domingo, 20 de dezembro de 2009

Eduardo Maretti (O Condenado )

Pintura digital de João Werner
é, de algum modo, eterno, o punhal que na noite passada matou um homem em Tacuarembó, e os punhais que mataram César.
Jorge Luis Borges

Há cinco anos marquei um encontro com Ana no bar. Ana não veio. O bar transformou-se. No outono do encontro, lembro, na tarde precedente à noite que não veio (que veio, mas veio opaca, não obstante
o vídeo, a vodka e o sal), na tarde precedente clarões súbitos rosa-ciano-amarelo-spleen, tudo se movia, era vento, e silêncio entre as nuvens nas esferas do outono.

Hoje primavera plúmbea, ainda há no tempo uma fresta por onde o sol inaugura o tempo escuro que pressinto. Mas pressinto o júbilo também, essa espécie de alegria silenciosa e melancólica em que antigamente mergulhava-se, os bosques ao crepúsculo, bosques contemplados pelos pássaros que se recolhem, habitados pelos morcegos invisíveis, a noite de asas. Oh metal resplandecente! Teu reflexo assassino brilha hoje a luz tumultuosa do crepúsculo e do neon e dos faróis, caos que vejo através da cerveja que bebo por pura nostalgia sem prazer algum – gole ou outro provocando uma náusea inevitável de prazer sufocado.

Mas a rotina da espera – mesmo uma espera inútil – não é talvez mais cruel do que a que vi muitas vezes no sonho em que Ana se penteava em frente ao espelho (o vestido vermelho, o sorriso negro), a rotina que amei porque não tive. Há, apenas, como borboletas voando sobre o asfalto entre arranha-céus, essa saudade do nada, fendas entre os céus, quanta chuva, inundação, manchas na memória e no
lençol.

– Por favor, empresta o fogo.
– Como?
– O fogo.

Acendo o cigarro do jovem decrépito, bonito e sinistro, com os cabelos loiros rasos cortados à máquina. Ele agradece com um gesto largo e lento, quase sem movimento. Tem olhos amendoados e tristes. As sobrancelhas grossas acentuam a expressividade luciferiana: a impressão do olhar situado atrás do rosto, mesmo dos olhos azuis fundos – mas não uma profundidade física, que também existe marcada nas olheiras escuras, e sim como se olhassem de uma dimensão distante, através das noites. O rapaz,
conhecido por todos no bairro por alcunha de Tamêga (não se sabe por quê), ficara louco de tanto cheirar cola, dizem, e, dependendo do seu humor ou talvez da lua, é visto na madrugada falando sozinho e rindo uma gargalhada sem sentido, demente.

Dá alguns passos, visivelmente bêbado (orgulhoso, se esforça para demonstrar uma dignidade que, entretanto, possui), e pára. Fica assim, olhando para o chão, de costas para mim, como se quisesse recordar algo, e, mesmo sem vê-la, entendo que sua expressão é de extrema concentração.

Vira-se, chega novamente perto, e pergunta:

– Você gosta de metal?
– Como?

Com um sorriso de escárnio (como sugerindo a minha ignorância), repete, fazendo com as mãos o gesto de tocar guitarra:

– Metal.

Seu falar é manso, quase sussurrante. Exprime cansaço diante de alguém incapaz de entender a espiritualidade de um gosto que se deve, mais do que entender, sentir.

– Já ouviu falar de Iron Maiden, Guns N’Roses...? – explica, como se revelasse uma verdade sagrada, mas, ao mesmo tempo, com uma expressão que agora misturava a tristeza e uma estranha consciência de verdades obscuras muito além do poder verbal, verdades a que, como a uma alma, o tipo de música de que falava servia de corpo.

– Claro, mas não gosto.
– Adeus, Deus. Deus... – ele murmurou, como se não me ouvisse e com expressão entre a tristeza e o desprezo. Fica imóvel, me olhando. Exprime de repente, como se acordasse, a sua indignação com movimentos quase imperceptíveis do olhar, embora os olhos se mantenham fixos. Repete os movimentos anteriores, lentos, graves. Dá novamente as costas, pára, fica um tempo mirando o chão.
Volta-se, olha-me nos olhos e diz:

– A escuridão.

Sua expressão, agora, é a de quem se esforça tremendamente para se fazer entender, consciente de que não o pode.

– A escuridão – repete.

Depois de um longo silêncio de cerca de um minuto, diz, com ar desanimado:

– Você não entende a escuridão.

Vira-se, agora mais rapidamente, e vai embora. Mas, surpreso comigo mesmo, digo compulsivamente:

– Aceita uma cerveja?

O rapaz pára mais uma vez, volta-se, caminha em minha direção cabisbaixo.

– Você não entende o que eu falo, não entende o que eu falo, não entende a escuridão, mas me entende – diz com expressão aflitiva –, mas não, não quero tomar cerveja. Eu só tomo o que não pode. O proibido. Obrigado, meu amigo.

– Qual é o seu nome? – pergunto.

E o Tamêga:
– César. César, o rei de Roma apunhalado.
Disse.

Deu meia-volta e saiu decidido bar afora.

A poucos metros de mim, no canto do balcão, cinco ou seis pessoas discutem política. Chamam-se de “companheiros”. Um destes, o mais exaltado, diz ao balconista:

– Aí, a saideira!
– Não posso não, tá fechando.
– A saideira, companheiro, como pode não ter a saideira?
– Não dá não – diz o balconista, com a irritação silenciosa, mas enfática, ameaçadora, do sertanejo. O olhar cabisbaixo, dissimulado, junto ao tom de voz expressando uma vontade definitiva e incontrariável, desarmou o barbudo “companheiro”.
– Chama o patrão – disse o militante, procurando diluir com um sorriso forçado a antipatia que sua postura provocava num botequim onde o futebol e a mulher eram os assuntos universais.

O gerente do bar é um pernambucano de Garanhuns. O patrão português lhe confia o estabelecimento. Adérson, decidido como sempre (aprendi a respeitá-lo nesses cinco anos de espera), passa por trás do balcão olhando para mim sem sorrir (um nordestino sorri geralmente com os olhos) com cumplicidade.

– Ô companheiro, a gente quer a saideira – diz o barbudo.
– Não tem mais cerveja – diz Adérson.

O grupo reclama muito e pede a conta. A conta vem.

– Nossa! A cerveja aumentou! Você tá louco – diz o barbudo, que se comporta como uma espécie de chefe do grupo. – Mas ontem ...!
– Ontem era ontem – diz Adérson.

Apesar da intimidade com Adérson, que me seduzia a ficar ali para talvez, depois de eu bêbado, me convencer a ir domingo ao estádio ver nosso time na semifinal (quantas vezes ele não fechou o bar comigo lá dentro, para abrir as cervejas que tinham “acabado”, para conversarmos sobre futebol – e era quando ele se permitia tomar um trago), me lembrei de que, não obstante o desejo de ficar mais uma noite bebendo inutilmente, eu alugara a fita, como há cinco anos, para ver O fundo do coração.

Que ridículo!

Esperando Ana no bar há cinco anos, cinco anos acompanhando a evolução do preço da cerveja e acendendo cigarros para vagabundos e trabalhadores bem-sucedidos no bar transformado. É necessário que haja (é necessário que haja) uma história não cumprida, uma chuva impertinente, veredas, rios a atravessar, é preciso Ana não ter vindo e também a transformação do bar para que se realize o destino.
Pago a conta no bar e saio porta afora. Chove um pouco.

Na primeira encruzilhada, encontro o tal César, o Tamêga, parado, mirando o vazio da noite. Sequer o cumprimento, mas sinto com terror que ele me olha pelas costas até eu dobrar, por medo, a primeira esquina, em vez de seguir o caminho cotidiano e mais rápido, em frente, para casa. Tive uma sensação – não existencial ou psicológica, mas física – de alívio ao me ver livre de seu olhar. Eu duelei com o medo. Por um momento achei que, com um ato covarde, pois fugia, eu o tinha vencido.

Súbito, um mulato alto, de bigode, que eu nunca havia visto no bairro, me intercepta no quarteirão seguinte.

– Um cigarro aí, bacana – ele diz.
– Como? – digo, incomodado com a idéia da morte. Não sei por que lembrei de coisas que havia esquecido há muito: um tiro com a espingardinha de chumbo num pardal à beira de um jardim, um gol decisivo que fiz num jogo de futebol de rua, um soco que levei passivamente no rosto de um moleque mais fraco na saída da escola.
– Ora, meu chapa, um cigarro!

O homem, ébrio, mas sóbrio (como eu, não ainda bêbado), ficou irritado com o meu sapato.

– Não tenho cigarro.
– Ora, meu chapa, um cigarro! Claro que tu tem. Olha aí.
– Não tenho cigarro.

Olhei nos olhos dele, só porque os olhos eram frios e refletiam um brilho estranho de punhal adormecido.

Choveu mais. Chovia.

Fiquei valente à toa. Tinha medo, mas fiquei valente. Acendi um cigarro, para mim. O homem, parado à minha frente, entendeu a agressão.

– E aí, bacana, e o cigarro?

Eu tinha motivos para ouvir Roberto Carlos na indefectível emissora tocada no bar, enquanto Adérson defenderia a grandeza da história do Santos Futebol Clube e explicaria detalhadamente o porquê de o time ter sido desclassificado do campeonato, enquanto no bar transformado (as baratas já sobem pelas paredes) as portas baixadas continuariam a denunciar (como há cinco anos) a impotência da espera.

É verdade: depois de cinco anos, cansei de esperar que Ana viesse sensual num vestido de seda me livrar do passado, da soma dos lances de dados do destino de um ébrio irritado com os meus primeiros sapatos novos em cinco anos. Por isso saí do bar para sempre hoje.

Mas o homem foi atrás e queria o cigarro. Queria porque queria um cigarro meu na noite escura. Pensei que no mundo há seis bilhões de seres humanos, pensei na mulher desse homem que, embriagado, me acossava num beco da metrópole, pensei na metrópole e nos seus milhões de olhos obscenos, nos filhos desse homem (haveria filhos?), em César, e na grandeza de Roma, olhei para os olhos apagados do malandro que me acossava e vi a lua cheia sobre sua cabeça, pensei em Deus e não pude entender como Ele poderia me condenar ao inferno por um ato tão espontâneo, tão infantil (pensei também na guerra de mamona nas ruas desertas), tão sincero; finalmente pensei em mim mesmo e achei tudo muito monótono e opressivo, cinco anos esperando Ana no bar e reconhecer que as baratas já subiam pelas paredes.

– Me dá o cigarro, bacana, me dá o cigarro, bacana! – falava o homem, ameaçador.

O bar fechara. Um empurrão e ele teria ficado no chão. Mas escolhi sacar o revólver (foi tão calmo, tão bonito) e dar-lhe dois tiros, um no olho direito (que errei, pois pretendia acertar a boca) e outro no meio da testa. Eu apenas ouvia as risadas frenéticas daquele César decaído em alguma esquina perto. Acho que ninguém viu, nem mesmo o César-Tamêga. A culpa é de Ana. E um pouco também, pensei – enquanto assistia ao filme no vídeo –, de todos os césares.

Fontes:
Revista Cult . Radar Cult. Junho 2001.
Imagem = http://www.joaowerner.com.br

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