quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Fábio Weintraub (Poesias Escolhidas)



ESTILO
(de uma entrevista com Tom Waits)

I .
A maneira pela qual
você faz
uma coisa
é a maneira
pela qual
faz todas as coisas

Você lava o carro
do mesmo jeito que
corta o cabelo
anda a cavalo
cria seus filhos

Depois dos filhos
todo o resto
fica (muito) fácil.

II.

É como pescar
ou caçar passarinhos
Você cava um buraco
na parede
e espera
que alguém
ou alguma coisa
cave de volta
na sua direção

III.

Como faço
para ter uma voz
assim grave?

Grito com a cara no travesseiro
Grito com meus filhos
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ÜBERMENSCH
para Viviana

Disse-me uma amiga
certa feita
que o máximo
da delicadeza
é entrar
num quarto vazio
onde haja um espelho
e vê-lo
vazio
livre da dívida
de nos refletir

Vampiros são muito suaves

(de Sistema de Erros, 1996)

RISCO

a nódoa azul
nos pães da véspera
um resto de orvalho
na pólvora agora
o leite coalhado
na teta órfã

sustos
ante o quê
por úmido
estraga

ou floresce
(de Sistema de Erros, 1996)
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MÃE

Então me informaram
que os pertences da paciente
— um par de brincos mais um colar —
deveriam ser retirados
pois há quem se fira
ou fira os outros
em tal estado

Minha mãe suplica:
precisa de talismãs
pra passar a noite fora de casa
Só assim ficará protegida
O Inimigo não a tocará

Expliquei-lhes que não era caso
para um tal rigor
Minha mãe não era disso
só estava muito triste
e confundida

A funcionária assentiu a contragosto

Devolveram-lhe as bijuterias
assinei o termo de responsabilidade
e ainda pude ver os enfermeiros chegando
antes de ser forçado a sair

(de Novo endereço, 2002)

GERENCIAMENTO ANTI-STRESS

Imagine um córrego
Há pássaros cantando
e o vento fresco da montanha
no céu de um azul limpíssimo
Aqui nada pode aborrecê-lo
Ninguém alcança esse lugar secreto
sem passagem para o mundo

A queda d'água
enche o ar de sons gentis
A água é transparência absoluta

Agora, sim, pode-se ver o rosto
daquele cuja cabeça
você comprime sob a água

(de Novo endereço, 2002)

PROMETEU

o fogo roubado
não é senão
a branquinha humilde:
brasa solitária
entre os carvões da vida

a ira divina
é pouco mais
que a recusa do garçom
em servir
a enésima dose
fiado

o castigo
este sim
tem a grandeza do mito:
a cirrose vulturina
com a família nas garras
da Previdência

(de Novo endereço, 2002)

PAI

Desempregado há três anos
no país do futuro

Batendo perna nas ruas
com o mostruário de meias

Adivinhando
o signo da morena
o ascendente da loira

Jogando xadrez
assobiando um samba
colecionando borboletas
descobrindo a fórmula exata
da tinta para balão
(tinta que não racha
sobre a pele inflável)

Contra as determinações médicas
filando cigarro
fazendo piada com a perna
que pode ser amputada
louvando as próteses modernas
dizendo que morre antes disso
que não vai dar trabalho
que some de casa
vai pro asilo

Meu pai de novo ao volante
guiando o negro Landau

O velho e bom batmóvel
rodando sem freio ou cinto
o vento de Gotham no rosto
minha cabeça no banco de couro

Meu pai cantando alto
limpo e bonito como só ele
numa estrada clara
sem pedágio ou limite
de felicidade

(de Novo endereço, 2002)

POR TRÁS

O prato ainda sobre a mesa
(arroz com frango)
pra quando ele voltasse

Tinha era muita raiva
Tanto que pediu
pra ele vender o táxi
deixar de rodar à noite

Pressentir é fácil
falta entendimento
Bem que estranhou o fato
dele voltar duas vezes
parar na porta
olhar pra ela sem motivo

Alguém disse que no caixão
ele tava bonito
Tava não

Repuxando o rosto
o tiro na cervical
varou a jugular
o esvaziou pela boca

(de Novo endereço, 2002)

SEQÜÊNCIA

Tudo se dá lentamente
sem sinais ostensivos
Um dia esquecem
de trocar os lençóis
ou colocam a cama
rente à porta
em posição propícia
a esbarrões freqüentes

Depois
por conta dalgum defeito
mandam o monitor pra manutenção
A cânula entra meio torta

Quem tiver paciência
verá a máscara de dor
armar-se sobre o rosto amado

Na hora certa
um enfermeiro moreno e rápido
cerca o leito com um biombo
preme a última seringa

Na casa dos parentes
o telefone toca

(de Novo endereço, 2002)
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