II — Barba-Azul
1 — Teses históricas
a) Alain Bouchard (Les grandes chroniques, 1531) e Alberto Magno (La vie de saint Gildas, 1680), registram que o rei bretão Comorre, tendo um oráculo lhe predito que seria assassinado pelo próprio filho, teria matado suas sete esposas. Influência da lenda grega, sem dúvida mas sua última esposa, Santa Triphime, é ressuscitada por Santo Gildas. O tema aparece nos afrescos da capela de Saint-Nicolas (Bieuzy, Morbihan);
b) Collin de Plancy, Ch. Giraud, Michelet crêem que Gilles de Rais, marechal de França, fiel companheiro de Joana d’Arc, inspirou a lenda. Entretanto, desposou uma única mulher, Catherine de Thouars, que a ele sobreviveu. Este homem letrado que atemorizava seus herdeiros com suas despesas fastosas, foi condenado e executado em Nantes (26 de outubro de 1440) com a idade de trinta e seis anos por haver degolado trezentas crianças em sessões de magia. Esse processo parece suspeito e S. Reinach e F. Fleuret tentaram reabilitá-lo. Tal como a imaginação popular censurava aos primeiros cristãos sacrifícios humanos, parece que Gilles de Rais tenha sido vítima de sua fortuna e de seus ataques políticos.
c) Pensou-se em Henrique VIII da Inglaterra que esposou seis mulheres e fez com que duas morressem no cadafalso. Maspero e Gaston Paris fazem dele um vampiro que bebe sangue humano. Doente, neurótico, Barba-Azul é comparado aos grandes criminosos como Landru ou John Christie;
d) A cor extraordinária de sua barba assemelha-o a Indra, a Bés, o Egípcio, ou a Júpiter. Tem uma barba azul quase preta, ou azul-celeste (Oh!) e Sébillot menciona uma barba vermelha. No simbolismo das cores é preciso ver o símbolo do iniciador, o condutor de almas que faz transpor as portas da morte espiritual.
2 — Tema da curiosidade. Iniciação
O tema da curiosidade é comum a todos os países e visa principalmente a mulher. Na. Bíblia achamos Loth, Eva e Sodoma. As Mil e uma noites fazem da curiosidade uma ampla interpretação. Esse segredo conjugal está presente em Parsifal onde a duquesa de Brabante perde seu esposo por lhe haver perguntado quem era ele. Essa curiosidade visa um ritual que nos escapa; talvez o da preparação para o casamento. A jovem é sujeita a uma prova difícil: a tentação do local secreto. Em seguida vem a última prova, o simulacro da morte; ritual de morte e de ressurreição na qual o neófito, despojando o velho, desperta num mundo novo, o do conhecimento. É o caso da religiosa colocada no seu ataúde. Para essa cerimônia de iniciação a mulher pode vestir seus mais belos adornos, ou se impor a nudez ritual do batismo dos primeiros cristãos (forma nivernesa da lenda). A magnificência da morada de Barba-Azul lembra os castelos encantados e esse grande senhor, cortês e feio, não dá a razão dos seus crimes.
3 — O quarto secreto
Esse local secreto parece ser o lugar do saber por excelência. É a loja. Um conto de Carnoy L’homme de fer (O homem de ferro), mostra que a criança desobediente não pode conhecer o derradeiro segredo. A forma original do Conte du magicien et son apprenti (Conto do mago e seu aprendiz) parece ser a Histoire du radja Madama Kdma na qual um príncipe instruído por um feiticeiro tenta e consegue escapar-lhe; Cosquin (Études folkloriques) e W. Crooke (North Indian Notes and queries, 1894) narram contos semelhantes.
Porém o quarto secreto aparece mais claramente na introdução do livro mongol Siddhi-Kûr, no qual o caçula descobre a “chave da magia” espiando pela fresta de uma porta. A curiosidade é pois recompensada. Os contos de Velay (Cosquin), da ilha de Zanzibar, de Bosnia permitem, ao iniciado triunfar depois de haver transgredido um regulamento de interdição. Este último conto, recolhido por Desparmet, assemelha-se ao de Aladin (As mil e uma noites): um jovem sem fortuna quer desposar a filha do rei.
Contudo, quase sempre, essa curiosidade é nociva.
O homem é expulso do paraíso pelo seu gesto da desobediência (conto hindu de Somadeva Rhatta; história do Terceiro calendário de mil e uma noites). Sem se instruir nos três estágios impostos (purificação, saber, poder), o neófito quis penetrar no santuário secreto: da mesma forma é enxotado dessa confraria (Roman des sept vizirs (Romance dos sete vizirs), enquanto que o príncipe do Fidèle serviteur (Fiel servidor) (Carnoy) enamora-se de um retrato conservado num quarto interdito.
L’enfant de la Vierge Marie (O filho da Virgem Maria) (Grimm), Le bénitier d’or (Cosquin), Maria Morewna (Ralston e depois Marnier) e numerosas variantes mencionadas por Saintyves, referem-se ao tema da interdição do Quarto Secreto. Doze quartos corresponderiam aos doze apóstolos, o décimo-terceiro quarto sendo o do Santo dos Santos.
Carrouges estende esse simbolismo aos romances policiais para interpretar o mistério dos quartos fechados.
4 — O objeto denunciador
Um objeto mágico denuncia o culpado que tentou penetrar no local, secreto. É o caso do conto de Perrault, do Oisel emplumé (Pássaro emplumado) de Grimm, de La veuve et ses filles (A viúva e suas filhas) de Loys Brueyre. O objeto pode ser uma chave, um ovo, um pequeno cofre, um retrato e até uma região.
Depois o próprio objeto mágico tornou-se a representação do quarto iniciativo. Essa “casa dos homens”, esse centro de reunião de iniciados transforma-se num cofre que encerra o saber. Andrew Lang vê nisso tudo a sobrevivência do culto primitivo e acrescenta o anel jogado ao mar e encontrado depois no corpo de um peixe. Mas a chave, símbolo axial, pode ser considerada pelo seu poder de ligar e desligar; seu conhecimento tem então o mesmo poder que a palavra de Ali Babá ou a do Pequeno Polegar. Às vezes o objeto desaparece: um sinal aponta o culpado; são os cabelos de ouro do Homme de fer (Carnoy) ou o dedo dourado de uma criança desobediente (Steele Swahili, Tales, 1870; Contes Cambodgiens, 1868; Conte Chao Gnoh); o ouro é então o emblema das energias solares.
5 — Auxílios
Essa luta entre o iniciado e o iniciador implica auxílios exteriores. Esses auxílios provém dos pais, de um religioso, de um sábio, de um jovem (W. Crooke observa o caso de um herói aconselhado pela filha de seu inimigo). Os mortos que aconselham são numerosos (Cosquin, Steele, L’oiseau de vérité (Pássaro de verdade), Les trente-deux récits do Trône (As trinta e duas narrativas do trono) ou Vicramaditia, La légende de la mort (A lenda da morte) (de Le Braz); D. Juan também recebeu os conselhos do comendador. Os animais, aliados do homem, sob a influência da Índia, previnem contra o perigo. Com Perrault essa parte é abreviada e os irmãos chegam inopinadamente.
6 — Conclusão
Parece que o conto de Barba-Azul visa a iniciação de um ser; sua curiosidade impede-o de beneficiar do ensinamento desta arte mágica. Os elementos interiores desse tema, conhecido em todos os países, se encontram num ritual que parece reservado aos iniciados.
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continua...
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Fonte: BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores
1 — Teses históricas
a) Alain Bouchard (Les grandes chroniques, 1531) e Alberto Magno (La vie de saint Gildas, 1680), registram que o rei bretão Comorre, tendo um oráculo lhe predito que seria assassinado pelo próprio filho, teria matado suas sete esposas. Influência da lenda grega, sem dúvida mas sua última esposa, Santa Triphime, é ressuscitada por Santo Gildas. O tema aparece nos afrescos da capela de Saint-Nicolas (Bieuzy, Morbihan);
b) Collin de Plancy, Ch. Giraud, Michelet crêem que Gilles de Rais, marechal de França, fiel companheiro de Joana d’Arc, inspirou a lenda. Entretanto, desposou uma única mulher, Catherine de Thouars, que a ele sobreviveu. Este homem letrado que atemorizava seus herdeiros com suas despesas fastosas, foi condenado e executado em Nantes (26 de outubro de 1440) com a idade de trinta e seis anos por haver degolado trezentas crianças em sessões de magia. Esse processo parece suspeito e S. Reinach e F. Fleuret tentaram reabilitá-lo. Tal como a imaginação popular censurava aos primeiros cristãos sacrifícios humanos, parece que Gilles de Rais tenha sido vítima de sua fortuna e de seus ataques políticos.
c) Pensou-se em Henrique VIII da Inglaterra que esposou seis mulheres e fez com que duas morressem no cadafalso. Maspero e Gaston Paris fazem dele um vampiro que bebe sangue humano. Doente, neurótico, Barba-Azul é comparado aos grandes criminosos como Landru ou John Christie;
d) A cor extraordinária de sua barba assemelha-o a Indra, a Bés, o Egípcio, ou a Júpiter. Tem uma barba azul quase preta, ou azul-celeste (Oh!) e Sébillot menciona uma barba vermelha. No simbolismo das cores é preciso ver o símbolo do iniciador, o condutor de almas que faz transpor as portas da morte espiritual.
2 — Tema da curiosidade. Iniciação
O tema da curiosidade é comum a todos os países e visa principalmente a mulher. Na. Bíblia achamos Loth, Eva e Sodoma. As Mil e uma noites fazem da curiosidade uma ampla interpretação. Esse segredo conjugal está presente em Parsifal onde a duquesa de Brabante perde seu esposo por lhe haver perguntado quem era ele. Essa curiosidade visa um ritual que nos escapa; talvez o da preparação para o casamento. A jovem é sujeita a uma prova difícil: a tentação do local secreto. Em seguida vem a última prova, o simulacro da morte; ritual de morte e de ressurreição na qual o neófito, despojando o velho, desperta num mundo novo, o do conhecimento. É o caso da religiosa colocada no seu ataúde. Para essa cerimônia de iniciação a mulher pode vestir seus mais belos adornos, ou se impor a nudez ritual do batismo dos primeiros cristãos (forma nivernesa da lenda). A magnificência da morada de Barba-Azul lembra os castelos encantados e esse grande senhor, cortês e feio, não dá a razão dos seus crimes.
3 — O quarto secreto
Esse local secreto parece ser o lugar do saber por excelência. É a loja. Um conto de Carnoy L’homme de fer (O homem de ferro), mostra que a criança desobediente não pode conhecer o derradeiro segredo. A forma original do Conte du magicien et son apprenti (Conto do mago e seu aprendiz) parece ser a Histoire du radja Madama Kdma na qual um príncipe instruído por um feiticeiro tenta e consegue escapar-lhe; Cosquin (Études folkloriques) e W. Crooke (North Indian Notes and queries, 1894) narram contos semelhantes.
Porém o quarto secreto aparece mais claramente na introdução do livro mongol Siddhi-Kûr, no qual o caçula descobre a “chave da magia” espiando pela fresta de uma porta. A curiosidade é pois recompensada. Os contos de Velay (Cosquin), da ilha de Zanzibar, de Bosnia permitem, ao iniciado triunfar depois de haver transgredido um regulamento de interdição. Este último conto, recolhido por Desparmet, assemelha-se ao de Aladin (As mil e uma noites): um jovem sem fortuna quer desposar a filha do rei.
Contudo, quase sempre, essa curiosidade é nociva.
O homem é expulso do paraíso pelo seu gesto da desobediência (conto hindu de Somadeva Rhatta; história do Terceiro calendário de mil e uma noites). Sem se instruir nos três estágios impostos (purificação, saber, poder), o neófito quis penetrar no santuário secreto: da mesma forma é enxotado dessa confraria (Roman des sept vizirs (Romance dos sete vizirs), enquanto que o príncipe do Fidèle serviteur (Fiel servidor) (Carnoy) enamora-se de um retrato conservado num quarto interdito.
L’enfant de la Vierge Marie (O filho da Virgem Maria) (Grimm), Le bénitier d’or (Cosquin), Maria Morewna (Ralston e depois Marnier) e numerosas variantes mencionadas por Saintyves, referem-se ao tema da interdição do Quarto Secreto. Doze quartos corresponderiam aos doze apóstolos, o décimo-terceiro quarto sendo o do Santo dos Santos.
Carrouges estende esse simbolismo aos romances policiais para interpretar o mistério dos quartos fechados.
4 — O objeto denunciador
Um objeto mágico denuncia o culpado que tentou penetrar no local, secreto. É o caso do conto de Perrault, do Oisel emplumé (Pássaro emplumado) de Grimm, de La veuve et ses filles (A viúva e suas filhas) de Loys Brueyre. O objeto pode ser uma chave, um ovo, um pequeno cofre, um retrato e até uma região.
Depois o próprio objeto mágico tornou-se a representação do quarto iniciativo. Essa “casa dos homens”, esse centro de reunião de iniciados transforma-se num cofre que encerra o saber. Andrew Lang vê nisso tudo a sobrevivência do culto primitivo e acrescenta o anel jogado ao mar e encontrado depois no corpo de um peixe. Mas a chave, símbolo axial, pode ser considerada pelo seu poder de ligar e desligar; seu conhecimento tem então o mesmo poder que a palavra de Ali Babá ou a do Pequeno Polegar. Às vezes o objeto desaparece: um sinal aponta o culpado; são os cabelos de ouro do Homme de fer (Carnoy) ou o dedo dourado de uma criança desobediente (Steele Swahili, Tales, 1870; Contes Cambodgiens, 1868; Conte Chao Gnoh); o ouro é então o emblema das energias solares.
5 — Auxílios
Essa luta entre o iniciado e o iniciador implica auxílios exteriores. Esses auxílios provém dos pais, de um religioso, de um sábio, de um jovem (W. Crooke observa o caso de um herói aconselhado pela filha de seu inimigo). Os mortos que aconselham são numerosos (Cosquin, Steele, L’oiseau de vérité (Pássaro de verdade), Les trente-deux récits do Trône (As trinta e duas narrativas do trono) ou Vicramaditia, La légende de la mort (A lenda da morte) (de Le Braz); D. Juan também recebeu os conselhos do comendador. Os animais, aliados do homem, sob a influência da Índia, previnem contra o perigo. Com Perrault essa parte é abreviada e os irmãos chegam inopinadamente.
6 — Conclusão
Parece que o conto de Barba-Azul visa a iniciação de um ser; sua curiosidade impede-o de beneficiar do ensinamento desta arte mágica. Os elementos interiores desse tema, conhecido em todos os países, se encontram num ritual que parece reservado aos iniciados.
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Fonte: BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores
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