terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XXI



CAPÍTULO VI

FORMAÇÃO DE LENDAS RECENTES

CARTOUCHE ET MANDRIN

Dois célebres bandidos de proezas diferentes que souberam cativar a imaginação popular: Cartouche tornou-se assim o bom ladrão enquanto que Mandrin é um salteador temível que socorre os humildes. Desde a morte desses dois personagens, os livros se apoderaram de suas personalidades.

I. — Cartouche

a) Sua vida — Louis Dominique Cartouche, nascido em outubro de 1693 no bairro de La Courtille, em Paris, teve uma educação bastante rudimentar. Aos onze anos foi raptado por um bando de boêmios e aos dezoito já roubava pelos belos olhos de uma pequena roupeira. Recrutador, organizou mais tarde o seu bando de acordo com os principios militares; seus tenentes chamavam-se Duchâtelet, bem como Duplessis d’Entraigues, Louis Marcant, estudante de direito, Pélissier, cirurgião. Como a França estava coberta por uma rede de agentes (teve trezentos e sessenta e seis cúmplices) Pélissier pode atacar o correio de Lião. A audácia desses homens é inacreditável: um pregoeiro proclama a busca de Cartouche, esse se dá a conhecer e apavora a multidão que nada faz para detê-lo. Suas evasões são espetaculares (Fort-l’Evêque).

Apesar de enriquecido pela rua Quincampoix onde François Le Roux despojava os visitantes do banco Law, Cartouche tornou-se receoso — ele próprio foi delator junto a M. d’Argenson. Duchâtelet vende o seu chefe no dia 14 de outubro de 1721; encarcerado no Chatelet e depois na Conciergerie, sua pena de morte foi-lhe comunicada no dia 26 de novembro de 1721. No dia 27, na praça de Greve, já sem esperanças de ser salvo pelos seus, denunciou seus cúmplices, enquanto que no interrogatório, apesar do suplício dos sapatos de ferro, nada confessou.

b) Sua popularidade — Esse bandido sanguinário, supliciado na roda aos vinte e oito anos, foi exposto em casa do ajudante do carrasco: cada curioso pagava um soldo. A Confraria dos Barbeiros-Cirurgiões trouxe o corpo para seu hotel e durante três dias os parisienses puderam desfilar para vê-lo. O molde de sua máscara é conservado na biblioteca de Saint-Germain; outra figura no Museu do Homem.

Sua biografia aparece em 1721, L’Histoire de la vie et du procès du fameux Louis-Dominique Cartouche (História da vida e do processo do famoso Louis-Dominique Cartouche), mas Legrand e Quinault já havia atualizado sua peça quando vieram ver Cartouche na prisão; os italianos seguiram o teatro francês e representaram-no como Arlequim. Uma multidão se formou para assistir essas peças. A aristocracia velo para ver o bandido prisioneiro, o próprio regente saiu das suas comodidades; os gravadores venderam seu retrato, os poetas, entre eles Racot de Grandvai (1725), glorificaram sua coragem, sua inteligência, seu gênio de comando:

Ainsi finit Cartouche, et la Fleur des Guerriers
Laisse sur l’Echafaud sa vie et ses lauriers.
(Assim morre Cartouche, e a Flor dos Guerreiros.
No cadafalso deixa sua vida e seus louros.)

II — Mandrin

a) Sua vida — Nascido em Saint-Etienne-de-Saint-Geoirs em Dauphiné, no dia 11 de fevereiro de 1725, Louis Mandrin é um contrabandista popular com poses de gentil-homem. Em Chambéry é recebido pela nobreza. Mandrin organiza um bando disciplinado e promove verdadeiras campanhas contra os Fermiers généraux. Sua sexta campanha foi sangrenta. Mandrin não ataca os particulares mas obriga os administradores oficiais e intermediários a comprarem os seus produtos contrabandeados; fornece recibos regulares. Mandrin é o gerente de um estabelecimento comercial; escrupuloso quanto aos pesos, as quantidades, insurge-se todavia contra os impostos descontados por quarenta mil empregados detestados. Malesherbes, primeiro presidente da Corte de Apelação, havia também condenado esse abuso.

Mandrin retoma as façanhas de Puymoreau que em 1548, com um bando organizado de seis mil homens lutou contra o imposto da gabela e tomou Saintes, Cognac, Bordéus, libertando os contrabandistas arrestados.

Audacioso, afugenta as tropas de Luís XV que se lhe opõem, ataca cidades inteiras: Autun, Bourg-en-Bresse — (5 de outubro de 1754), Beaune (dezembro de 1754). Liberta os prisioneiros, menos os assassinos e os ladrões; assina libertações e endereça cartas corteses, porém firmes, às mais altas autoridades.

Depois de uma batalha decisiva contra os hussardos da legião de Fitscher, refugia-se na Savóia. Seis regimentos de infantaria e dois de cavalaria foram mobilizados. Mas na noite de 10 para 11 de maio de 1755, raptado por soldados de La Morliêre, do castelo de Rochefort, em território Sardo, os Fermiers généraux instauram imediatamente um processo. A Corte de Turim manifesta-se contra essa violação de direitos e de seu território, mas, no dia 26 de maio de 1755 era executado em Valença. Em seguida, a França humilhou-se perante a Casa de Sardenha e libertou dois companheiros de Mandrin injustamente aprisionados. Mandrin não denunciou nenhum de seus companheiros, fez supor que não era responsável por nenhuma morte; aos trinta e um anos sua morte foi edificante.

b) Sua popularidade — Suas aventuras galantes, suas fugas, suas façanhas audaciosas, seu papel de benfeitor para com a população à qual vendia produtos de excelente qualidade a preços muito acessíveis, fizeram com que o nomeassem “capitão geral dos contrabandistas da França”. Seus irmãos Antônio, Francisco e Cláudio, bem como sua irmã Mariana, ficaram incumbidos de continuar a organização do irmão.

Entre 1755 e 1760, vinte e cinco contrabandistas foram supliciados à roda ou esquartejados e cinco foram enforcados. O povo chorou a morte de Mandrin. O abade Regley criou para os Fermiers généraux uma Histoire de Louis Mandrin (1755) com “detalhes das suas crueldades, dos seus assaltos e do seu suplício”; o que nada mais é do que uma rede de calúnias encontradas em algumas “madrinades”. Os Fermiers généraux pretendiam assim desviar a opinião geral: Mandrin nada mais era do que um salteador. Foi confundido com Cartouche. De fato, a Revolução francesa ia realizar a obra sonhada por esse contrabandista.

Conclusão — Esses homens, com sua coragem audaciosa, tomaram proporções sobrenaturais. Com os louvores desses homens criou-se a lenda. O mecanismo dessa miragem da imaginação popular é assim bem evidenciado. Mais recentemente lembramo-nos de Bonnot cujas façanhas foram multas vezes comentadas, ou do bandido siciliano Giuliano glorificado nas telas cinematográficas. Mas essas lendas ainda novas já não deixam lugar ao simbolismo, somente ao maravilhoso. A lenda de Santa Teresa de Lisieux poderia ser considerada sob esse prisma.
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continua...
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

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