sábado, 19 de dezembro de 2009

Jerônimo Mendes (História da Poesia Universal – Breve Relato ) Parte III


2. A PROFISSÃO DE POETA

Os registros históricos consultados durante a evolução do trabalho não descartam o fato de a poesia ter sido a única fonte de ocupação e, possivelmente, de renda de muitos poetas ao longo da história humana. Na Grécia antiga, os poetas alcançavam fama e fortuna nas disputas promovidas em festivais religiosos, patrocinados freqüentemente pelo governo da época, principalmente em períodos de agitação política ou ameaça externa para distrair a população, conforme pude verificar.

Embora a poesia tenha sido mais valorizada como arte pelos primeiros literatos, nota-se que os grandes poetas da antigüidade - sem menosprezar os talentos de cada poeta em particular - buscavam a independência financeira e aliavam-na ao gosto pela literatura e dramaticidade interpretadas através do teatro, o que poderia servir, inclusive, como forma de entreter grande parte da população sempre descontente com os seus governantes, motivo pelo qual os próprios faziam questão de estimular a constante realização dos eventos e premiar os vencedores dos concursos.

Apesar da importância na antigüidade, a poesia nunca pôde ser reconhecida oficialmente em qualquer civilização ou cultura como profissão propriamente dita e sempre ficou rotulada por muitos como literatura, por outros como arte e por tantos outros como poesia mesmo, sendo esta última nem sempre classificada como arte.

Diferente dos primeiros tempos, a história registra que muitos poetas obrigaram-se a viver clandestinamente ou na solidão por conta de suas poesias ditas infames, impróprias ou mesmo como ato puro de rebeldia e afronta aos governantes, e assim acabaram por merecer o repúdio incondicional ao invés do reconhecimento.

Consta que o imperador romano Augusto foi um dos grandes incentivadores e patrocinadores oficiais aos escritores e poetas do seu tempo. Para assessorá-lo, recorria ao rico Caio Mecenas, um de seus amigos mais velhos e íntimos, que exercia o papel de caçador de talentos. Mecenas trouxe para o círculo imperial homens brilhantes de vários níveis da sociedade romana. Os poetas Ovídio e Propércio eram cavaleiros, o historiador Tito Lívio vinha de uma família da Gália Cisalpina, o grande poeta Virgílio era filho de um pequeno agricultor e Horácio nascera de uma família de libertos e todos eles gozavam de boa reputação e segurança financeira.

Para esses homens, o patrocínio do imperador significava status social e conforto, à custa de alguma liberdade intelectual. Augusto certamente gostava quando um de seus protegidos produzia um poema épico para maior glorificação de Roma. Virgílio estava trabalhando numa obra desse tipo quando morreu, em 19 a.C. O poeta deixara ordens para que queimassem o poema, caso não conseguisse completá-lo. O imperador discordou – e o mundo ganhou Eneida.

Os chineses presumiam que um cavalheiro seria capaz de se expressar em verso em qualquer ocasião. A composição poética fazia parte dos concursos para o serviço público no governo Tang e todos os burocratas utilizavam suas habilidade poéticas na celebração de excursões imperiais, eventos auspiciosos ou na partida de autoridades.

Tais ocasiões não encorajavam a originalidade : os chineses admiravam mais o equilíbrio e a capacidade técnica. Até os grandes poetas usavam o verso como outras culturas poderiam usar um diário para registrar as minúcias do dia-a-dia, bem como as epifanias de grande significado. E isso só tornou mais notável a audácia e o lirismo dos principais poetas Tang.

Vladimir Maiakovski foi um dos maiores poetas que a literatura já produziu. Foi membro do partido Socialista e, acusado de escrever manifestos, foi preso por várias vezes, julgado e condenado. Quando saiu da prisão, em 1910, julgava-se incapaz de escrever versos.

Maiakovski pertencia a um grupo denominado futurista. Depois da Revolução de Outubro sua atividade literária tornou-se muito mais intensa, abrangendo quer a poesia, quer o teatro, embora nunca tivesse ganho muito dinheiro com isso, mas sustentava-lhe o ego e a sobrevivência mais moral do que física.

Um dos aspectos mais interessantes desta nova fase na vida do escritor foram os inúmeros recitais de poesia feitos através de toda União Soviética.

Posteriormente, tendo retomado a opção pela literatura, mais precisa mente a poesia, declara :

Vou falar do meu ofício não como mestre, mas como aquele que faz versos. O meu artigo não tem nenhum significado teórico. Falo do meu trabalho, que, no fundo, segundo minhas observações e minha convicção, pouco se distingue do trabalho de outros poetas profissionais ” .

Aliada ao exemplo acima, por muito tempo e ainda hoje a poesia carrega o estigma de ter sido associada ao prazer da bebida, da solidão, das doenças e do sofrimento geral em razão de que muitos poetas desafogavam toda sua mágoa e tristeza nos poemas, o que poder ser comprovado nas mais diferentes correntes e escolas poéticas surgidas a partir da Antigüidade, Idade Média e Contemporânea.

Apesar da dificuldade do reconhecimento da profissão, encontramos muitos autores que se declararam verdadeiros poetas profissionais. Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, mesmo tendo ganhado a vida como funcionário público e jornalista, e alegando ter se dedicado à literatura por prazer, não hesitou em afirmar no prefácio de sua Antologia Poética (1962) :

Hoje estou aposentado nas duas atividades que exerci a vida toda, mas posso considerar-me escritor profissional, pois a fonte do meu principal sustento resulta do fato de escrever e publicar livros, que o público tem recebido com simpatia

Contudo, amargando algumas derrotas na carreira literária que influíram profundamente no estilo de compor sua poesia, desabafa toda sua dificuldade em lidar com as palavras e talvez delas prover o seu sustento, facilmente identificado em parte do poema descrito abaixo (1962 : 182 ) :

O LUTADOR

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
. . .
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não tem carne e sangue
Entretanto, luto.
. . .
Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.

Apesar de muito criticado e ridicularizado quando jovem, por conta do seu poema No meio do caminho, julgado escandaloso pela crítica da época, Drummond conseguiu recuperar-se do trauma e seu poema acabou traduzido para 17 idiomas pelo mundo afora.

Para aqueles que rotularam-no idiota, o tempo foi o único capaz de corrigir a injustiça que pesou sobre seus ombros e suas retinas fatigadas porque, a despeito de todas as descomposturas praticadas contra ele, houveram também os elogios mais entusiásticos, segundo a antologia organizada de sua obra e por estímulos de companheiros de geração e pessoas mais velhas nas quais o poeta depositava inteira confiança.

Ainda no prefácio de sua Antologia Poética (1962), o poeta consolida toda sua intelectualidade e gosto pelo exercício da profissão: “Acho que a literatura, tal como as artes plásticas e a música, é uma das grandes consolações da vida, e um dos modos de elevação do ser humano sobre a precariedade de sua condição” .

A maioria dos grandes poetas, embora movidos pela paixão da arte de escrever, sempre estiveram divididos, haja vista que a profissão de poeta nunca foi capaz de se manter como meio de sustento e alimentar a esperança de ninguém, ao contrário do que ocorreu nos primeiros tempos.

Um exemplo infeliz da tentativa de sobrevivência por meio da poesia foi o caso de Augusto dos Anjos, um dos maiores poetas brasileiros do início do século XX. Apesar de ter morrido à míngua, o poeta foi reconhecido postumamente após um árduo trabalho de seus amigos e irmão para divulgar sua obra.

Em vida, Augusto dos Anjos amargou todas as incertezas que a profissão de poeta e o desprezo pela sua arte acabaram lhe proporcionando – poesia muito diferente das demais que ganhavam o início do século com o fim do Simbolismo, Parnasianismo e o advento do Modernismo em 1922.

Até os 24 anos, o poeta viveu no Engenho do Pau-d´Arco na Paraíba do Norte, de onde se afastava periodicamente para breves estadas na Paraíba ou no Recife, mas sonhava com a fama e o reconhecimento literário, o que, por conseqüência, poderiam elevar o seu padrão de vida e amenizar os prejuízos financeiros da família.

O Poeta Raquítico ou Doutor Tristeza, como era julgado e conhecido na Paraíba por conta de seus versos fúnebres e amargos, sempre almejou o sucesso através da poesia, embora sustentasse o casamento pelo exercício da profissão paralela de professor. Era advogado também, mas optou pelas letras. Insatisfeito com os proventos ganhos como professor do Liceu Paraibano e pouco valorizado pela imprensa, Augusto dos Anjos resolveu deixar a Paraíba rumo ao Rio de Janeiro onde, supostamente, gozaria de todo prestígio e compensação financeira pelo seu reconhecido mérito, como ele próprio pensou :

No Rio de Janeiro as coisas seriam diferentes. Publicaria, logo à chegada, o seu livro, afirmação de sua personalidade independente, o Eu. Levava algum dinheiro. Não precisaria do auxílio de ninguém nem dependeria de parentes. Faria relações com poetas, escritores e jornalistas, que lhe reconheceriam o talento, e tudo facilitariam ao novo companheiro de letras. Conquistaria, em suma, pelo próprio mérito, todas as posições que almejasse, na imprensa e no magistério”.

Decorrido quase um ano, pouco se havia alterado na vida de Augusto dos Anjos. Conseguiu, apenas, a nomeação de professor substituto de Geografia, Cosmografia e Corografia do Brasil no Ginásio Nacional. A situação do poeta era mais do que precária e os vencimentos insuficientes para cobrir as despesas da família. Perdera o primeiro filho e o parto prematuro indicava todas as dificuldades por que passou. A esperança de sobreviver pela poesia foi morrendo aos poucos e junto com ela o ímpeto do poeta em prosseguir com seus objetivos.

Em carta datada de 11 de setembro de 1991, declara à irmã na Paraíba :

Desempregado, com responsabilidades pesadas a me abarrotarem a alma, vítima de uma desilusão de minha própria terra, tudo isto, como um amálgama negro, engendrou esse silêncio malsinado, que não corresponde absolutamente a uma depressão quantitativa dos afetos à família, tanto por mim estimada. Agora, a nomeação que acabo de receber veio sanear um pouco o meu abalado território cerebral ” .

Para completar a receita do orçamento doméstico, tinha de desdobrar-se em aulas particulares, em bairros diferentes e tornou-se posteriormente agente de companhia de seguros, sem êxito, porém. Era total e absoluta sua incapacidade para ganhar dinheiro.
Teve que se resignar ao ganha-pão de professor. Nenhum editor quisera publicar seus manuscritos poéticos. Acabou por financiar a edição, de parceria com o seu irmão, Odilon.

Um outro poderia acreditar na obra, como um negócio capaz de proporcionar lucros, pelo menos é o que transparece nas cláusulas do contrato firmado por ambos, em reprodução ipisis litteris conforme abaixo :

Cláusula II - “ Fica considerada como despesa de impressão a quantia de cinqüenta mil contos de réis, dispendida com a fotografia de Augusto dos Anjos, a fim da mesma figurar no livro”, e ainda, “Fica considerada como despesa à parte tudo que for gasto com a venda e colocação do livro, cabendo a quem houver feito dita despesa reavê-la, oportunamente ” .

A grande verdade é que, apesar de todo seu talento, cultura e excepcionalidade, Augusto dos Anjos morreu frustrado, pobre e não pôde ver seu grande sonho realizado, a arte da sobrevivência pelo suor da sua poesia. O poeta voou alto, tinha asas possantes, mas era frágil e impotente, sem forças para vencer a realidade da vida, o que lhe causou profundo desânimo com o Rio de Janeiro, ao contrário do que almejava ao sair da Paraíba.

Em 1914 mudou-se para Leopoldina, em Minas Gerais, tendo aceito o cargo de Diretor do Grupo Escolar da cidade com a ajuda de seu cunhado Rômulo Pacheco, ligado à política local. Agarrou-se ao cargo como um náufrago à espera da salvação.

Para sua escrita, porém, o poeta se utilizou de toda sua paixão e obedeceu exclusivamente ao temperamento que lhe coube por dádiva divina. Tal como inúmeros poetas de sua época e de outras, não conseguiu plena realização como poeta de profissão, mas nunca será esquecido, por toda grandeza de sua obra, reconhecida tardiamente nos meios literários. Morreu no mesmo ano em que se mudou para tentar a sorte em Leopoldina, acometido de uma congestão pulmonar, mas deixo aqui nossa homenagem ao grande Poeta Raquítico transcrevendo um de seus formidáveis sonetos, grande pela idéia predominante, pela verdade científica, pelo sentimento doloroso e pela estrutura 1 2 , como diria Órris Soares, amigo do poeta, em elogio feito no ano de 1919 :

LAMENTO DAS COISAS

Triste a escutar, pancada por pancada,
a sucessividade dos segundos,
ouço, em sons subterrâneos, do orbe oriundos,
o choro da Energia abandonada.
É a dor da força desaproveitada
- O cantochão dos dínamos profundos,
que, podendo mover milhões de mundos,
jazem ainda na estática do nada !
É o soluço da forma ainda imprecisa . . .
Da transcendência que não se realiza . . .
Da luz que não chegou a ser lampejo . . .
E é, em suma, o subconsciente aí formidando
da Natureza que parou chorando
no rudimentarismo do desejo !

Diferente do que poderia ser, nenhum poeta conseguiu manter-se financeiramente pela própria poesia. Ao exercício da arte de poetar, por necessidade desenfreada da sobrevivência, a grande maioria obrigou-se a associá-la a uma atividade paralela, incondicionalmente, o que não deixa de causar indignação e espanto, uma vez que a poesia sempre esteve presente na cultura de todos os povos e todos sempre fizeram questão de enaltecer seus poetas.

À exceção dos primeiros e de alguns da atualidade, dificilmente encontramos algum registro de poetas que tenham enriquecido ou simplesmente vivido bem por simples exercício de sua poesia.

Sófocles, Horácio, Píndaro, Shakespeare, Auden, João Cabral de Mello Neto, Manuel Bandeira ou mesmo Drummond, a despeito de toda a fama e herança cultural acumulada para o bem da humanidade, nunca puderam orgulhar-se da poesia como meio de sobrevivência.

Aos poetas sempre estiveram ligados as demais profissões como embaixador, general, professor, escritor ou mesmo cantor, motivo pelo qual podemos insinuar que a poesia não serve como referência profissional. Atualmente, poucos poetas se dizem felizes e contentes com o tímido reconhecimento do público, traduzido em números.

O exemplo de Augusto dos Anjos no início do século e Mário Quintana falecido há pouco tempo não deixam dúvidas de quanto a poesia é ingrata, mesmo sendo objeto de estudo e avaliação em qualquer escola ou universidade de renome.

Mário Quintana, poeta gaúcho, viveu os últimos dias de sua vida vivendo de favores alheios apesar de sua vasta produção poética. Orides Fontela, poetisa paulista reconhecida pelos críticos como uma das maiores da atualidade brasileira, sofre para pagar as despesas de aluguel e manutenção de um apartamento no centro de São Paulo.

Auden na Inglaterra, Eliot e Emerson nos Estados Unidos, Trakl na Polônia, Petrarca na Itália, Maiakovski na Rússia, Baudelaire e Rimbaud na França, todos eles foram vítimas do mesmo mal e em razão de toda indiferença em vida, gozam hoje de reconhecimento, respeito e consideração da crítica literária, dos estudiosos conscientes que acabaram concluindo a importância da poesia no mundo antigo, medieval e contemporâneo.

O objetivo principal no capítulo ao fazer uma analogia e tentar associar a atividade do poeta à profissão foi demonstrar a contradição que existe no fato do público louvar a poesia em todos os tempos e ao mesmo tempo não possuir o discernimento e a crítica necessária para reverter toda injustiça que os poetas conseguem, na maioria dos casos, postumamente. Assim sucedeu com Augusto dos Anjos, Gregório de Matos Guerra, Shakespeare, Cecília Meireles e Mário Quintana, e os textos consultados não indicam que haja tendência de reversão, para tristeza dos amantes da boa poesia.

Tudo o que constatei durante a execução deste capítulo levou-me a acreditar que a poesia não reconhecida como profissão é uma grande injustiça, difícil de ser corrigida, embora seja obrigação de todos reconhecê-la como arte pura e legítima, confiada somente aos iluminados que ousaram cultivá-la por gosto, paixão e até por necessidade de expor tudo aquilo que os mortais comuns não conseguem.

Talvez seja da natureza do poeta produzir palavras difíceis e dificultar o entendimento, guardar para si mesmo aquilo que apenas ele entende num primeiro piscar de olhos, razão pela qual sua obra seja motivo de estudo e não de riquezas materiais.

Emerson, em Ensaios (1994 : 228) sobre o intelecto, resume o trabalho do poeta e sua perfeita relação com a natureza :

O intelecto precisa ter a mesma perfeição naquilo que apreende e naquilo que produz. Por essa razão, um índice de mercúrio da eficiência intelectual é a percepção da identidade. Falamos com pessoas cultivadas que parecem ser estranhos na natureza. O poeta, cujos versos devem ser esféricos e completos, é alguém que não pode ser enganado pela natureza, não importa qual a máscara de estranheza que ela possa vestir . . . Hermes, Heráclito, Empédocles, Platão, Plotino, Olimpiodoro e o resto têm algo de tão vasto em sua lógica, tão primário em seu pensamento, que parece anteceder a todas as distinções ordinárias da retórica e da literatura, e ser ao mesmo tempo poesia, música, dança, astronomia e matemática ”.
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continua...
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Fonte:
Monografia feita pelo autor em Curitiba / PR , março de 2001

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