Pintura por computador de Celito Medeiros
EM QUE MARES E EM QUE MARGENS?Sempre que passas
estou isolado na outra margem do rio
Isolado no caminho oposto ao teu
Qualquer modo que uso
para transpor rios calmos
ou mares profundos
não mais te encontro na outra margem
Se passas pelo outro lado da rua
é tanta gente e trânsito entre nós
que só encontro teu perfume
Mesmo apressada
teu olhar em mim repousa,
Ousa, se apossa
Em que margens de que dias
estaremos sós para nós dois
ancorados no mesmo porto?
Em que rios ou mares sem margens
nos aportaremos
para armazenagem e troca de frutos?
NOS TRILHOS DO TREM QUE TANTO TARDA
Dos mil sentidos da vida
o que ouço gritar na madrugada
é o silêncio bocejante de Deus
Os quatro elementos da natureza
sãos trilhos sobre dormentes
onde a sobrevivência agora repousa
desamparada
O planeta dorme nos trilhos dos trens
sem preocupar-se com a advertência:
pare ouça escute afaste-se
II
A noite
mastiga o dia descarrilado
Por isso não amanheceu por aqui
Mas a hora é ativa mundo afora,
onde é língua mortífera e arrasa países
É terremoto na Nicarágua Índia
Deitam o Japão em escombros
III
Aqui nos dormentes dos trilhos
só ouço meu próprio respirar taquicárdico
Rumino celeiros de solidão
IV
E o trem
por que tanto tarda?
SER MENINO
Quando menino era fácil reter nas mãos
o céu tombando em chuvas
ensaiando maremotos nas sarjetas
Quando exausto de peraltices
arrombava represas de barro
e ia construir outras em sono
Era certo que na enxurrada vindoura
soltaria seus sonhos navegando
arquitetados com folhas de sabatinas
Tudo só terminava
quando queria que terminasse
Buscava o poente apagando as estradas
e acendia o luzeiro do céu e das praças
Era tão fácil ser herói quando se era menino
porque não era bélico ser herói
Por certo na enxurrada vindoura
soltaria meus sonhos navegando
sem que generaizinhos-de-ouro ou chumbo
pusessem a pique a esquadra de barquinhos
POETA FORÇA-TAREFA
os dias e as dores dos dias
cobram à exaustão o meu oficio:
vim aos mundos ser poetas
ainda que em passos recentes
tenha sido fungo ou bactéria
árvore lodo água montanha ou gramínea
sou a poeira cósmica do big-bang
manhãs e adormeceres rebentam-me os ouvidos
pulsos e pulsares do peito me anunciam guerreiro
a lutar pela salvação do homem
impuro ou purificado
tenho texto na testa em letra escarlate:
venho às vidas e aos mundos ser poetas
II
é por fúria de justiça que amo o ser humano
poeta de oficio
zelo para que acordes em paz
ao teu digno dia de trabalho e amor
acaso me descuide de tanto zelo
acordarás sem a honra do teu labor
nem a amada no leito a acolher-te
por isso a permanente vigília
o verso e a voz em riste
para iguais conquistas de todos
compartilho do teu largo riso por estares feliz
mas culpo-me acaso a felicidade não te venha
III
guilhotina estas mãos escrevinhadoras
se elas não forem os poemas
que te libertarão da miséria e das desigualdades/'
animal furioso ou homem bom
defendo com adagas de luz
e força-tarefa
a segurança da tua vida de justo
IV
os tempos e as vozes dos tempos
rebentam-me os ouvidos
cobrando os afazeres de meu oficio
o cristo e os cães do peito
gritam gritam para que eu te guarde:
venho às vidas e aos mundos
ser os teus poetas-de-guarda
Extraído de Letras en Movimiento aBrace. Montevideo: Bianchi editores; Edições Pilar, 2006. 63 p. Em cooperación con el Movimiento Cultural aBrace.
CONSTRUTORES DE PRECIPÍCIOS
(seleção)
“É um canto patético este canto de Rossyr Berny. A sua realidade poética e existencial esplende pela fraturas e interrupções sucessivas, por um permanente processo de coagulação verbal e sintática. Em Rossyr Berny o expediente quase remoto ganha uma força nova e até agressiva”. (LÊDO IVO, da Academia Brasileira de Letras)
PORTO IMPROVÁVEL
Perdido de ti
sou metade de mim
Em meio a oceanos revoltos
minúsculo barco
o melhor porto que busco
é o milagre do teu abraço
Isso se deixares rastros
aos meus digitais, faro, olhos
Te buscam enlouquecidos
Isso se deixares indícios
nos faróis céus cios
madrugadas indormidas
Isso se nos ventos de tua passagem
deixares resquícios na paisagem
Talvez te denuncie algum flagrante
de meu nome em tua lembrança
E a saudade te surpreenda em pranto
Perdido de ti
sou pedaço de mim
Serei inteiro contigo inteira
quando teu peito reabrir-se ao meu
no porto fantasma do teu retomo
DESMEMÓRIA
Se demorares um pouco mais
talvez me encontre fera
louco
Apenas pó
Descobrirás
que na primeira crise por tua ausência
comecei a gritar
grunhir
mugir
berrar
Lobo a acuar estrelas
mijei postes
escarvei
pastei
Elegi estrebarias para meu sono
e carniças para meu sustento
A última crise por tua ausência
trouxe o sossego dos desmemoriados
LUZ TORTA
A luz vem torta
apagando a frouxa penumbra
Vem cega
pelas mãos dos caminhos descalços
Quebrada
desce escadas
Tropeça em correntes
de sobressaltados fantasmas
A luz vem tonta
Desenhada pelos aposentos
afoga-se nas rugas do cariado casario
Dos poros humanos
a luz nasce morta
Vem tonta
a trôpega energia
Filha dos olhos vazados do cotidiano
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Fontes:
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/rossyrberny/
http://www.antoniomiranda.com.br
http://www.antoniomiranda.com.br
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