamente este seu enquadramento psiquiátrico, recorrendo ao Rio de Janeiro, sendo examinado então por médicos daquela capital, que diferem do diagnóstico inicial e não endossam sua interdição judicial.

Todavia, o estigma estava posto, e o autor se vê cada vez mais isolado. Este isolamento social parece incitá-lo a escrever febrilmente, e o leva ademais a constituir sua própria gráfica, na qual viabiliza e edita sua produção textual.

A extensão e a natureza de seus problemas mentais não são claras. Os médicos que o examinaram no Rio de Janeiro, em 1868, declararam que estava apto para administrar negócios e família. Porém, de volta a Porto Alegre, no mesmo ano, foi interditado pela Justiça. Conseguiu montar uma gráfica, em 1877, para imprimir uma estranha série de livros intitulada Ensiqlopédia, ou Seis Mezes de huma Enfermidade.

As Relações Naturais, Mateus e Mateusa e Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte foram montadas, pela primeira vez, em 1966 na capital gaúcha.

Três anos mais tarde, foi lançada a coletânea das peças por iniciativa de Guilhermino César. Desde a década de 80 sua vida e obra têm inspirado livros, teses e discussões. ‘‘Atualmente, procura-se disfarçar a superficialidade dos seus enredos com algumas tintas de protesto e denúncia’’, afirma o professor Fraga no ensaio Um Corpo que se Queria Santo, introdução ao Teatro Completo. ‘‘Mas, na essência, lá está todo o arsenal cômico vindo diretamente de Martins Pena: quiproquós, esconderijos dentro dos armários, personagens caricaturais, os mesmos velhos preconceitos disfarçados com a máscara da liberalidade.’’

Os textos têm tantos personagens quanto possível diante da crença do autor na migração das almas. A Impossibilidade da Santificação ou a Santificação Transformada, por exemplo, traz 31 deles. Alguns personagens viram outros durante o enredo. ‘‘Alguns personagens são pessoas da sociedade carioca que ele queria atacar’’, conta Denise. Curioso são os nomes: Rubincundo, Revocata, Helbaquínia, Ridinguínio, Ostralâmio, Lamúria, Rocalipsa, Esterquilínea, Eleutério, Régulo, Catinga, Esquisito, Córneo, Ferrabrás, Simplício e por aí segue. A edição mantém os nomes originais, mas atualiza a grafia das palavras para o português usual, em vez de manter a proposta do autor. Muda inclusive a escrita dos títulos: Relasões Naturaes, por exemplo, vira Relações Naturais.

Campos Leão pretendia reformar a língua portuguesa suprimindo letras inúteis como ‘‘u’’ depois do ‘‘q’’ (daí o Qorpo-Santo) e lançou a sua Ensiqlopédia com tipologia própria. Idéia que fazia certo sentido, tanto que algumas de suas propostas foram mais tarde incorporadas ao idioma, como a eliminação do ‘‘ph’’ de pharmacia e o ‘‘h’’ quando não soa, como em deshonesto e deshumano. Para sexo, no entanto, propunha a grafia seqso. Achava que assim atenderia melhor à alfabetização, baseado em sua experiência como professor. ‘‘Quando ele percebeu que não havia chance de suas peças serem lidas, virou tipógrafo e editou a Ensiqlopédia em casa’’, explica Denise.

A Ensiqlopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade possui nove volumes. Cada um deles é dedicado a um gênero — as comédias estão no quarto e as poesias, no primeiro. Há três na biblioteca da família Assis Brasil, três com o colecionador Julio Petersen, ambos de Porto Alegre, e os outros três estão desaparecidos. Há somente um exemplar de cada. Reeditada, a obra teatral funciona como pretexto para enveredar pelo universo de uma das figuras mais intrigantes da dramaturgia brasileira. O melhor de tudo parece mesmo o autor, inventor de si mesmo e da proposta que, como lembra Fraga, a Emília de Monteiro Lobato apreciaria conhecer.

As dezessete comédias (uma delas incompleta) reunidas em Teatro Completo são todas datadas de 1866 e levariam exatamente um século para ser encenadas. A primeira montagem foi realizada por um grupo estudantil de Porto Alegre, em 1966. Desde então, os textos de Qorpo-Santo voltaram poucas vezes ao palco. É um autor difícil, que exige ousadia da direção. Os personagens não apresentam uma identidade coerente, e suas ações são as mais desvairadas: ateiam fogo no cenário, soltam ratos no palco, bolinam e espancam uns aos outros. Muitas peças têm uma pesada carga sexual. As Relações Naturais inclui cenas em um bordel e insinuações de incesto. A Separação de Dois Esposos encerra-se com um diálogo hilariante entre Tatu e Tamanduá, o primeiro casal gay da dramaturgia brasileira. O curioso é que o dramaturgo era um conservador empedernido. Só quando escrevia, o monarquista José Joaquim de Campos Leão dava lugar ao anárquico Qorpo-Santo.

Adotou o nome Qorpo-Santo por razões místicas que não explica muito bem – em seus escritos, compara-se a Jesus Cristo e afirma encontrar-se, pelo fenômeno da "transmigração das almas", com o espírito de Napoleão III. A grafia de "Qorpo" obedece à ortografia criada pelo autor, que assim desejava simplificar a escrita em português.

Obras

* Certa identidade em busca de outra
* Eu sou vida eu não sou morte
* Um credor da Fazenda Nacional
* As relações naturais
* Hoje sou um; e amanhã sou outro
* Um assovio
* Um parto
* Hóspede atrevido ou O brilhante escondido
* A impossibilidade da santificação ou A santificação transformada
* Dois irmãos
* A separação de dois esposos
* La
* Lanterna de fogo
* Marinheiro escritor
* Marido extremoso
* Mateus e Mateusa
* Elias e sua loucura bíblica

Sobre a Obra

Foram necessários quase cem anos, a partir da publicação original dos textos de autor gaúcho do século XIX, José Joaquim de Campos Leão, nome ao qual o próprio autor acrescentou a alcunha de Qorpo-Santo (QS), para que sua obra conquistasse reconhecimento devido aos esforço de muitos intelectuais que assim o quiseram e para tal trabalharam, na década de 1960.

Alguns críticos datando desta republicação, destacando-se o editor de seu teatro completo, Guilhermino César, buscaram situá-lo como precursor de modernas tendências da arte teatral, a princípio o teatro do absurdo -na época, pretendendo atribuir-lhe a paternidade desta moderna corrente teatral- e mais tarde querendo situa-lo como antecessor movimento surrealista.

Flávio Aguiar descreve a época do relançamento das obras, muito bem recebido, com análise profunda, ao seu Os homens precários -ainda na década de 1970, bem como a tendencia dos intelectuais de glorifica-lo como um criador do tão famoso e moderno teatro do absurdo. Enquanto Eudinyr Fraga, em trabalho datado aos anos 80, defende que QS seja enquadrado como autor surrealista, por fazer uso constante em seu texto do chamado "automatismo psíquico", que caracterizaria aquela corrente estética: "Suas personagens são sempre projeção dele próprio, e com ele muitas vezes se confundem, como observamos pelo conhecimento de sua biografia. Inclusive, deixam a categoria de personagens e assumem um tom discursivo, lamentando as infelicidades e as injustiças sofridas pelo criador. Por outro lado, não tem preocupações estéticas. Suas lamúrias estão sempre a um nível existencial, ou melhor, individual. Sua obra visa satisfazer uma necessidade interior que a expressão determina”.

Hoje, QS é visto como um indivíduo criativo e fora de seu tempo, não se propõe mais sua suposta intenção como inovador da estética, mas como um artista envolvido e dedicado intimamente à sua obra, tanto que, por vezes, sua mente invade os personagens liberando seu discurso como uma colagem desconexa da lógica da personagem.

Aguiar analisa em detalhe o teatro de QS, e seus argumentos fogem à discussão sobre ser QS o precursor não reconhecido de modernas tendências do teatro moderno. Para Aguiar, QS constrói um teatro da paralisia, em que o pano de fundo da moralidade vigente é antagonizado pelo desenrolar dos acontecimentos, em atropelo da possível lógica de seus enredos, nas peças de QS o ritmo do tempo se mostra caótico demais para que dele possa nascer, ‘espontaneamente’, qualquer conclusão lógica.

Cabe ressaltar que, à exceção destes dois autores citados acima, é perceptível a ausência de uma reflexão sobre a questão da loucura, a qual foi julgado em vida pelo juridico de Porto Alegre, sobre os limites da normalidade psíquica, no universo textual deste autor. E, no entanto, a falta de razão se faz presente no cerne de seus escritos, nas nervuras de seu texto.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org
http://veja.abril.com.br
www2.correioweb.com.br

Mauro Faccioni Filho (Helenos)


Algumas Poesias do livro "Helenos"

Areílico é morto pelo filho de Menetes

Areílico é morto pelo filho de Menetes
com a longa haste de bronze cravada na coxa
Menelau percebe o peito nu de Toante
aí o fere cobrindo seus olhos de treva
Ânflico mata Filido destroçando seus ossos
Nestórida derruba Antímnio, que irrita o irmão
e este, Máris, é morto também pela mesma lança
Peneleu, num golpe, de Lico tira a cabeça
Cleóbulo baixou os olhos frente a Ajax
Piracme cai na poeira fixo à lança de Pátroclo
Meríones atinge Acamante com a espada no ombro

Abre-se o fosso no caminho do Hades
um a um os heróis se retiram às sombras
onde não tardarão a encontrar a nova luta
no primoroso verso de um poeta brônzeo
========================

Amanhece junto aos rumores dos pássaros

amanhece junto aos rumores dos pássaros
o campo aberto está à espera dos filhos
prendo às pernas minha sandália de couro
com o elmo de bronze expondo seu brilho

última olhada a este espelho turvo
lâmina fria em um lago escuro
preparo punhal espada e escudo
expectativa das dores de um golpe duro

ouvi no sonho a voz da justiça
mas ela não tinha mãos corpo ou face
talvez fosse meu medo pedindo socorro
alimentando de vida o que só é disfarce

meus irmãos chamam, e vamos juntos
aos que sobrarem da luta, cobrir de glória
aos outros, descer aos campos do Hades
que a tudo engole e aos sonhos devora
=======================

Três cavaleiros viajam em um campo de areia e pedra

três cavaleiros viajam em um campo de areia e pedra
em direção à tenda de Aquiles pedir-lhe favores
dentro da noite sobre os cavalos não se falam
é a ânsia da chegada, a surpresa e os temores

à tarde canta Aquiles intrigante música
mergulhado em si próprio e na escura dor
ver que o herói é sempre só é uma estátua
o bronze é sua roupa o sangue seu amor

desfeita a carne sobre o fogo do banquete
bebem os cavaleiros um vinho doce no silêncio
composto aos poucos pelos galos montanheses
e a densa nuvem da fumaça dos incensos

" - estende tua mão e tua bravura sobre o povo
mostra ao destino que teu desejo é tua espada"
" - guerreiros valorosos, minha resposta é não
o limite desta tenda é minha glória conquistada

o navio negro exposto ao frio e ao bravo mar
é meu retiro e junto a Pátroclo farei reino
combinando esquecimento e ardor, fracasso e luta
na insegura espera do prazer que nunca tenho"
=====================

Amo sobretudo as batalhas

amo sobretudo as batalhas
seus longos preparativos
e a chance de olhar nos olhos
um inimigo que é amigo

contemplar o vermelho da tarde
abraçado aos desfalecidos
contar entre nós os que sobraram
honrar em lágrimas os desaparecidos

amo sobretudo esta rotina
fazer dia a dia o que é devido
no campo entre homens valorosos
brigar e sofrer sem um grito

longe das mulheres e das intrigas
longe do amor do corpo e do seu ritmo
afiando facas, carregando pedras
entre homens desfiamos nosso íntimo

amo sobretudo a disciplina
a construir este muro infinito
dentro estamos a sós e no silêncio
marchando firmes num labirinto
========================

Os primeiros vapores da manhã estendem-se na baía

Os primeiros vapores da manhã estendem-se na baía
longe os primeiros pios, devagar se contorce a água
em crespas ondas de um profundo mito atrás.

Aqueles que me contaram, e os que contaram a eles
uns sobre os outros em sucessivos gestos rituais
a história deste fogo, também minha e também sua.

Preso em sua própria tenda, leves panos estendidos
armações rústicas e frágeis sobre o exército
este guerreiro persegue os sinais de sua luta.

Rede tecida no contorcer das decisões e palavras
pouco a pouco, apesar do empenho em desfazer
cada gole amargo e cada curva estranha.

Armam-se os escudos, brilham as espadas matinais
protetores de couro, detalhes de bronze sobre os olhos
não há lágrimas, a festa é feita de louvor

A romper esta espera feita no silêncio
abatem-se os primeiros combatentes gloriosos
deixando atrás o nome a ser escrito em ouro

Horas, sol de inverno, rolam as cabeças
olhos nos olhos, corpo a corpo, sangue
leio em mais um dia o retorno eterno.

A esperança da vitória, fé no inalcançável
buscando no braço forte que levanta o golpe
um dia esquecido onde isto está escrito

Tarde, os que voltam abraçados se recomporão
novas tiras de couro, está aceso o fogo
músculos e olhos cansados se aconchegam

Este guerreiro tenso porém não findou o dia
e a cela à qual está preso não fraquejou
tendo se armado como um monstro surdo

Vindo do tempo vazio, pêndulo na escuridão
não há resposta, porém pergunta, guerreiro doce
os pêlos do braço voejam na brisa triste

Claro como os exaustos companheiros adormecidos
estende-se o passar das horas sobre eles
cantam pelo campo os insetos passageiros

Venham a ouvir este canto incerto
foi inscrito em tua fronte de guerreiro
que em ti se cantarão os dias da glória

Bem como os do começo da pergunta
os dias do amor e da música
também os do pêndulo, da dor e do escuro.
=======================

Primeiro vieram e arrancaram sua casa

primeiro vieram e arrancaram sua casa
depois impuseram o dia sobre o dia
fizeram com que a paz fosse sonho
que o fato novo da manhã um amargo

lançaram sobre ele o fogo e o ferro
também o desprezo do inimigo no campo
os sons da noite o sino badalando
o vão o fútil o só e o volúvel

desde seu ponto perdido na terra
procurou o que explica o sentido da luta
seu gesto inglório e a esperança inútil
a razão de si em seu momento de luto

ajoelhado frente ao deus dos homens
pediu e suplicou e acreditou na fé
que do nada se reerguesse sua casa
e que seu nome se transformasse em pó

Fonte:
FACCIONI FILHO, Mário. Helenos. Letras Contemporâneas, 1998.

A Cinética Poesia de Mauro Faccioni Filho


Helenos, livro de poesia do poeta, engenheiro e cineasta paranaense, residente em Santa Catarina, Mauro Faccioni Filho, marca pelo movimento cinético e estranhamento. E isso ocorre tanto no conteúdo, quanto na forma dos poemas.

Editado em 1998, pela editora Letras Contemporâneas, sob o comando de Fábio Brüggemann e Péricles Prade, a obra encontra-se esgotada e apenas disponibilizada pelo autor na internet.

O livro traz em epígrafe, a tradução de um poema de Jorge Luis Borges, feita pelo autor. O poema chama-se Arte Poética, e traz versos que denotam o eterno retorno da poesia. A poesia que nunca morre e retorna com a aurora e o ocaso.

Entrando em HELENOS damos de cara com Areílico morto pelo filho de Menetes. "Abre-se o fosso no caminho do Hades/ um a um os heróis se retiram às sombras/onde não tardarão a encontrar a nova luta/no primoroso verso de um poeta brônzeo"

Não me engano quando constato que esse livro de poemas é um quase-roteiro cinematográfico, na maneira im-expressionista de condução/movimento das cenas/poemas, sua matéria e significação.

Homero, divisa um poeta no tempo. Homero no tempo a divisar um poeta que lhe retorna convicto de linguagens novas. Sedento do sangue das deusas e heróis despojados nos campos de batalhas. Homero não morreu. A poesia não morreu e retorna homérica no tempo, no vento. Homero o paradigma da poesia repartida na face da terra. Todos sofremos a carga inconsciente do poético, que atravessa os séculos. Há muito de grego e romano na tradição poética do ocidente. Essa riqueza órfica transcende as mais atentas consciências (não como defeito mas como importante contributo) e vem somar a lira contemporânea, como no caso de Helenos. Helenos, um livro que já nasce clássico, pela diferença que faz, na poesia brasileira posultramoderna. Nada a ver. Nada a dever, a santos, deuses e tempestades. Nada e tudo ao mesmo tempo. A poesia de Mauro Faccioni Filho, deslumbra pelo rompante da linguagem, dos cenários, da movimentação dos corpos, das almas, das armas, da empática destreza de estar deslocado no tempo e em tantas personas. Eis o poder do poeta que adentra espaços sagrados para extrair dali a matéria mais rica do seu dizer.

Pretensiosa na significação, sua poesia, almeja mundos na ponta da lâmina de prata, a adaga lampejante do verbo novo, que é o enfoque contemporâneo ao tema antigo. O ponto de partida inusitado e franco, que só o poeta contemporâneo na rede de interferências/referências, pode tomar e toma.

Vencer, perder, sonhar, lutar, empunhar as armas, honrar os mortos em batalha. Essa a voz poética que o território greco-romano, nathuralmente provocado, da poesia do Mauro F. Filho apresenta. Uma poesia de alta inspiração e retorno a raiz da raça "meus irmãos clamam, e vamos juntos/aos que sobrarem da luta, cobrir de glória/aos outros, descer aos campos do Hades/que a tudo engole e aos sonhos devora".

No sistema nervoso central da poesia de Helenos, está a batalha. O amor que os homens nutrem pela luta. "amo sobretudo as batalhas/seus longos preparativos/e a chama de olhar nos olhos/contar entre nós os que sobraram/honrar em lágrimas os desaparecidos".

O sentido da luta, é o sentido do próprio viver, eis que viver é lutar obsessivamente contra as forças ocultas da nathureza, e o poeta assim prescreve no poema Primeiro vieram e arrancaram sua casa: "desde seu ponto perdido na terra/procurou o que explica o sentido da luta/seu gesto inglório e a esperança inútil/a razão de si em seu momento de luto".

Nesse território sagrado de Helenos, onde a poesia de Mauro Faccioni Filho se assenta, existe luta, muita luta, vencidos e vencedores, heróis anônimos, nomes que passam com o vento do deserto. "que venham as ondas apagar imagens/desenhos turvos, a expressão incompleta/que passe o amanhã e passe o depois também/passem os nomes com o vento do deserto".

Alvo livre o coração do sol. Em Quando os guerreiros dão-se trégua, iniciam os jogos olímpicos, e uma outra realidade se estabelece na vida e no poema: "nada de sangue, nada de lágrimas/o que é dor e guerra pode esperar/a poderosa lança é a mais distante/cujo alvo livre é o coração do sol".

Do amor, da morte, suas faces no tempo, nada ficou de fora da poética proposta pelo autor, e em Assilikis troca bilhetes com seu futuro amante, vê-se: "Arrumo as mechas, mergulho no frio/empunho os batidos seios para a aurora/ao lado do amor há o vento da morte/cantarei um poema, só desejo dormir".

Mesmo com a boca cheia, poema híbrido de gozo e dor, de corpo se prostituindo, de corpo que se dá e vende-se, o furor do prazer sobre todas as coisas, eros e tanatos reinvocados: "arrancarei todos os cabelos/gozando aos uivos e às bofetadas/e me jogarei sobe meus restos/e mais cinco moedas prateadas".

Amor e perdição. A louca selvagem vinda da fábula – o sexo virado fabulação. O poema Deite-se na cama convida a passividade do outro. O outro que será objeto dos muitos desejos. "baterei como uma louca/uma selvagem vinda da fábula/serpentes pelo pescoço..." Belíssimos esses versos do poema, trazendo alto poder de imaginação do poeta, que busca na raiz da raça, como entendi e mencionei acima, a matéria do seu poético. O poeta é mais que lutador na poesia de Helenos, resolve-se mártir de sua causa íntima. "saúdo este resignado poeta/mártir de sua causa íntima/algumas facas moças poemas/versos e esperança íntima".

Helenos não é livro de leitura fácil e rápida. Há de se perquirir, isolar, trafegar pela floresta dos símbolos híbridos de sóis e luas que o poeta nos oferece. A primeira paisagem poderia ser até bucólica, não fossem as espadas, as mortes, as lutas fratrícidas, o profano das relações, quando a mulher também comparece no usufruir da vida em sua completude. Há também o território de sombra e lusco-fusco, onde os objetos surtem miragens, ser e não-ser, estar e não-estar, no mundo entre as coisas. "a aventura de buscar onde não foi buscado/a tentativa de afirmar em si o não firmado/viu no meio da mata o que não se havia visto/o caminho a ser seguido onde nada era seguido." Aqui é o típico caso do caminho do sem-caminho, do ser que não sabe claramente onde ir, seguir... procurar e firmar o que não foi procurado, firmado. Essa a condição a que se resume a vida do próprio poeta, na sua luta inglória com os signos. A busca da voz única, a infinitude dos objetos, os movimentos do tempo, o espírito que quer, prefigura, desanima e repercute. Gênio das imagens inusitadas, o poeta é o arquiteto de catedrais em meio aos ímpios. "o gênio arquiteto das imagens/ergueu a catedral em meio aos ímpios".

Logo mais, em Barba de anteontem camisa amarrotada, o poeta sentencia que a grandeza e miséria andam sempre de mãos dadas, como elementos contrários que se encontram nos extremos para enriquecer a vida. Vida "esta é a arte, esta visão do mundo/grandeza e miséria nós de mãos dadas". O nós remetem aos conluios, aos elementos complexos, diferentes, unidos, conciliados numa mesma estrutura, assim como é o próprio Helenos em sua urdidura de signos.

Numa poética assim de opostos trançados como cipós-fios no tempo, difícil ao mais compenetrado exegeta, arrancar daquele território/espaço, as fibras orgânicas, os tecidos claros de significação. Tudo translude e transluz, na poesia de Helenos, iludindo assim o olho que vê, em pleno favor da criação livre do poeta, que não restringiu o ímpeto diante do desafio que se impôs: dizer o dito retornado, a voz das pedras antigas de Grécia e Roma, nos condutos, órgãos projetivos de sua visão e raça: "mas o tempo não dá tréguas/embaixo da terra outras idéias/brotaram de sementes antigas/dizendo:retornamos retornaremos".

O Mauro Faccioni Filho é poeta que faz realmente brotar de sementes antigas muitas idéias novas, e a poesia rigorosa de linguagem.

O domínio da língua e as projeções do sujeito/criador, são de fácil visibilidade na obra, formada a estrutura poética com a máxima intensidade, labor, estética.

Em Uma jaula, poema-vanguarda, dá pra se dizer, o poeta abre a linguagem contemporânea livre, de pleno rigor imagético, síntese e precisão semântica: "uma jaula: o trio dos tigres tristes/quer ser mas sempre falha/circo aberto:/sílaba interna da palavra/que ao picadeiro se espalha."

Não tenho dúvidas quanto ao poeta alardear suas imagens com a fúria dos destrambelhados. Esses os necessários no orbe da poesia. Loucos de todo gênero, poetas inventores de linguagem na mais perfeita afirmação poundiana, contra os beletristas e diluidores. Em Helenos, há o fanopéico, melopéico e logopéico, transmixados todos no ímpeto do dizer que acelera o batimento cardíaco, ilude, prestidigita o conhecimento dito e transita os muitos tempos no tempo. De Grécia antiga com suas lutas fratrícidas passamos ao contemporâneo livre. Homero versado de Pound, Whitman, Fernado Pessoa, vozes da modernidade, crescidas no vento.

Lembrando Walt Whitman, na biografia escrita por Paul Zweig, também agora vemos em Do rio interminável/Piso exato sobre teu passo, algo de metempsicose, de passos que passam sobre os próprios passos. No poema de Whitman eram os pós (corpo do poeta morto) que aderiam sob a sola da bota do outro no tempo. No caso de Helenos, na voz plural de Mauro F. Filho é: "piso exato sobre teu passo,/sobre a marca gasta mas rígida/caminhando em um só caminho/que o teu passo fez e o meu refaz".

O poeta dança com as imagens, palavras, sentenças, em Ele teve sua época de belo, adentra a seara do estético. O estético que se confunde com a própria essência da poesia, o lustro/brilho da linguagem que ao mesmo tempo nucleariza a significação e se faz conteúdo: "o belo nunca é passado/mas o sonho borrado e turvo/numa noite do futuro". O belo como a encarnação do sonho no futuro, o sonho que nunca é de vir claro, divisado nas particularidades, mas denso e sujo, turvo e complexo, como certos signos.

Poesia, é sim, processo de auto-conhecimento. As linguagens induzindo o sujeito no caminho do sem-caminho. Pedras que vão se identificando. Imagens, rostos, vertigens, na velocidade do tempo. O conhecimento do nada-ser. O salto repentino no abismo: "para descobrir o que temos no umbígo/eu não sou você, nem ele, ninguém/resto de esperança que não digo/não vamos? Então vou só/descer é tão fácil que não ligo".

Em Descobri após os trinta anos, o poeta destina, desatina, a que as palavras igualem, aspirem ao labirinto. O labirito é o poema. A vocação teleológica da palavra, que nunca deve trazer uma só face chapada, mas de forma cubista transfigurar muitos sentidos. "olhando ao lado resta a literatura/solitária próxima, eis a dor/mas a um poema que nada tem/senão prosa, palavras igualem/aspirem ao labirinto...".

Quase ao final do livro em Nossa decadência começou, é de se matar o que não morreu, calar-se: recolher o ímpeto selvagem da criação. Decadência, a voz retornada pra dentro. O NADA prevalecido de nada sobre todas as coisas. Essa a plena decadência, que é um não-fazer, não-sentir, não-pensar, onde o discurso trunca e se recolhe. "onde houve uma alegria, secou/nasceu uma fonte salgada/que para o mar não deu/melhor é calar a boca/matar o que não morreu".

Noutro poema, o tempo, o tirano implacável, aquele que corre pra trás e não sabíamos, comparece em sua horrível indiferença. O tempo, indiferente ao homem, sua luta e seus caminhos. "cruzamos os mesmos caminhos/luta triste e sem glória/a nós o tempo desconhece".

Em Como já estamos pálidos e perdidos, o poeta refaz imagens de um mundo exterior mezobucólico: cavalos no campo, plantações, tudo a que guarde o tempo eterno na lembrança. Tudo o que é apenas sombra e passagem. Passam na vida, os homens, as coisas, os objetos, na social indiferença do tempo.

No poema Não era nada e perguntou, a filopoética de Mauro F. Filho se estabelece nathuralmente, belíssima no clima criado do encontro do homem/poeta consigo mesmo na imagem refletida no espelho. Poesia com filosofia, aliás algo de muito a ver com a Grécia, e a origem da própria linguagem (palavras) que no seu existir dependem da significação, (o conceito além da imagem fônica) que se confunde com importante objeto/função da filosofia, que é criar conceitos, significar, entender, ampliar, o significado/entendimento da vida e das coisas.

Reflexo do reflexo no espelho. Quem sou? Conquista – espaço – conhecido e desconhecido – a aventura humana no mundo dos signos. Um dos mais belos poemas do livro, o cunho filosófico do objeto conhecido, não vem com ranço de tese acadêmica, mas com os elementos indispensáveis ao processo do conhecimento: sujeito x objeto. "não era nada e perguntou/ao espelho, quem sou/reflexo do reflexo sobre/lâmina da água ou gelo..."

Correrá o rio interminável, correrá com as palavras aptas a angariar o mundo. "haverá um broto alheio e estranho/que guardaremos na memória feito o momento fugaz/de um gesto, um lance/um íntimo/e tu dirás:é o ponto/de tua anônima alegria". Muitos brotos alheios e estranhos haverão de ser encontrados pelos caminhos, como a poesia desse Mauro Faccioni Filho, extratos tirados da raiz da raça, vertidos dos labirintos da imaginação criadora.

Os poemas de Helenos, como cinéticas aparições, invadem a mente do leitor, num movimento que não é próprio dos livros de poesia, mas de filmes. Filmes que o Mauro Faccioni Filho provavelmente realizará no futuro do futuro do Brasil, na condição de poeta pleno que é.
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Fonte:
Artigo de Jairo Batista Pereira. In http://www.tanto.com.br/Jairobatistapereira-maurofaccioni.htm

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Machado de Assis (Manuscrito de um Sacristão)


I

Ao dar com o padre Teófilo falando a uma senhora, ambos sentadinhos no banco da igreja, e a igreja deserta, confesso que fiquei espantado. Note-se que conversavam em voz tão baixa e discreta, que eu, por mais que afiasse o ouvido e me demorasse a apagar as velas do altar, não podia apanhar nada, nada, nada. Não tive remédio senão adivinhar alguma coisa. Que eu sou um sacristão filósofo. Ninguém me julgue pela sobrepeliz rota e amarrotada nem pelo uso clandestino das galhetas. Sou um filósofo sacristão. Tive estudos eclesiásticos, que interrompi por causa de uma doença e que inteiramente deixei por outro motivo, uma paixão violenta, que me trouxe à miséria. Como o seminário deixa sempre um certo vinco, fiz-me sacristão aos trinta anos, para ganhar a vida. Venhamos, porém, ao nosso padre e à nossa dama.

II

Antes de ir adiante, direi que eram primos. Soube depois que eram primos, nascidos em Vassouras. Os pais dela mudaram-se para a Corte, tendo Eulália (é o seu nome) sete anos. Teófilo veio depois. Na família era uso antigo que um dos rapazes fosse padre. Vivia ainda na Bahia um tio dele, cônego. Cabendo-lhe nesta geração envergar a batina, veio para o seminário de São José, no ano de mil oitocentos e cinqüenta e tantos, e foi aí que o conheci. Compreende-se o sentimento de discrição que me leva a deixar a data no ar.

III

No seminário, dizia-nos o lente de retórica:

— A teologia é a cabeça do gênero humano, o latim a perna esquerda, e a retórica a perna direita.

Justamente da perna direita é que o Teófilo coxeava. Sabia muito as outras coisas: teologia, filosofia, latim, história sagrada; mas a retórica é que lhe não entrava no cérebro. Ele, para desculpar-se, dizia que a palavra divina não precisava de adornos. Tinha então vinte ou vinte e dois anos de idade, e era lindo como São João.

Já nesse tempo era um místico; achava em todas as coisas uma significação recôndita. A vida era uma eterna missa, em que o mundo servia de altar, a alma de sacerdote e o corpo de acólito; nada respondia à realidade exterior. Vivia ansioso de tomar ordens para sair a pregar grandes coisas, espertar as almas, chamar os corações à Igreja, e renovar o gênero humano. Entre todos os apóstolos, amava principalmente São Paulo.

Não sei se o leitor é da minha opinião; eu cuido que se pode avaliar um homem pelas suas simpatias históricas; tu serás mais ou menos da família dos personagens que amares deveras. Aplico assim aquela lei de Helvetius: "O grau de espírito que nos deleita dá a medida exata do grau de espírito que possuímos." No nosso caso, ao menos, a regra não falhou. Teófilo amava São Paulo, adorava-o, estudava-o dia e noite, parecia viver daquele converso que ia de cidade em cidade, à custa de um ofício mecânico, espalhando a boa nova aos homens. Nem tinha somente esse modelo, tinha mais dois: Hildebrando e Loiola. Daqui podeis concluir que nasceu com a fibra da peleja e do apostolado. Era um faminto de ideal e criação, olhando todas as coisas correntes por cima da cabeça do século. Na opinião de um cônego, que lá ia ao seminário, o amor dos dois modelos últimos temperava o que pudesse haver perigoso em relação ao primeiro.

— Não vá o senhor cair no excesso e no exclusivo, disse-lhe um dia com brandura; não pareça que, exaltando somente a Paulo, intenta diminuir Pedro. A Igreja, que os comemora ao lado um do outro, meteu-os ambos no Credo; mas veneremos Paulo e obedeçamos a Pedro. Super hanc petram...

Os seminaristas gostavam do Teófilo, principalmente três, um Vasconcelos, um Soares e um Veloso, todos excelentes retóricos. Eram também bons rapazes, alegres por natureza, graves por necessidade e ambiciosos. Vasconcelos jurava que seria bispo; Soares contentava-se com algum grande cargo; Veloso cobiçava as meias roxas de cônego e um púlpito. Teófilo tentou repartir com eles o pão místico dos seus sonhos, mas reconheceu depressa que era manjar leve ou pesado demais, e passou a devorá-lo sozinho. Até aqui o padre; vamos agora à dama.

IV

Agora a dama. No momento em que os vi falar baixinho na igreja, Eulália contava trinta e oito anos de idade. Juro-lhes que era ainda bonita. Não era pobre; os pais deixaram-lhe alguma coisa. Nem casada; recusou cinco ou seis pretendentes.

Este ponto nunca foi entendido pelas amigas. Nenhuma delas era capaz de repelir um noivo. Creio até que não pediam outra coisa, quando rezavam antes de entrar na cama, e ao domingo, à missa, no momento de levantar a Deus. Por que é que Eulália recusava-os todos? Vou dizer desde já o que soube depois. Supuseram-lhe, a princípio, um simples desdém, — nariz torcido, dizia uma delas; — mas, no fim da terceira recusa, inclinaram-se a crer que havia namoro encoberto, e esta explicação prevaleceu. A própria mãe de Eulália não aceitou outra. Não lhe importaram as primeiras recusas; mas, repetindo-se, ela começou a assustar-se. Um dia, voltando de um casamento, perguntou à filha, no carro em que vinham, se não se lembrava que tinha de ficar só.

— Ficar só?

— Sim, um dia hei de morrer. Por ora tudo são flores; cá estou para governar a casa; e você é só ler, cismar, tocar e brincar; mas eu tenho de morrer, Eulália, e você tem de ficar só...

Eulália apertou-lhe muito a mão, sem poder dizer palavra. Nunca pensara na morte da mãe; perdê-la era perder metade de si mesma. Na expansão de momento, a mãe atreveu-se a perguntar-lhe se amava alguém e não era correspondida; Eulália respondeu que não. Não simpatizara com os candidatos. A boa velha abanou a cabeça; falou dos vinte e sete anos da filha, procurou aterrá-la com os trinta, disse-lhe que, se nem todos os noivos a mereciam igualmente, alguns eram dignos de ser aceitos, e que importava a falta de amor? O amor conjugal podia ser assim mesmo; podia nascer depois, como um fruto da convivência. Conhecera pessoas que se casaram por simples interesse de família e acabaram amando-se muito. Esperar uma grande paixão para casar era arriscar-se a morrer esperando.

— Pois sim, mamãe, deixe estar...

E, reclinando a cabeça, fechou um pouco os olhos para espiar alguém, para ver o namorado encoberto, que não era só encoberto, mas também e principalmente impalpável. Concordo que isto agora é obscuro; não tenho dúvida em dizer que entramos em pleno sonho.

Eulália era uma esquisita, para usarmos a linguagem da mãe, ou romanesca, para empregarmos a definição das antigas. Tinha, em verdade, uma singular organização. Saiu ao pai. O pai nascera com o amor do enigmático, do arriscado e do obscuro; morreu quando aparelhava uma expedição para ir à Bahia descobrir a "cidade abandonada". Eulália recebeu essa herança moral, modificada ou agravada pela natureza feminil. Nela dominava principalmente a contemplação. Era na cabeça que ela descobria as cidades abandonadas. Tinha os olhos dispostos de maneira que não podiam apanhar integralmente os contornos da vida. Começou idealizando as coisas, e, se não acabou negando-as, é certo que o sentimento da realidade esgarçou-se-lhe até chegar à transparência fina em que o tecido parece confundir-se com o ar.

Aos dezoito anos, recusou o primeiro casamento. A razão é que esperava outro, um marido extraordinário, que ela viu e conversou, em sonho ou alucinação, a mais radiosa figura do universo, a mais sublime e rara, uma criatura em que não havia falha ou quebra, verdadeira gramática sem irregularidades, pura língua sem solecismos.

Perdão, interrompe-me uma senhora, esse noivo não é obra exclusiva de Eulália, é o marido de todas as virgens de dezessete anos. Perdão, digo-lhe eu, há uma diferença entre Eulália e as outras, é que as outras trocam finalmente o original esperado por uma cópia gravada, antes ou depois da letra, e às vezes por uma simples fotografia ou litografia, ao passo que Eulália continuou a esperar o painel autêntico. Vinham as gravuras, vinham as litografias, algumas muito bem acabadas, obra de artista e grande artista, mas para ela traziam o defeito de ser cópias. Tinha fome e sede de originalidade. A vida comum parecia-lhe uma cópia eterna. As pessoas do seu conhecimento caprichavam em repetir as idéias umas das outras, com iguais palavras, e às vezes sem diferente inflexão, à semelhança do vestuário que usavam, e que era do mesmo gosto e feitio. Se ela visse alvejar na rua um turbante mourisco ou flutuar um penacho, pode ser que perdoasse o resto; mas nada, coisa nenhuma, uma constante uniformidade de idéias e coletes. Não era outro o pecado mortal das coisas. Mas, como tinha a faculdade de viver tudo o que sonhava, continuou a esperar uma vida nova e um marido único.

Enquanto esperava, as outras iam casando. Assim perdeu ela as três principais amigas: Júlia Costinha, Josefa e Mariana. Viu-as todas casadas, viu-as mães, a princípio de um filho, depois de dois, de quatro e de cinco. Visitava-as, assistia ao viver delas, sereno e alegre, medíocre, vulgar, sem sonhos nem quedas, mais ou menos feliz. Assim se passaram os anos; assim chegou aos trinta, aos trinta e três, aos trinta e cinco, e finalmente aos trinta e oito em que a vemos na igreja, conversando com o padre Teófilo.

V

Naquele dia mandara dizer uma missa por alma da mãe, que morrera um ano antes. Não convidou ninguém: foi ouvi-la sozinha. Ouviu-a, rezou, depois sentou-se no banco.

Eu, depois de ajudar à missa, voltei para a sacristia, e vi ali o padre Teófilo, que viera da roça duas semanas antes e andava à cata de alguma missa para comer. Parece que ele ouviu do outro sacristão ou do mesmo padre oficiante o nome da pessoa sufragada; viu que era o da tia e correu à igreja, onde ainda achou a prima no banco. Sentou-se ao pé dela, esquecido do lugar e das posições, e falaram naturalmente de si mesmos. Não se viam desde longos anos. Teófilo visitara-as logo depois de ordenado padre; mas saiu para o interior e nunca mais soube delas, nem elas dele.

Já disse que não pude ouvir nada. Estiveram assim perto de meia hora. O coadjutor veio espiar, deu com eles e ficou justamente escandalizado. A notícia do caso chegou, dois dias depois, ao bispo. Teófilo recebeu uma advertência amiga, subiu à Conceição e explicou tudo: era uma prima, a quem não via desde muito. O padre coadjutor, quando soube da explicação, exclamou com muito critério que o ser parente não lhe trocava o sexo nem supria o escândalo.

Entretanto, como eu tinha sido companheiro do Teófilo no seminário e gostava dele, defendi-o com muito calor e fiz chegar o meu testemunho ao palácio da Conceição. Ele ficou-me grato por isso, e daí veio a intimidade de nossas relações. Como os dois primos podiam ver-se em casa, Teófilo passou a visitá-la, e ela a recebê-lo com muito prazer. No fim de oito dias, recebeu-me também; ao cabo de duas semanas era eu um dos seus familiares.

Dois patrícios que se encontram em plaga estrangeira e podem finalmente trocar as palavras mamadas na infância não sentem maior alvoroço do que estes dois primos, que eram mais que primos: moralmente eram gêmeos. Ele contou-lhe a vida e, como os acontecimentos acarretassem os sentimentos, ela olhou para dentro da alma do primo e achou que era a sua mesma alma e que, em substância, a vida de ambos era a mesma. A diferença é que uma esperou quieta o que o outro andou buscando por montes e vales; no mais, igual equívoco, igual conflito com a realidade, idêntico diálogo de árabe e japonês.

— Tudo o que me cerca é trivial e chocho, dizia-lhe ele.

Com efeito, gastara o aço da mocidade em divulgar uma concepção que ninguém lhe entendeu. Enquanto os três amigos mais chegados do seminário passavam adiante, trabalhando e servindo, afinados pela nota do século, Veloso cônego e pregador, Soares com uma grande vigararia, Vasconcelos a caminho de bispar, ele Teófilo era o mesmo apóstolo e místico dos primeiros anos, em plena aurora cristã e metafísica. Vivia miseravelmente, costeando a fome, pão magro e batina surrada; tinha instantes e horas de tristeza e de abatimento: confessou-os à prima...

— Também o senhor? perguntou ela.

E as suas mãos apertaram-se com energia: entendiam-se. Não tendo achado um astro na loja de um relojoeiro, a culpa era do relojoeiro; tal era a lógica de ambos. Olharam-se com a simpatia de náufragos, — náufragos e não desenganados, — porque não o eram. Crusoe, na ilha deserta, inventa e trabalha; eles não; lançados à ilha, estendiam os olhos para o mar ilimitado, esperando a águia que viria buscá-los com as suas grandes asas abertas. Uma era a eterna noiva sem noivo, outro o eterno profeta sem Israel; ambos punidos e obstinados.

Já disse que Eulália era ainda bonita. Resta dizer que o padre Teófilo, com quarenta e dois anos, tinha os cabelos grisalhos e as feições cansadas; as mãos não possuíam nem a maciez nem o aroma da sacristia, eram magras e calosas e cheiravam ao mato. Os olhos é que conservavam o fogo antigo, era por ali que a mocidade interior falava cá para fora, e força é dizer que eles valiam só por si todo o resto.

As visitas amiudaram-se. Afinal íamos passar ali as tardes e as noites e jantar aos domingos. A convivência produziu dois efeitos, e até três. O primeiro foi que os dois primos, freqüentando-se, deram força e vida um ao outro; relevem-me esta expressão familiar: — fizeram um pique-nique de ilusões. O segundo é que Eulália, cansada de esperar um noivo humano, volveu os olhos para o noivo divino e, assim como ao primo viera a ambição de São Paulo, veio-lhe a ela a de Santa Teresa. O terceiro efeito é o que o leitor já adivinhou.

Já adivinhou. O terceiro foi o caminho de Damasco, — um caminho às avessas, porque a voz não baixou do céu, mas subiu da terra; e não chamava a pregar Deus, mas a pregar o homem. Sem metáfora, amavam-se. Outra diferença é que a vocação aqui não foi súbita como em relação ao apóstolo das gentes; foi vagarosa, muito vagarosa, cochichada, insinuada, bafejada pelas asas da pomba mística.

Note-se que a fama precedeu ao amor. Sussurrava-se desde muito que as visitas do padre eram menos de confessor que de pecador. Era mentira; eu juro que era mentira. Via-os, acompanhava-os, estudava esses dois temperamentos tão espirituais, tão cheios de si mesmos, que nem sabiam da fama, nem cogitavam no perigo da aparência. Um dia vi-lhes os primeiros sinais do amor. Será o que quiserem, uma paixão quarentona, rosa outoniça e pálida, mas era, existia, crescia, ia tomá-los inteiramente. Pensei em avisar o padre, não por mim, mas por ele mesmo; mas era difícil, e talvez perigoso. Demais, eu era e sou gastrônomo e psicólogo; avisá-lo era botar fora uma fina matéria de estudo e perder os jantares dominicais. A psicologia, ao menos, merecia um sacrifício: calei-me.

Calei-me à toa. O que eu não quis dizer, publicou-o o coração de ambos. Se o leitor me leu de corrida, conclui por si mesmo a anedota, conjugando os dois primos; mas, se me leu devagar, adivinha o que sucedeu. Os dois místicos recuaram; não tiveram horror um do outro nem de si mesmos, porque essa sensação estava excluída de ambos, mas recuaram, agitados de medo e de desejo.

— Volto para a roça, disse-me o padre.

— Mas por quê?

— Volto para a roça.

Voltou para a roça e nunca mais cá veio. Ela, é claro que tinha achado o marido que esperava, mas saiu-lhe tão impossível como a vida que sonhou. Eu, gastrônomo e psicólogo, continuei a ir jantar com Eulália aos domingos. Considero que alguma coisa deve subsistir debaixo do sol, ou o amor ou o jantar, se é certo, como quer Schiller, que o amor e a fome governam este mundo.

Fonte:
ASSIS, Machado de Assis. Histórias sem Data. SP: Cia. Editora Nacional, 2005.

Salomon Nery (Vovô Sabe Tudo)


Vovô Lucani é um personagem do cotidiano, um professor aposentado, crítico observador dos acontecimentos diários e das notícias veiculadas na mídia. Com bom humor o octogenário faz gozação sadia, sátira suave, em resposta às perguntas de curiosos sobre história, atualidades e assuntos que ouve, lê e vê diuturnamente. Enquanto diverte o leitor, o Vovô contribui para aguçar o senso de curiosidade pelos assuntos tratados na obra:

A Balaiada, Ali Baba, A Guerra dos Farrapos, Napo Leão, O Ovo de Colombo, Cabral, Os Deuses do Olimpo, Os Mistérios dos Hieróglifos, As Partidas Dobradas, Dostoy, Picasso, Babá Cã, As Tecas, Matisse, O Bicho Preguiça, Um Burro na Guarda Pretoriana, Thomas Edison, Homero, Sócrates, Átila, Os Vikings, Os Alquimistas, Salvador Dali, A Ópera, A Guerra Fria, Shake Speare, As Maravilhas do Mundo Atual, Ostra Damos, Miguel Ângelo, O Jazz, Com Servantes, O Gago, Ivan Gogue, Ri de Coque, Clô de Mané, Arquimedes, Tales de Mileto, Os Desenhos Animados, Alexandre o Grande, Ésquilo, O Fico, A Velocidade do Som, A Relatividade, As Torres de Controle, Os Merovíngios, Rodin, Leonardo Dá Vinte, O Pelourinho, Lã Pião, O Método Unforgettable, Os Números, Os Idiomas, Confúcio, Tíbia e Perônio, O Matemático, O Salário Mínimo, Robin Wood, Madame Que Ri, Darwin, Zagalo, Nobel, Lech Walessa, A Prosa em Versos, A Astrologia e, o poderoso Jugo Chá Vez, etc.
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Sobre o Autor

Salomon Nery (1948)

Nasceu na cidade de São Paulo em 1948, no bairro do Bom Retiro. Seus avós eram italianos que fugiram da segunda guerra mundial. Homem de bom humor, espontâneo e de caráter humilde. Na escola, quando adolescente sempre foi aluno aplicado e prestativo do tipo que levava maçã para a professora. No ensino médio teve ótimos professores, destacando-se o professor Emílio Giustti de língua portuguesa, que exigia muito de seus alunos, fazendo-os aprender de “verdade”, principalmente a redação. Destacou-se inicialmente por escrever bons textos, sempre com um especial toque de humor. Na sala de aula, respondia questões com um leve humor descontraído e o mais importante: não usava palavrões e nem gírias. Quando questionado sobre algum vulto ilustre procurava pesquisar a fundo, ganhando os parabéns dos mestres e, chamado à frente para expor seu trabalho, surpreendia a todos com seu jeito divertido. O Autor sempre gostou de escrever textos divertidos o que o fez criar o velhinho simpático Vovô Lucani, do livro Vovô Sabe Tudo.

Fonte:
http://www.virtualbooks.com.br

Jerônimo Mendes (História da Poesia Universal – Breve Relato ) Parte I



Nadamos, dia a dia, num rio de desilusões e somos efetivamente entretidos com casas e cidades no ar, com as quais os homens à nossa volta são enganados. Mas a vida é uma sinceridade.

Que nos seja fornecida a cifra e, se as pessoas e coisas são partituras de uma música celestial, que possamos ler os acordes. Fomos lesados em nossa razão; no entanto, houve homens que gozaram uma existência rica e afim. O que eles sabem, sabem para nós.

Em cada nova mente transpira um novo segredo da natureza ; nem pode a Bíblia ser dada por completa até que nasça o último grande homem ”
.
RALPH WALDO EMERSON


CONCEITO DE POESIA

Ao longo do desenvolvimento da monografia foi difícil encontrar alguma citação ou autor que tenha apresentado qualquer definição precisa de poesia sem demonstrar uma ponta de preocupação com a importância da interpretação por parte do leitor. O conceito de poesia, se acreditamos que podemos conceituá-la, é coisa bem diversa do conceito do verso, razão pela qual pude ler e avaliar inúmeros poemas expressos tanto em verso como em prosa. Segundo Wanke (1985), "Tratados têm sido escritos procurando definir poesia, o que demonstra dificuldade do entendimento ”.

Uma das mais abrangentes e interessantes definições de Poesia encontrada ao longo da pesquisa foi, certamente, a de William Wordsworth, poeta inglês do século passado, que disse, no prefácio de suas Baladas Líricas : “Poesia é a emoção novamente colhida (ou recolecionada) em tranquilidade ”.

Nesta definição, a Poesia aparece do ponto de vista não do leitor, mas do poeta, ou seja, a poesia é olhada pelo que a faz, o que, realmente nos interessa. E nos mostra os elementos básicos da coisa: primeiro, o poeta demonstra claramente suas sensações, sentindo-as, e só depois, tranqüilo, ele se lembra do que sentiu e as coloca em palavras, para transmiti-las. Guilherme de Almeida (1890-1969), um dos mais lúcidos poetas, tentou definir Poesia por exclusão, dizendo que “Poesia não é a rosa” . E explicava :

“E não é mesmo. Se Poesia fosse a rosa, para que o canteiro ? ... Poesia é terra. Separada desta, será apenas verso, pedaço, coisa amputada que murcha, apodrece, acaba ” .

Outra definição importante a considerar, vêm do Príncipe dos Poetas Brasileiros, Olavo Bilac, acrescentando a seguinte equação : “ A rosa está para a Terra assim como a Poesia está para o homem ” .

Mas o homem considerado em suas funções mais altas, ou seja, o som, a idéia expressa, a emoção transmitida, o deleite da leitura e até, em alguns casos, a forma das palavras - como o pintor utiliza as cores, o escultor as formas, o músico os sons harmoniosos, etc.

Todo o artista tem sua matéria-prima, seu instrumental, sua tecnologia. O escultor tem, como matéria-prima, o mármore, o gesso, a areia, o ferro-velho, etc. E é com eles que trabalha, para produzir seu produto, a escultura. O pintor tem as tintas, as cores, que manipula com o pincel, os dedos, a espátula, na tela, no papel, na parede - onde expõe seu produto com enorme satisfação após acabado. O músico dispõe do som dos instrumentos musicais - alguns muito estranhos, convenhamos - que combina ou descombina para apresentar seu produto, a música.

A palavra, matéria-prima do poeta, é o mais nobre dos materiais de que o homem dispõe. A palavra nasceu com a civilização e só com ela morrerá. O homem sem a palavra não é o homem. Para que possa aprender a pensar, a criança tem de aprender a entender e a manejar as palavras de sua língua. As próprias línguas são reflexos do grau de civilização do povo que as domina e o mesmo ocorre com a poesia. Novamente citamos Wanke (1985) :

“ Quando, através de um trabalho com a palavra, escrito ou falado, o artista consegue transmitir sentimento, fazer com que o leitor, o ouvinte se sinta comovido, sublimado, arrebatado, terá ele atingido a Poesia : aquela emoção recolhida pelo poeta Worsworth em um momento, e depois fixada, em outra ocasião - agora tranqüila - para seus leitores ”.

Sem falsa modéstia, avaliei, no curto período em que me propus a estudar a arte poética, que a Poesia de que estamos falando até aqui, sempre com inicial maiúscula, é uma qualidade subjetiva inerente a uma composição feita com palavras.

Infelizmente, se compararmos as diversas interpretações das mais diferentes correntes poéticas, cada qual tenta enaltecer e fazer vingar a própria definição, mas acabam-se criando confusões com as acepções diversas do mesmo vocábulo e, assim, temos que o termo Poesia significa, também, uma composição feita de versos.

O que causa maiores problemas ainda é que, além de uma Poesia não conter absolutamente Poesia, um trecho em prosa pode perfeitamente ser Poesia pura. A Rosa-Poesia carece de ser alimentada pela Terra-Homem através da seiva da emoção da palavra. Daí uma tendência, surgida especialmente entre os modernistas e os da geração de 45, de se abandonar a palavra Poesia na acepção de produto versificado para, neste caso, adotar só a palavra poema.

Uma Poesia pode ser um amontoado de versos feitos intencionalmente sem Poesia e pode até acontecer que o poeta, pensando estar compondo Poesia - comunicação de sentimentos - está apenas fazendo um bestialógico, o que pudemos comprovar facilmente entre muitos poetas herméticos ou rebuscados.

Em nossa pesquisa, ninguém melhor do que Geir Campos, tradutor e professor universitário brasileiro, cita tantos autores e definições interessantes, de pura reflexão, a fim de enriquecer o estudo e o conceito de Poesia, embora, admitamos, não se pode atribuir um texto como verdadeiramente único e absolutamente ideal para quaisquer dos autores citados, apesar de, entre eles, termos muitos dos maiores nomes da Poesia de todos os tempos :

Poesia é, antes de tudo, comunicação, efetuada por palavras apenas, de um conteúdo psíquico (afetivo-sensório-conceitual), aceito pelo espírito como um todo, uma síntese ” e o definidor explica ainda que “nesse conteúdo anímico predominará às vezes o sensório, outras vezes o afetivo, outras o conceitual, pois o poeta, ao expressar-se nunca transmite puros conceitos, quer dizer, nunca transmite conceitos sem mescla de sensorialidade ou sentimentalidade ” (Bousono in Campos, 1975).

Poesia é a arte de excitar a alma”(Hardenberg in Campos, 1975).

Toda verdadeira poesia é uma visão de mundo”( Eliot in Campos, 1975 ).

Poesia são as melhores palavras em sua melhor ordem ” (Coleridge in Campos, 1975 ).

Ao fundirmos os três últimos conceitos, o próprio Campos (1975) faz uma espécie de liga conceitual de elevado teor filosófico-literário, com um enfoque individual, um enfoque social e um enfoque estético da arte poética : “ Poesia é a arte de excitar a alma com uma visão de mundo através das melhores palavras em sua melhor ordem ”, uma conceituação ampla e capaz de abranger inclusive as experiências de todas as escolas poéticas.

Outro estudioso, Robert de Souza, em Un Débat sur La Poésie, tenta resumir o pensamento poético do Abade Henri Brémond, grande poeta e estudioso da literatura francesa, em seis itens :

1) Todo poema deve suas características essenciais a uma espécie de realidade unificadora e misteriosa; 2) não basta, nem é necessário, ler poeticamente um poema, para captar-lhe o sentido, uma vez que existe certo encantamento obscuro e independente do significado das palavras; 3) poesia não pode se reduzir a um discurso prosaico, pois constitui um meio de expressão que ultrapassa as formas comuns da prosa; 4) poesia é uma espécie de música e ao mesmo tempo não é apenas música, pois age como uma espécie de condutor de corrente pelo qual se transmite a natureza íntima da alma; 5) é a encantação que proporciona a comunicação inconsciente do estado de alma em que se encontra o poeta até o momento em que se manifesta por idéias e sentimentos, momento esse que se revive confusamente lendo o poema; 6) a poesia é uma espécie de magia mística semelhante ao estado de oração ” .

Se recorrermos ao dicionário, teremos uma definição formal de Poesia, mas nunca a definição que nos agrade ou que corresponda à realidade que buscamos. Faz muito mais sentido e causa maior conforto as definições embevecidas de imaginação e lirismo, como as que acabamos de mencionar anteriormente no texto.

Silveira Bueno (1996), em seu Minidicionário da Língua Portuguesa, define : “ Poesia - arte de escrever em verso; composição poética; inspiração; o que desperta sentimento do belo ” .

E muitas outras definições podemos encontrar pelo caminho da pesquisa, de diferentes épocas, escolas, autores e adeptos da literatura, portanto, conforme citado por Wanke anteriormente, de difícil entendimento. Homem e poesia, Poesia e vida, vida e arte estão intimamente ligados, não há como separá-los, mesmo porque os conceitos se confundem.

Somos testemunhas da influência da Poesia desde os primeiros séculos até hoje, pois a Poesia esteve presente em todas as épocas, em todos os povos, em todos os dias e assim deve permanecer por milhares de anos. Vejamos esta máxima de Emerson ( 1994), retirada do seu livro Ensaios : “ A vida pode ser um poema lírico ou uma epopéia, bem como um poema ou um romance ”.

Até onde o entendimento nos permitiu alcançar, concordamos que a Poesia requer inspiração, sensibilidade, vibração de nervos e sentimento. É pura imaginação e poucos foram os privilegiados ao longo dos séculos, talvez mais em séculos anteriores onde ela foi praticada com afinco, dedicação e pureza de espírito.

Seu conceito é amplo e ao mesmo tempo restrito, depende da perspectiva do leitor. Como diria Maiakovski, célebre poeta russo do início do século : “ A Poesia começa onde existe uma tendência ” .

O FLORESCER DA POESIA

1. OS PRIMEIROS POETAS

Poeta, do grego poietes, significava autor. Era o indivíduo que compunha a letra e a música dos dramas, das epopéias (Exposição de feitos grandiosos, narrados pelos poetas antigos) e dos cantos sentimentais. “ Hoje chamamos poeta ao escritor que compõe versos, é o literato que pensa por meio de imagens ” (Macedo, 1979).

De acordo com os registros oficiais, a Poesia ganhou impulso e teria começado a existir como expressão de arte na primavera de 534 a.C., na Grécia antiga, época em que as primeiras tragédias foram encenadas, por decreto oficial, no Festival de Dioniso, em Atenas.

A tragédia grega, pelo que apuramos ao longo da pesquisa nos poucos livros que se propõem a desvendar o assunto, era mais do que um entretenimento público promovido pelo governo para distrair a multidão, e mais do que um ritual em honra ao Deus Dioniso (Deus da fertilidade e criatividade, segundo a mitologia grega), a quem os gregos tanto louvavam.

Reconhecidamente, ela assinalou o florescimento de uma arte cujas raízes se estendem pelo menos até a Idade do Bronze (Período pré-histórico compreendido entre 3.500 e 3.000 a.C., quando o bronze era o principal material utilizado para fabricação de armas e utensílios). Tanto no conteúdo como na forma, a Poesia se revelou a expressão completa da essência de um povo.

Os temas das tragédias eram mitológicos, extraídos da numerosa coleção de histórias existentes nas epopéias e nos hinos de Homero e seus sucessores.

Todos os que se dizem um pouco conhecedores do assunto sabem que nos antigos e familiares relatos da Ilíada e Odisséia (Considerados os maiores poemas épicos da Grécia antiga) encontravam-se todos os tipos de personagens; suas aventuras, seus amores e dilemas espelhavam todas as possíveis situações humanas.

Homero, principal poeta da antiga literatura grega, parece ter vivido 700 a.C., provavelmente na área jônica (Atualmente Turquia Ocidental). A tradição diz que era cego e que pode ter cantado para as cortes reais da mesma forma que os bardos cantam no seu poema Odisséia. Não se sabe quanto suas palavras originais correspondem aos textos hoje disponíveis, mas parece claro que a base do poema, assim como a da sua Ilíada, foi oral.

Ao mesmo tempo, suas obras, como as conhecemos atualmente, apresentam uma unidade impressionante, apesar de serem muito longas. A Ilíada concentra-se em uma série de episódios conectados um com o outro durante o sítio de Tróia.

A Odisséia, que pode ter sido escrito por um outro autor, conta as perambulações de um dos líderes gregos, Ulisses (Odisseu), em Tróia, durante o longo e atribulado retorno a seu reino de Ítaca.

A Ilíada, enquanto relata a inimizade entre Aquiles e Agamenon, incorpora muito da mitologia em dez anos da guerra de Tróia; as fortes cenas de lutas são ofuscadas por suaves quadros da vida cotidiana.

Da mesma forma, na Odisséia, o relato sobre o retorno de Ulisses a Ítaca e a vingança sobre os pretendentes de sua mulher são colocados no cenário mais amplo da volta dos heróis gregos, oferecendo muitos detalhes a respeito de outras fases da vida de Ulisses em Tróia e em outros locais.

A Ilíada e Odisséia são consideradas os maiores poemas épicos da Grécia Antiga. A época em que receberam sua forma final é controversa, mas pode ter sido no final do século 7 a.C..

A estrutura dos versos e a disposição dos cânticos são o resultado de uma longa tradição oral rapsódica que contava histórias e lendas da era heróica da Grécia, no final do período micênico; mas eles também contém elementos que podem ser posteriores a este período.

Os maiores poetas trágicos (ou os mais conhecidos) - Ésquilo, Sófocles, Eurípedes - explicitavam os personagens e as situações para as audiências, relevando-lhes a própria condição humana.

Eram comuns, entre os intelectuais admiradores da Poesia na época, dilemas dignos de estudo e investigação em todas as peças encenadas : Que tipo de escolha tem os seres humanos em sua existência ? Como os indivíduos podem entender a ambigüidade no mundo e conviver com o fato de que ele é, ao mesmo tempo, bom e mau, protetor e cruel, agressivo e amável ? Os poetas trágicos exploravam a fundo as questões mais simples do cotidiano e transformavam-nas em peças teatrais que arrastavam multidões.

Mas eles não foram os primeiros a explorar os mitos. Gerações de poetas líricos haviam moldado a língua grega em versos de incomparável beleza (mais adiante veremos alguns trechos desses poemas).

As formas poéticas eram tão familiares para os gregos quanto para os mitos; os poemas sempre eram declamados em público e nunca escritos para leitores solitários. Os próprios versos eram musicais, com ritmos diferentes em cada tipo de poema e apropriados para cada ocasião, intimamente ligados à dor ou alegria do poeta. Embora declamassem também em banquetes e reuniões íntimas, os poetas alcançavam fama e fortuna nas disputas promovidas em festivais religiosos.

Paramentados e engrinaldados, eles participavam de diversas competições: de rapsódia, nas quais declamavam versos, em geral, épicos, sem acompanhamento musical; de citaródia, isto é, a declamação individual com acompanhamento de lira; e de canto coral, para o qual os poetas treinavam tanto os cantores quanto os dançarinos.

As competições eram realizadas em toda Grécia - em Delfos, em Esparta, em Olímpia -, exceto, até o início do século VI a.C., em Atenas. Os poetas foram levados para lá por Psístrato e seus filhos; as competições de rapsodos foram introduzidas lá durante as festividades panatenaicas. E foi em Atenas, numa época de agitação política e ameaça externa, que ocorreu a síntese representada pela tragédia.

Segundo a lenda, o responsável por tal síntese foi o poeta Tépsis de Icária, que teve a idéia de introduzir um ator para servir de contraponto ao coro. O ator representava mascarado, o que era uma inovação surpreendente para a época e estimulava a curiosidade e imaginação da população : ele não declamava seus próprios versos, mas era alguém que personificava outra pessoa, mas terminava por arrebatar todas as glórias.

Tépsis venceu o primeiro concurso de dramaturgia realizado no Festival de Dionísos, mas de suas obras restam apenas fragmentos. A amplitude da tragédia grega pode ser vista nas obras de seus sucessores. Esses poetas competiam não apenas nos festivais atenienses, mas também por toda a Grécia. Eles levaram adiante a inovação de Tépsis e introduziram outros atores em suas peças. Também orquestraram os diferentes ritmos e formas dos poetas líricos - as rapsódias, as citaródias e os coros - em obras únicas, harmonias que cantavam as paixões do coração humano, semelhante hoje ao que podemos admirar em óperas, músicas românticas impregnadas de poesia pura, capazes de remeter o mais cruel dos homens ao mundo da imaginação e fantasia por conta da sua própria fragilidade.

Os palcos eram no início muito simples; o público sentava-se em degraus de pedra em volta da orquestra. As apresentações eram durante o dia, ao ar livre.

Os poetas apresentavam três tragédias (geralmente sobre temas diferentes) e uma peça satírica, mais leve. Poucos se atreviam a apresentar peças que sustentassem, de alguma forma, posições contrárias às imposições do governo ou algo semelhante, não muito diferente de algum tempo em nosso país. Ofereciam-se prêmios ao melhor poeta e o vitorioso recebia uma coroa de hera (Planta típica da época, símbolo da união e do casamento ( deusa do casamento)).

Podemos avaliar a presença maciça da poesia na cultura dos habitantes da Grécia antiga e, muito provavelmente, de outros que também se deslocavam até as cidades onde as peças, mescladas à poesia, eram encenadas.

Era comum na época, reunião de um grupo de pessoas em torno de algum poeta de plantão, disposto a iniciar uma declamação digna de apreciação mesmo sob forte pressão dos olheiros do governo oficial que temiam vulgarizar a poesia, motivo pelo qual, inclusive, as competições e mesmo eventos de simples apresentações, obedecerem a um rígido cronograma oficial. Se a poesia, aliada ao teatro, foi tão importante para a época em que os estudos da arte eram levados a sério, por prazer e gosto, cabe-nos questionar a razão, 2.500 anos depois, pela qual a poesia não conseguiu sustentar a mesma importância, embora resista à indiferença dos editores preocupados mais com o título do que o conteúdo nos tempos atuais.

Os jônicos (Povo da Ásia Menor, habitante das margens do Mar Mediterrâneo (Turquia)) também se distinguiram pela elegância de sua cerâmica e, não menos importante, pela sua poesia, demonstrando uma profunda compreensão dos prazeres e desapontamentos da vida, expressa nas odes (Poesia sentimental caracterizada pela elevação de pensamento e entusiasmo) de Safo, a poetisa do amor que viveu na ilha de Lesbos.

Alceu, poeta da mesma ilha, provavelmente foi o que melhor resumiu o espírito da cultura jônica. “ Traga-me vinho ” , solicitava, “ vinho e verdade ” . Os relatos são obscuros, mas, ainda na Grécia antiga, conta-se que o poeta ático Tepsis era também um amante da arte de representar e teria dado o passo decisivo ao colocar um ator em cena, cujo papel era conduzir o diálogo com o coro.

O ateniense Ésquilo teria colocado o segundo e Sófocles, o terceiro ator, unindo assim, a simplicidade da poesia e o mágico poder da representação. A união das duas especialidades da arte deu origem ao que se chamou na época de teatro grego. Embora o público dedicasse maior admiração pelo conjunto da representação, as cenas não seriam possíveis de se realizar sem os declamadores, ou seja, um completava o outro para promover o encanto da população e arrastar multidões onde quer que houvesse encenação. Elegias (Lamento ou canto fúnebre, acompanhado com som de uma flauta), sátiras e canções de amor para cantores solo; hinos, peãs (Na versificação greco-latina, o Metro ou Pé formado por 4 sílabas, sendo uma longa e três breves.) e cantos processionais para coros - tudo isso foi legado pelos poetas líricos da Grécia aos dramaturgos atenienses.

Cada tipo de verso tinha sua própria forma. Todos partilhavam da rica herança da mitologia. Notamos que a mitologia era o principal motivo da maioria dos poemas da época, com seus personagens heróicos e misteriosos, recheados de feitos e proezas inimagináveis para os dias de hoje.

Infelizmente, apenas uma pequena parte da produção desses poetas líricos foi preservada - o suficiente para revelar a variedade de seus estilos e personalidades, de costumes e preferências da época.

Excepcional dentre eles foi Safo, nascida em Lesbos no século VII a.C., tanto por ser mulher quanto por seu gênio delicado. Platão, filósofo grego, a chamou de décima musa. Safo era famosa por suas canções de amor e por seu deleite com a natureza, revelado em poemas como o dedicado à estrela vespertina, cujo teor fazemos questão de transcrever :

ESTRELA VESPERTINA

Estrela da Tarde
Tu és a pastora da tarde,
Vésper, e trazes para casa
tudo o que a Aurora dispersou.
Trazes a ovelha, trazes a cabra,
trazes as crianças para junto das mães.

Alceu conheceu e amou Safo; há fragmentos suficientes de seus poemas para que se saiba que não foi correspondido. Os poemas de Alceu refletem uma vida dedicada à guerra e à política - e uma vigorosa apreciação dos prazeres da vida, como podemos apreciar no poema que segue :

INVERNO

Zeus faz chover, e do céu
cai terrível tormenta. Os rios congelaram ...
Afugenta o inverno. Junta lenha ao fogo
e tempera, sem exagerar na água, o doce vinho.
Envolve nossas cabeças em macias
coroas cerimoniais de pele.
Não devemos nos deixar invadir pela tristeza.
Não iremos a arte alguma com o pesar, minha Bukchis.
O melhor a fazer é prepararmos muito vinho, e tomá-lo
.

Simônides de Ceos, nascido por volta de 550 a.C., era um poeta cortesão muito viajado que contava com a proteção dos tiranos de Atenas, da Tessália e da Siracusa. Ele era um mestre, admirado pela perfeição de suas canções, pela elegância de seus epigramas funerários (Nos tempos antigos, era uma pequena composição em verso colocada nos túmulos ou nos templos e terminava por uma nota mordaz) e pela profundidade com que tratava os temas mitológicos.

Seu lamento por Dânae era um exemplo típico. Dânae teve um filho – o herói Perseu - de Zeus. O pai de Dânae colocou-a, juntamente com o bebê, numa arca que foi lançada ao mar. Eles sobreviveram graças a um milagre. Eis uma simples demonstração de um pequeno epigrama funerário de Simônides :

EPITÁFIO

Este é o túmulo de Megístias, morto pelos persas
e medos após cruzarem o Rio Spercheios;
de um advinho que, mesmo vendo claramente
a morte aproximar-se,
jamais pensou em abandonar os reis de Esparta.

Mais jovem do que Simônides, Píndaro de Tebas foi tão apadrinhado quanto este e alcançou fama ainda maior. Grandioso, idealista e profundamente religioso, ele celebrou suas odes e as vitórias gregas nas Guerras Persas (Famosas guerras travadas entre os povos da Grécia antiga e da Pérsia (Irã)) e as vitórias dos atletas em Olímpia.

Abaixo podemos apreciar um trecho da introdução de sua primeira Ode Olímpica, em homenagem a Hierão, atleta vencedor das corridas a cavalo :

OLÍMPICA I

O melhor elemento é a água e o ouro,
como fogo que se inflama, brilha na noite
mais do que a orgulhosa opulência.
Se jogos celebrar desejas,
ó minh´alma -
nunca mais quente do que o sol procures outro astro
que brilhe de dia no céu deserto -
nunca superior à de Olímpia
uma competição celebraremos.
De lá o renomado hino envolve
o gênio dos poetas que para louvar
o filho de Cronos ao lar vieram
rico e feliz de Hierão.
Da justiça ele detém
o cetro da fecunda Sicília, colhendo
o que há de mais alto de todas as virtudes
e gloria-se também
com as excelências do canto com que nos recreamos
amiúde ao redor de sua mesa amiga

Avaliando superficialmente o poema podemos arriscar-nos a insinuar que, ignorando a má interpretação dos tradutores através dos séculos, por influências pessoais, Píndaro e os demais poetas da época utilizavam um nível elevado teor metafórico.

Dentre dezenas de poetas trágicos, três eram considerados os maiores. Ésquilo, o mais velho, nasceu cerca de uma década antes de 500 a.C. Filho de aristocrata, participou da Batalha de Maratona.

O jovial e culto Sófocles, nascido por volta de 497 a.C., combateu sob Péricles na guerra contra Samos. Sete de suas 130 peças foram preservadas. Eurípedes, nascido por volta de 480 a.C., era um filósofo austero, recluso e menos idealista do que os outros dois. Das noventa peças que escreveu, restam dezoito.

(continua)

Fonte:
Monografia feita pelo autor em Curitiba / PR , março de 2001