CAPÍTULO V
O MARAVILHOSO DA LENDA
I — Gargântua
Gargântua evoca Rabelais. Contudo Eloi Johanneau (Variorum, t. I, pág. 37), Ph. Chasles (Tableau de la littérature française, 1829), J. Grimm (Mythologie allemande, 1837), pensam numa tradição antiga. Rabelais criou um herói nacional cujo nome expressivo tornou-se uma imagem popular.
1. — Origem
H. Gaidoz (Revue archéologique, set. de 1868), baseando-se na radical da palavra — gar — vê nessa radical uma divindade; o deus da luz Garuda ter-se-ia tornado o Hércules gaulês. Esse principio druídico estaria ainda presente no seu culto das pedras.
Porém os gigantes são conhecidos; e o nome de Gargântua figura na Légende de maistre Pierre Paileu de Charles Bourdigné (1526). Tiel Ulespiègle legou a palavra “espiègle” mas esse farsante insípido e sem espírito, comparado com Panurge, não tem nem a sua sutileza nem a dicacidado. Rabelais teria se inspirado na Histoire maccaronique de Merlin Cocaie (História macarrônica de Merlin Cocaie). Com efeito, o episódio dos carneiros é também encontrado no primeiro.
2. — Os gigantes.
Como os elfos, os anãos ou os ciclopes, os gigantes são a personificação dos grandes fenômenos (furacões. estações, geadas...); quase deuses: Thrym rouba o martelo do deus Thor; Mimir, o gigante das águas, aconselha Odin. São entes poderosos: Egir é o senhor dos mares e sua esposa Ran captura os navegadores.
Para a Igreja católica, o gigante substitui o diabo. Em 1100 os elementos pagãos e cristãos se misturam; o povo aceita o cristianismo sem contudo rejeitar as crenças tradicionais. E desta forma que Geoffroi de Monmouth faz evoluir Gurgunt em sua epopéia bretã retomada por Wace (Roman de Brut, 1155).
3. — A obra de Rabelais
Depois do êxito das Grandes et inestimables chroniques de l’énorme géant Gargantua (Grandes e inestimáveis crônicas do enorme gigante Gargântua) (1532) — devidas talvez a Billon d’Issoudun — Rabelais edita Les horribles et épouvantables faíts et prouesses du très renommé Pantagruel (Os horríveis e espantosos feitos e proezas do mui renomado Pantagruel) na editora Claude Nourry, conhecido por Le Prince (3 nov., 1532); o livro é assinado Alcofribas Nosier; o Almanach pantagrueline pronostication aparece em 1533 (Lião, François Juste).
A Faculdade de Teologia condena o Pantagruel em 23 de outubro de 1533. Porém, Rabelais, como médico, acompanha o bispo de Paris, Jean de Bellay, que parte para Roma onde vai pleitear os interesses de Henrique VIII excomungado por haver esposado Ana Bolena (1534). Com essa proteção Rabelais publica, em 1534, seu Gargântua (edição definitiva, 1542, Lião, François Juste). Le tiers livre (1546), de gosto mais rebuscado, expõe a questão do casamento, Le quart livre (Lião, 1549) narra as buscas da “Dive Bouteille”. e da passagem do Noroeste.
4. — Valor dessa obra
Os romances de Rabelais tiveram imensa popularidade. São os livros de um erudito que, de maneira divertida, num estilo falado, contêm alusões políticas e religiosas. Gargântua é um preito em favor do Renascimento e da Reforma. Apesar de Rabelais ser prudente, de pregar sem falar demais, percebe-se nele o pensamento de Erasmo, célebre pelo seu Institution du prince chrétien. Rabelais também foi um iniciado.
Saulnier (Mercure de France, 1-4-1954) mostrou que essa filosofia do beber era o símbolo de uma busca da sabedoria. O festim perante Chaneph é erguido com alusões à Ceia e faz pensar na Comunhão Eucarística.
Les grandes et inestimables chroniques (1532) teriam inspirado Rabelais. Ora, nelas encontramos novamente o mágico Merlin, que dá origem aos pais de Gargântua, futuro servidor do rei Artur. É talvez aí que se deve buscar a analogia que notamos entre a busca da “Dive Bouteille” e alguns episódios do Santo Graal.
Na verdade a obra de Rabelais, de intenção evangélica, continua profundamente esotérica com seu simbolismo aparente.
5. — A sucessão literária
Rabelais foi muito imitado. Os livros transportados pelos bufarinheiros referem-se, em geral, às Grandes e inestimables chroniques de 1532: é o caso de Deckherr em Montbéliard, de Placé em Tours, de Pellerin em Epinal ou de Oudot em Troyes.
Mas Gargântua — denominado também o Judeu Errante — passeou por todas as regiões. Modelou o solo, formando lagos, córregos e deixando montes de lodo que são verdadeiras montanhas. Uma crônica do século XVI diz que ele “a engendré le fleuve du rosne en pissant trois mois, six jours, treize heures trois quarts et deux minutes”. Essa geografia gargantuesca foi notada por A. Van Genned em Le folklore de Bourgogne, 1934; (0 folclore de Borgonha) por Sébilot (Les Traditions populaires, 1883) (As tradições populares), e por Carnoy (Contes français, 1885).
6. — Conclusão
Rabelais, fiel à tradição das crônicas de gigantes, soube exprimir, entre suas invenções burlescas, idéias novas e profundas. Não temeu opor-se à ordem estabelecida e traçou um programa de vida no qual o humanismo evangélico ocupa um lugar preponderante.
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continua...
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores
O MARAVILHOSO DA LENDA
I — Gargântua
Gargântua evoca Rabelais. Contudo Eloi Johanneau (Variorum, t. I, pág. 37), Ph. Chasles (Tableau de la littérature française, 1829), J. Grimm (Mythologie allemande, 1837), pensam numa tradição antiga. Rabelais criou um herói nacional cujo nome expressivo tornou-se uma imagem popular.
1. — Origem
H. Gaidoz (Revue archéologique, set. de 1868), baseando-se na radical da palavra — gar — vê nessa radical uma divindade; o deus da luz Garuda ter-se-ia tornado o Hércules gaulês. Esse principio druídico estaria ainda presente no seu culto das pedras.
Porém os gigantes são conhecidos; e o nome de Gargântua figura na Légende de maistre Pierre Paileu de Charles Bourdigné (1526). Tiel Ulespiègle legou a palavra “espiègle” mas esse farsante insípido e sem espírito, comparado com Panurge, não tem nem a sua sutileza nem a dicacidado. Rabelais teria se inspirado na Histoire maccaronique de Merlin Cocaie (História macarrônica de Merlin Cocaie). Com efeito, o episódio dos carneiros é também encontrado no primeiro.
2. — Os gigantes.
Como os elfos, os anãos ou os ciclopes, os gigantes são a personificação dos grandes fenômenos (furacões. estações, geadas...); quase deuses: Thrym rouba o martelo do deus Thor; Mimir, o gigante das águas, aconselha Odin. São entes poderosos: Egir é o senhor dos mares e sua esposa Ran captura os navegadores.
Para a Igreja católica, o gigante substitui o diabo. Em 1100 os elementos pagãos e cristãos se misturam; o povo aceita o cristianismo sem contudo rejeitar as crenças tradicionais. E desta forma que Geoffroi de Monmouth faz evoluir Gurgunt em sua epopéia bretã retomada por Wace (Roman de Brut, 1155).
3. — A obra de Rabelais
Depois do êxito das Grandes et inestimables chroniques de l’énorme géant Gargantua (Grandes e inestimáveis crônicas do enorme gigante Gargântua) (1532) — devidas talvez a Billon d’Issoudun — Rabelais edita Les horribles et épouvantables faíts et prouesses du très renommé Pantagruel (Os horríveis e espantosos feitos e proezas do mui renomado Pantagruel) na editora Claude Nourry, conhecido por Le Prince (3 nov., 1532); o livro é assinado Alcofribas Nosier; o Almanach pantagrueline pronostication aparece em 1533 (Lião, François Juste).
A Faculdade de Teologia condena o Pantagruel em 23 de outubro de 1533. Porém, Rabelais, como médico, acompanha o bispo de Paris, Jean de Bellay, que parte para Roma onde vai pleitear os interesses de Henrique VIII excomungado por haver esposado Ana Bolena (1534). Com essa proteção Rabelais publica, em 1534, seu Gargântua (edição definitiva, 1542, Lião, François Juste). Le tiers livre (1546), de gosto mais rebuscado, expõe a questão do casamento, Le quart livre (Lião, 1549) narra as buscas da “Dive Bouteille”. e da passagem do Noroeste.
4. — Valor dessa obra
Os romances de Rabelais tiveram imensa popularidade. São os livros de um erudito que, de maneira divertida, num estilo falado, contêm alusões políticas e religiosas. Gargântua é um preito em favor do Renascimento e da Reforma. Apesar de Rabelais ser prudente, de pregar sem falar demais, percebe-se nele o pensamento de Erasmo, célebre pelo seu Institution du prince chrétien. Rabelais também foi um iniciado.
Saulnier (Mercure de France, 1-4-1954) mostrou que essa filosofia do beber era o símbolo de uma busca da sabedoria. O festim perante Chaneph é erguido com alusões à Ceia e faz pensar na Comunhão Eucarística.
Les grandes et inestimables chroniques (1532) teriam inspirado Rabelais. Ora, nelas encontramos novamente o mágico Merlin, que dá origem aos pais de Gargântua, futuro servidor do rei Artur. É talvez aí que se deve buscar a analogia que notamos entre a busca da “Dive Bouteille” e alguns episódios do Santo Graal.
Na verdade a obra de Rabelais, de intenção evangélica, continua profundamente esotérica com seu simbolismo aparente.
5. — A sucessão literária
Rabelais foi muito imitado. Os livros transportados pelos bufarinheiros referem-se, em geral, às Grandes e inestimables chroniques de 1532: é o caso de Deckherr em Montbéliard, de Placé em Tours, de Pellerin em Epinal ou de Oudot em Troyes.
Mas Gargântua — denominado também o Judeu Errante — passeou por todas as regiões. Modelou o solo, formando lagos, córregos e deixando montes de lodo que são verdadeiras montanhas. Uma crônica do século XVI diz que ele “a engendré le fleuve du rosne en pissant trois mois, six jours, treize heures trois quarts et deux minutes”. Essa geografia gargantuesca foi notada por A. Van Genned em Le folklore de Bourgogne, 1934; (0 folclore de Borgonha) por Sébilot (Les Traditions populaires, 1883) (As tradições populares), e por Carnoy (Contes français, 1885).
6. — Conclusão
Rabelais, fiel à tradição das crônicas de gigantes, soube exprimir, entre suas invenções burlescas, idéias novas e profundas. Não temeu opor-se à ordem estabelecida e traçou um programa de vida no qual o humanismo evangélico ocupa um lugar preponderante.
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores
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